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BrBRHUHu0101-546X2002000200004

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variedadeBr
ano2002
fonteScielo

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Casar ou não, eis a questão: os casais e as mães solteiras escravas no litoral sul-fluminense, 1830-1881

A escravidão brasileira, uma prática que perdurou por mais de trezentos anos, sempre despertou o interesse de estudiosos. Entre os trabalhos realizados até a década de 1970, a promiscuidade era reconhecida como presente no dia-a-dia do cativeiro, portanto, os casamentos entre escravos seriam pouco comuns. Aquela promiscuidade resultava ou do estágio de desenvolvimento do negro (Rodrigues, 1988) ou do próprio sistema, por ter retirado o africano de seu ambiente social e familiar, colocando-o numa nova realidade hostil, junto a pessoas estranhas (Freyre, 1992), ou ainda porque as condições do cativeiro eram adversas. Deve- se considerar, também, o desequilíbrio entre os sexos, que decorria da preferência, pelo tráfico atlântico, por homens que, teoricamente, seriam mais aptos ao trabalho do eito; desinteresse senhorial, que a existência de família poderia dificultar a venda da escravaria; e também dos próprios cativos, que procuravam evitar a procriação e, conseqüentemente, a escravização dos filhos (Gorender, 1992; Costa, 1998; Cardoso, 1962).

Essas teses começaram a ser reavaliadas nos últimos vinte anos, quando, então, os laços familiares tornaram-se tema de pesquisas. Tal movimento inspirou-se em estudos norte-americanos e associou-se a uma reformulação da visão sobre o escravo, não como agente histórico somente na fuga, revolta ou roubo, mas no seu dia-a-dia, ao lado do alargamento de opções de fontes paroquiais (casamento e batismo), cartorárias (inventários post-mortem), censos populacionais, processos criminais, entre outras, e releituras críticas de relatos de viajantes e cronistas (Faria, 1997).

Os registros de casamento passaram a ser minuciosamente analisados, como, entre outros estudos, os de uma Paróquia em Vila Rica (MG), entre 1727 e 1826 (Luna & Costa, 1981), e os de treze localidades de São Paulo, nos anos de 1776, 1804 e 1829 (Luna, 1990). As demais pesquisas realizadas, incluindo os inventários como fontes, trataram, dentre outras, de localidades como Paraíba do Sul (RJ), entre 1830 e 1872 (Fragoso & Florentino, 1987); o Nordeste colonial e açucareiro (Schwartz, 1995); Santana do Parnaíba (SP), entre fins do século XVIII e princípios do seguinte (Metcalf, 1990); e Campinas (SP), no século XIX (Slenes, 1987). Constatou-se que, em meio a dificuldades como a desproporção entre os sexos, com o predomínio de homens, existiam espaços menos adversos para a formação de famílias legais e, conseqüentemente, para maior presença de crianças legítimas e de cativos casados e viúvos, como, por exemplo, entre propriedades médias e grandes de Campinas (ibidem:218), de Bananal (SP), nos anos de 1801, 1817 e 1829 (Motta, 1999:304-308) e de Lorena (SP), no ano de 1801 (Costa, Slenes & Schwartz, 1987:254).

Tais dados explicam-se com base na constatação de que, no Brasil, havia uma clara tendência a casamentos "intra-propriedades" (Slenes, 1999; Motta, 1999; Metcalf, 1990; Schwartz, 1995), ou seja, em escravarias maiores, maiores seriam as chances de localizar possíveis parceiros (Slenes, 1987). O contrário também era verdade: quanto menor a propriedade, maior a freqüência de mães solteiras, logo, de crianças "naturais". Essas características foram confirmadas em estudo sobre Campos dos Goitacazes, no Norte fluminense, nos séculos XVII e XVIII, quando se verificou que "eram os tipos de produção, as localizações das áreas, o tamanho das unidades produtivas e o período que, dependendo de determinadas combinações, influíam nas possibilidades de casamento dos escravos" (Faria, 1998:323). Por exemplo, áreas com ilegitimidade superior a 66% eram aquelas próximas a "portos recebedores de africanos, e de bispados" (ibidem:323), pois a proximidade do bispado levaria à maior interferência da Igreja nas relações entre senhores e escravos, podendo aumentar o controle sobre a venda, separadamente, de escravos casados, prática censurada pela Igreja.

Portanto, os estudos reconhecem o casamento religioso como recurso presente para uma parcela da população escrava, embora também considerem como famílias as unidades constituídas por mães solteiras. Porém, existem controvérsias no que diz respeito, por exemplo, ao significado daquela instituição. Para Florentino & Góes, a intensa chegada de africanos, considerados como estrangeiros, criava um campo de conflito, contornado mediante a criação de laços familiares, quando o desconhecido tornava-se conhecido e, portanto, fundando a paz. Desta forma, as famílias acabavam por auxiliar na reprodução do sistema escravista, tendo um papel estrutural (Florentino & Góes, 1997).

Perspectiva criticada por Slenes, que acreditava que a família, embora respondesse a uma estratégia senhorial de formação de reféns, tanto dos anseios dos escravos quanto dos proprietários, apresentou-se como espaço em que experiências e memórias eram transmitidas e como possibilidade de escravos obterem o mínimo de autonomia, possuindo uma função "desestabilizadora" (Slenes, 1999). Ao contrário de estar relacionada à vivência do cativeiro, Castro considerava que, à medida que favorecia a obtenção de roças e moradias separadas, os escravos envoltos em laços familiares adquiriam certo destaque junto à escravaria e acabavam vivenciando uma aproximação com o mundo dos livres (Castro, 1995).

Frente ao atual estágio das pesquisas sobre o tema, faz-se necessário conhecer como os cativos que viviam em diferentes realidades se comportavam diante do casamento, e quais as mulheres que, por opção ou não, se encontravam excluídas da oficialização de suas uniões. Em relação aos escravos, o que teria significado o casamento? Existiriam critérios na escolha de companheiros? Até que ponto haveria uma intervenção, por parte dos senhores, nos casamentos de seus escravos? Em que medida o contexto da segunda metade do século XIX atingiu os matrimônios sancionados pela norma em Mambucaba? Estas são algumas das questões tratadas a seguir.

A população mambucabense e de todo o litoral sul-fluminense,1 quando do início da "febre cafeeira", seguiu a tendência, comum às outras partes, de plantar café. Sobre isso, Castro verificou que, com a expansão e a qualidade advinda do cultivo em áreas serranas, o café plantado em Capivari (atual Silva Jardim, RJ) foi prejudicado pela temperatura e umidade elevadas, pois "comprometia a qualidade da produção cafeeira local que pouco a pouco se voltava para o mercado interno" (Castro, 1987).

Por certo, a produção cafeeira de Mambucaba seguia essa característica. Da mesma forma, a produção de alimentos, como feijão, arroz, e a atividade pesqueira eram direcionadas para autoconsumo, sendo o excedente vendido na localidade. Outras propriedades, definidas como voltadas para a agricultura comercial, especializaram-se no abastecimento do mercado interno. Se o café local era de qualidade duvidosa, o produzido no Vale do Paraíba, principalmente o paulista, tinha como um dos pólos de escoamento, rumo ao Rio de Janeiro, o porto localizado na Freguesia, o que dinamizava a vida econômica local por meio do emprego de indivíduos da comunidade e da venda de excedentes àqueles que subiam e desciam a serra.

Sobre os caminhos ligando Mambucaba ao interior, contamos com as observações feitas por Zaluar, que, entre 1860 e 1861, visitou o Vale do Paraíba. No caso de Barreiro, "para transportar os seus produtos a Mambucaba, que é o porto mais próximo, mantém caminhos que confluem de diversos pontos do município às estradas Cesárea e de Areias a Mambucaba" (Zaluar, 1975:54). O viajante citou, também, as vias de comunicação entre Areias e Mambucaba, "as estradas mais importantes do município são a Estrada Geral de São Paulo e a chamada Cesárea, que comunica esta localidade com o porto de Mambucaba, e por onde se faz a importação dos produtos comerciais e agrícolas" (ibidem:55- 60). Da mesma forma, Mambucaba mantinha comunicações com Lorena e Silveiras (ibidem, p. 76).

O porto de Mambucaba vinha se destacando desde 1830, entre aqueles localizados no município de Angra dos Reis, e chegou a ser considerado o segundo em importância após o do centro de Angra (Mendes, 1970:358). Em 1847, Mambucaba possuía seis armazéns de café e, em 1850, eram oito, de um total de 25 em todo o município, doze na Freguesia da Conceição de Angra dos Reis e cinco na freguesia da Ribeira (Ipanema & Ipanema, 1990, 1991, 1992).2 Para a verificação do movimento portuário de Mambucaba, contamos com o mapa do arrolamento feito pela Coletoria de Angra dos Reis, contendo informações da origem dos cafés, nome dos seus donos, províncias de procedência e as arrobas embarcadas nos portos de Mambucaba, Jerumerim, Ariró e Itanema. Mediante a contagem das cargas que chegavam ao litoral, vê-se que grande parte do café transportado pelo porto mambucabense provinha de São Paulo. Para o geral das províncias de Rio de Janeiro, de São Paulo e de Minas Gerais, Mambucaba foi o segundo porto em ordem de embarques, após o de Jerumerim (Pereira, 1977:56-70).

Em 1864, as linhas da Estrada de Ferro D. Pedro II chegaram a Barra do Piraí, em 1871 a Barra Mansa e, em 1877 a Queluz (El-Kareh, 1982). Analisando as entradas no porto do Rio de Janeiro de embarcações provenientes do litoral sul- fluminense, vemos que, até 1860, houve um aumento do movimento portuário local: de 1828-1838 para 1839-1849, de mais de 72 entradas, do último subperíodo para 1850-1860, de 78. A partir de 1860, observamos uma queda de 272.3 A produção cafeeira, que até então era escoada, entre outros, por aqueles portos, passou, gradativamente, a ser conduzida pelo transporte moderno, mais rápido e seguro. Ao lado disso, com o fim efetivo do tráfico externo de escravos, em 1850, e, grosso modo, com o encarecimento da mão-de-obra escrava, os pequenos produtores escravistas tiveram maior dificuldade de obtenção de cativos, sendo que muitos acabaram vendendo seus escravos para o tráfico interno, gerando "um recrudescimento do número de brancos empobrecidos, nas diversas situações rurais, locais e regionais" (Castro, 1995:104). A junção desses elementos conduziu a região ao processo gradual e lento de crise, que começaria a ser revertido a partir da década de 1920 (Capaz, 1996:201- 213). Como ilustração, podemos citar que, a partir de 1870, "em Angra dos Reis, os casarões assobradados, que tinham depósitos de café na parte térrea, foram sendo abandonados e começaram a ruir" (ibidem:202). Mesmo destino tiveram as estradas que conduziam as produções até o litoral, como as de Ariró, de Mambucaba e de Parati, que foram se arruinando pelo mau estado de conservação (ibidem:203).

A população livre, que havia aumentado em 4.550 indivíduos, passando de 12.050 para 16.600, entre 1840 e 1856, elevou-se em apenas 689 pessoas, entre 1856 e 1872, chegando a 17.289. Ou seja, a alteração no quadro econômico local, iniciado no contexto da segunda metade do oitocentos, veio desestimular a ida de forasteiros à região, situação não verificada até 1856. Ao mesmo tempo, o número de escravos decresceu, correspondendo, entre 1840 e 1856, a menos 893 indivíduos, passando de 10.552 para 9.659, e entre o último ano e 1872,4 de menos 5.115, chegando a 4.544.5 A diminuição do movimento portuário e o fim efetivo do tráfico de escravos criaram, cada vez mais, condições adversas aos livres, que não conseguiam repor sua mão-de-obra quer via tráfico interno, quer via nascimentos. Muitos deveriam estar vendendo seus cativos, em momentos de expansão do preço dos escravos, às áreas de ponta na economia imperial, tentando, assim, amenizar os impactos de um processo de empobrecimento a que muitos estavam vulneráveis.6 Outros possíveis destinos aos cativos desaparecidos poderia ter sido a alforria, a fuga ou a morte.

Ao lado disso, via-se uma diminuição da parcela de africanos entre a escravaria mambucabense: se em 1856 havia 45,4% de africanos contra 54,6% de crioulos, em 1872, os crioulos chegaram a 83,2% contra 16,8% de africanos.7 A representatividade de escravos nascidos no Brasil, na década de 1870, foi comum às outras áreas estudadas, e não seria de esperar o contrário, pois se haviam passado vinte anos do fim efetivo do tráfico externo e, portanto, de suspensão da entrada de africanos no Brasil. Magé, por exemplo, possuía uma população crioula maior que a de Mambucaba: eram 89,08% de cativos desta origem (Sampaio, 1998:129).

Porém, os dados acima não informam as faixas etárias dos cativos, o que deveria incluir, portanto, crianças, adultos e idosos. Podemos verificar o percentual de adultos existentes na freguesia entre 1830 e 1881 por intermédio da contagem de 1.517 registros de batismo e de 96 de casamento, ambos realizados entre 1830 e 1871, e de 19 inventários post-mortem de proprietários de escravos de Mambucaba, abertos entre 1840 e 1881. Para isso, os escravos foram agrupados de acordo com o nome de seus proprietários, que totalizaram 251.8 Para a organização das escravarias, estipulamos alguns critérios: existiram proprietários que, mediante uma anotação do vigário ou citação em inventário, constatamos tratar-se de marido e mulher. Neste caso, optamos pela união das escravarias por corresponder, na prática, à mesma propriedade. Esse foi o caso, por exemplo, de José Jordão da Silva Vargas e sua esposa Dona Antônia Luiza de Magalhães. Ocorreram casos de, uma vez falecido o proprietário, a sua viúva ter passado a ser citada nas fontes, casos em que procedemos da mesma forma. Isto se deu, por exemplo, com a morte de José da Silva Guimarães, quando cativos com o mesmo nome e com padrão semelhante de compadrio passaram a ser anotados como escravos de Viúva Guimarães e Filhos. Ainda surgiram outros problemas, como a citação ao nome de um determinado proprietário de diferentes formas, como o caso de Manoel Jordão da Silva Vargas, que apareceu ora como Manoel Jordão e, outras vezes, como Manoel Jordão Vargas. Somente concluímos tratar-se da mesma pessoa após o cruzamento dos nomes dos cativos que compareceram às cerimônias, principalmente, os registros de batismo, grande parte das fontes de que dispomos.

Feito isso, começamos a rastrear por proprietários os escravos com nomes semelhantes, cruzamos suas origens e demos um número para cada cativo.

Ocorreram, diversas vezes, casos de escravos com origem indicada num registro e não estipulada em outro; nestas vezes, verificamos se se tratava da mesma pessoa; no caso das mães, observamos se a diferença entre um filho nascido e batizado e outro era acima de um ano, quando consideramos como a mesma pessoa.

No caso de adultos, quando apareciam como padrinhos, somente consideramos a mesma pessoa quando havia sido batizado anteriormente.9 Enfim, todo esse trabalho nos garantiu diminuir o índice de erro, embora sempre presente, de contar mais de uma vez a mesma pessoa e de considerar a mesma pessoa quando eram escravos com mesmo nome, mas indivíduos diferentes.

Posteriormente, contamos todos os adultos, aqueles entre 14 e 40 anos, e os idosos, com mais de 41 anos,10 cuja origem pudemos identificar. Foram levados em conta batizandos, pais, padrinhos, madrinhas, noivos e aqueles que apareceram somente nos inventários, ficando de fora 204 homens e 206 mulheres sem definição de origem.

Chegamos a 801 (58,8%) escravos vindos do outro lado do Atlântico, dos quais 353 eram homens e 448 mulheres, enquanto 563 (41,2%) eram cativos nascidos no Brasil, divididos entre 190 homens e 371 mulheres.

Trata-se de uma amostragem que, por certo, deixa muitos outros escravos de fora, principalmente aqueles que não compareceram a nenhuma das cerimônias religiosas.11 Mas indica a parcela daqueles que estavam comparecendo à Igreja, um percentual maior de escravos oriundos do outro lado do Atlântico.

Dentro desse contexto de transformação no panorama econômico local e demográfico, perguntamos: quais os tipos de casamentos predominantes, endogâmicos por origem e mistos12 e como se comportaram ao longo dos anos, ou seja, até que ponto condições adversas vividas pela população livre influiu na ida de cativos à Igreja a fim de sacramentar suas uniões? Quem eram as mães solteiras que viviam em Mambucaba? A fim de responder às questões formuladas, trabalhamos com as informações relativas, primeiro, a todo o período compreendido pelos registros de casamento, 1830-1871, e, em seguida, comparamos as variações nos subperíodos 1830-1849 e 1850-1871, para, assim, verificar as possíveis alterações de acordo com os contextos.13 Quando incluímos na análise os inventários, os anos em estudo foram ampliados para mais dez, chegando a 1881.14 Dos dezenove inventários trabalhados, a família escrava, formada por pais e filhos, esteve presente em dezesseis processos, havendo, no total, 51 (80,9%) famílias matrifocais,15 as únicas entre propriedades com um a três escravos e quatro a quatorze cativos com, respectivamente, uma e sete famílias desse tipo.

Entre as maiores, aquelas com quinze ou mais escravos, localizamos 43 (78,2%) constituídas apenas pela mãe e seus filhos e doze (21,8%) por casais com ou sem filhos.16 Todas essas famílias congregavam 184 (41,2%) pessoas avaliadas.

Cruzando batismos e inventários, encontramos quatro famílias chamadas fraternas, envolvendo irmãos, totalizando mais doze pessoas e duas famílias tendo à frente pais viúvos, um homem e uma mulher, ambos com um filho cada, o que elevava o número de cativos que não se encontravam sozinhos para 200, um percentual de 44,3% de indivíduos num universo de 451 escravos avaliados.

A organização familiar estava presente para quase metade dos cativos, que buscavam a socialização, a criação de redes de conhecimento e de auxílio e que tentavam, em meio ao sistema de dominação senhorial, buscar formas de melhor levar a vida. Ao mesmo tempo, o percentual de 44,3% representa parte do contingente aparentado, pois, possivelmente, existiam tios, avós, além de compadres e comadres, todos esses despercebidos pelos inventários, fonte que, tradicionalmente, indica apenas os pais e filhos.17 No livro de casamento de escravos da freguesia de Mambucaba encontramos 65 registros de matrimônios realizados entre 1830 e 1871. Desses, dezesseis foram casamentos coletivos, nos quais se anotou num único registro mais de um casal, totalizando 96, distribuídos em 37 nos anos de 1830-1839, 36 entre 1840-1849, 19 presentes entre 1850-1859 e quatro entre 1860-1871.

Esses matrimônios envolviam escravos de um mesmo proprietário, o que confirma, também para Mambucaba, que a escolha de um cônjuge por parte do cativo tinha restrições impostas pelos limites da propriedade, tal como foram apontados por Faria (1998:314) e Slenes, que diz: "Os senhores de escravos em Campinas praticamente proibiam o casamento formal entre escravos de donos diferentes" (Slenes, 1999:79).

Os escravos deveriam, em tese, escolher seus parceiros de vida entre a oferta existente na propriedade na qual viviam, o que, no caso de pequenas escravarias, poderia ser dificultado, ao contrário das maiores. Isso significa dizer que, nas maiores propriedades, maiores seriam as chances de contrair matrimônio, constatado por Slenes para Campinas no século XIX: "26% das mulheres acima de 15 anos são casadas ou viúvas nos plantéis pequenos, e 67% nos médios e grandes" (Slenes, 1987:218).

Os inventários trabalhados apontam nesse mesmo sentido, que encontramos famílias nucleares exclusivamente entre as escravarias com quinze ou mais escravos, tipo de propriedade em que localizamos também os dois casos de viúvos com filhos citados.

Portanto, os cativos que viviam e trabalhavam em terras mambucabenses, quando encontravam um possível parceiro para a vida, e estes eram de outros senhores, acabavam estabelecendo relações diferentes do casamento sancionado pela Igreja, situação que diminuía quando compartilhavam, além do destino de escravos, a mesma propriedade. Os casamentos entre escravos de diferentes propriedades, inexistentes na freguesia em estudo, deveriam criar situações que trariam "dor de cabeça" para os senhores envolvidos, como quando do nascimento dos filhos ou até reivindicações de maridos e esposas, desejosos por morar ao lado de seus parceiros, em uma das propriedades. Mas, se as intervenções senhoriais se alastrariam a outros aspectos do casamento, como definir com quem um cativo deveria se casar? Embora fosse provável que alguns dos casamentos realizados resultassem de indicações dos proprietários, considerar que todos os matrimônios representariam uma imposição senhorial seria pensar nos cativos tal como "seres manipulados", quando sabemos que se tratava de homens e mulheres atuantes em suas vidas, negociando concessões com seus proprietários, assim como respondiam à importante estratégia de controle, evitando, inclusive, uma possível fuga do cativo. Existiam, dentro dos limites impostos a seres escravizados, momentos de relativa manifestação de suas vontades, como na introdução de algumas preferências na hora da escolha do cônjuge: o casamento endogâmico foi uma delas.

Entre 1830 e 1871, casaram-se 48 africanos entre si, correspondendo a 61,5% das uniões; os crioulos, entre si, uniram-se dezoito vezes ou 23,1%, fazendo com que os casamentos endogâmicos por origem chegassem a 66 (84,6%) contra doze (15,4%) mistos, divididos entre sete (8,9%) casais, nos quais as mulheres eram africanas e seus noivos crioulos e cinco (6,4%) mulheres crioulas com noivos africanos.

Para a elaboração do cálculo, foram levados em conta os registros que tiveram indicação de origem dos noivos e aqueles cujas origens, mesmo sem a referência, foi possível localizar mediante o cruzamento com registros de batismo e inventários, ficando dezoito de fora da contagem, que não conseguimos rastrear.

Havia uma preocupação dos cônjuges em criar laços com outros de mesma origem, pois 84,6% das uniões eram endogâmicas contra 15,4% mistas. Vemos uma predisposição à escolha a partir da origem, determinando um possível parceiro em detrimento de outro.

Se observarmos os casais que não passaram pelo casamento entre os anos demarcados, mas que haviam conduzido seus filhos ao batismo ou foram avaliados em inventários, constatamos semelhanças em relação ao comportamento acima apresentado. Foram 42 (57,5%) casais africanos, dez (13,7%) casais envolvendo cônjuges crioulos, correspondendo ambos a 52 (71,2%) de uniões endogâmicas. Em contraposição, 21 (28,8%) uniões eram mistas, distribuídas em oito casais (11,0%) de mulheres africanas e homens crioulos e treze (17,8%) de mulheres crioulas casadas com homens africanos. Aqui, a endogamia continua sendo a principal característica quanto à origem dos casais, embora sofra uma queda de 13,4% na comparação com os registros de casamentos entre 1830 e 1871. De fato, as origens eram fatores de aproximação entre os escravos de Mambucaba. Porém, entre os cônjuges que haviam se casado antes de 1830 ou que teriam chegado à Freguesia nessa condição,18 a segunda maior freqüência de casais envolvia não homens e mulheres crioulos, tal como visto nos registros de casamento entre os anos de 1830 e 1871, mas mulheres crioulas e homens africanos, resultado, talvez, da falta de mulheres africanas para os homens africanos, ou de homens crioulos para as mulheres crioulas.

Retornemos aos registros de casamentos entre 1830 e 1871. O fato de, por exemplo, africanos recusarem o "outro", no caso, os crioulos, conduz à percepção de identificação entre eles. Sabemos que o ser africano foi uma construção advinda da sociedade escravista do século XIX, consolidando seu significado somente na segunda metade do século, que eram de tantas e variadas etnias. Será que, então, suas diferenças étnicas eram "superadas" pela caracterização deles, na região, como "estrangeiros" em relação aos crioulos? O processo estaria associado às possibilidades de localizar um parceiro dentro da propriedade em que viviam e trabalhavam. Os africanos, quando chegavam a Mambucaba, seriam "forasteiros", sem laços familiares, o que permitia, em tese, o matrimônio com qualquer escravo da propriedade. Em tese, porque, dentro da oferta de noivos e noivas, tendiam a optar por outros africanos, dado explicado pelo número predominante destes em idade apta ao casamento, além de se reconhecerem como "forasteiros". Esse foi o caso verificado entre a escravaria de Joaquim Coelho dos Santos. Em 1838, Sabina, africana de Benguela, foi batizada; um ano depois foi a vez de José, também africano, mas de Moçambique, com dezoito anos. No ano de 1842, casaram- se e batizaram seus filhos, Alexandre, em 1844, e João, em 1846.19 Os crioulos, por sua vez, estariam limitados na escolha, pois encontrar-se-iam associados por outros laços familiares com cativos da propriedade, o que impossibilitava o casamento; daí o estabelecimento de laços para fora da propriedade, que, como vimos, não passava pelo casamento sancionado pela Igreja (Faria, 1998:336). Mas também deveriam reconhecer-se como "iguais" e, portanto, "diferentes" dos africanos.

Muitas foram as crioulas nessas condições, e não foram poucas que assim permaneceram, solteiras.20 Citamos alguns casos: Fertuliana, escrava de Custódio José da Silva e de sua esposa Rosa Maria, foi batizada em 1837 como filha "natural" de Vitória africana. Ela apareceu na mesma propriedade, com aproximadamente dezessete anos, batizando a filha também "natural" Sabina. Tratava-se de uma propriedade que contava, a levar em conta os registros paroquiais, com a sua família e outra constituída por cônjuges africanos casados por volta do ano de 1845. Ou seja, a propriedade não lhe dava possibilidades de unir-se a alguém da própria escravaria e, por isso, ela deve ter buscado um parceiro fora dos seus limites.21 Na propriedade de Francisco Soares Ferreira, encontramos uma história semelhante. Catarina, africana de Angola, batizou sua filha "natural" Antônia, em 1849. Essa, em seus dezessete anos, apareceu como mãe solteira, batizando Vitalina, em 1864. Esta escravaria, assim como a primeira, não apresentava a Antônia muitas possibilidades de encontrar parceiro, pois, além de sua família, existia a de Graça, africana da Guiné, que batizou três filhos, sendo que um destes, anos depois, veio a ser padrinho de escravos, e uma mulher de nome Maria, com origem desconhecida, mas todos envolvidos por laços de compadrio.22 O padrão de endogamia não foi exclusivo de Mambucaba, alguns estudos sobre o tema também verificaram uma tendência igual, embora variassem quanto às explicações.

Entre 1734 e 1802, em Campos dos Goitacazes, dos 2.244 casamentos envolvendo escravos, 81% referiam-se a cativos africanos, dado que Faria associa ao predomínio numérico destes, às facilidades na escolha de possíveis parceiros, quase sempre africanos, dentro das propriedades e, inclusive, de mesma origem étnica, e termina afirmando que: "os africanos, habilmente, utilizavam o código social e ritual do homem branco para ter condições de estabilizar sua organização familiar" (Faria, 1998:336). Em contrapartida, os crioulos tenderam a buscar parceiros fora da propriedade, porque estariam envoltos em laços familiares e, quando apareciam nos registros, geralmente, seguiam a endogamia com base no critério da cor.

Na busca de uma resposta para o mesmo padrão de endogamia, por origem encontrada para o agro fluminense entre 1790 e 1830, Florentino & Góes recorreram a viajantes. Verificaram que o dia-a-dia entre africanos e crioulos não era dos melhores. Sobre isso, afirmava Jean Baptista Debret, na primeira metade do século XIX, que "os negros no Brasil julgavam seus irmãos de sorte, os mulatos, como 'monstros', uma raça maldita" (Florentino & Góes, 1997:34). Esse "conflito" poderia estar associado à preferência dada pelos senhores por crioulos, mais do que africanos, no desempenho de atividades domésticas e qualificadas, e na concessão de alforrias (Slenes, 1995:12). Da mesma forma que "a seletividade na escolha dos parceiros significava uma opção preferencial por iguais, isto é, exprimia um duplo e simultâneo movimento de constituição e recusa do outro" (Florentino & Góes, 1997:35).

Em Campinas, embora com padrões de casamentos mistos na ordem de 31,1%, em 1801, e 47,4% em 1842-1844, a endogamia foi verificada, ao passo que o percentual de crioulas casadas em relação às africanas demonstraria uma certa "intransigência" no momento de escolha do cônjuge. Porém Slenes relativiza a tendência à endogamia, evitando associá-la a possíveis conflitos de origem, pois, num contexto social que juntava, à força, 'estrangeiros', para, logo em seguida, começar a transformá-los em 'comunidade': isto é, numa agremiação imperfeita, crivada por competições internas, como todas as 'comunidades' reais, mas nem por isso dividida em grupos de identidades fortemente opostas (Slenes, 1999:78).

José Flávio Motta, em estudo sobre Bananal, certificou-se de que, em 1801, 1817 e 1829, os africanos tenderam ao casamento endogâmico: em 1801, foram 69,1%; 1817, 77,7%; e 1829, 85,4% (Motta, 1999:342).

No que diz respeito aos índices de nupcialidade, incluindo a variável idade e tamanho de propriedade, Slenes constatou que, em 1801 e 1819, homens crioulos apresentavam um índice maior que os africanos, enquanto, entre as mulheres, a tendência seria para o predomínio das africanas. Tais cifras tenderam a aumentar nas maiores propriedades (10 ou mais cativos) e entre os cativos acima dos 15 anos. Em 1801, eram 43,3% de homens crioulos casados ou viúvos contra 26,5% de africanos, 52,8% de mulheres crioulas contra 79,8% de africanas. Em 1829, 47,1% de homens crioulos contra 23,9% de africanos, e, entre as mulheres, foram 61,5% de crioulas e 66,7% de africanas (Slenes, 1999:76).

Quando vemos os casais que apareceram em registros de batismo e inventários de Mambucaba e que, portanto, não se casaram entre 1830 e 1871, localizamos um predomínio de africanos: os homens e mulheres africanas eram, respectivamente, 55 (70,5%) e 50 (79,4%) e os homens e mulheres crioulas chegaram a 23 (29,5%) e 13 (20,6%).

Entre aqueles que se casaram no período pesquisado, as mulheres africanas somaram 55 (70,5%), os homens de igual origem foram 53 (67,9%), os homens e mulheres crioulos, respectivamente, chegaram a 25 (32,1%) e 23 (29,5%). O predomínio de africanos na cerimônia poderia indicar uma maior predisposição ao casamento sancionado pela norma? Mas não seriam os crioulos, em tese, os maiores conhecedores da doutrina católica e, portanto, mais receptivos ao casamento? O predomínio de africanos entre os que se casavam refletia, na verdade, a maior expressividade numérica destes na faixa etária a partir dos 12 e 14 anos, idades mínimas para contrair o matrimônio. Quando contabilizamos todos os adultos que compareceram ao batismo, ao casamento ou os avaliados nos inventários, vimos um predomínio numérico de africanos, o que parece justificar o predomínio dos "de nação" na cerimônia. Assim como o casamento deveria representar, para esta parcela da população escrava, a possibilidade de ressocialização e o caminho para a estabilidade, mais emergenciais do que para os crioulos, socializados e inseridos em redes familiares e de amizade.

Porém o perfil é datado, como veremos a seguir.

Passando à análise dos subperíodos de 1830-1849 e 1850-1871, observamos alterações a respeito dos perfis dos casais que legalizavam suas uniões. No primeiro, antes do término definitivo do tráfico externo e quando os portos estavam em fase dinâmica, os africanos eram a maioria, seguidos pelos crioulos.

Posteriormente, esse perfil tendeu a alterar-se, à medida que passava a segunda metade do século e, portanto, de diminuição de africanos entre as escravarias.

Sobre isso, os registros de casamento nos dão algumas dicas.

Entre 1830-1849, os casamentos endogâmicos entre africanos corresponderam a 42 (66,7%), os endogâmicos entre crioulos foram 11 (17,5%), fazendo com que os endogâmicos chegassem a 84,2% nesses anos, contra 10 (15,8%) mistos. Entre 1850-1871, os endogâmicos entre africanos corresponderam a seis (40.0%), os endogâmicos entre crioulos foram sete (46,7%), levando os endogâmicos a 86,7%, contra dois (13,3%) mistos.

Em números absolutos, os casamentos foram diminuindo, sendo que, no segundo subperíodo, mais precisamente, após 1860, os africanos não compareceram mais à cerimônia, tanto para casar com outros de mesma origem quanto com crioulos. Os crioulos, em contraposição, continuaram a marcar presença mesmo após a data.

O movimento de queda de uniões endogâmicas entre africanos, localizado entre 1830 e 1871, em Mambucaba, seguia a tendência verificada desde 1810, no agro fluminense, por Florentino & Góes. A partir desse ano, segundo os autores, a entrada de africanos elevou-se intensamente e, ao contrário, os casamentos entre eles diminuíram. A explicação para o comportamento seria a urgência encontrada pelos africanos em socializar-se, "a urgência escrava (e sistematicamente) de aparentar-se" (Florentino & Góes, 1997:44). Como resultado, aumentaram as freqüências de famílias matrifocais (mães e filhos) e, conseqüentemente, a ilegitimidade e o desgaste do projeto do casamento como "um poderoso agente no desbaste da profunda crosta de hábitos e atitudes inadequadas ao vir a ser escravo" (ibidem:151), visível pelos autores na fase de estabilidade do tráfico, de 1790-1807.

Seria a imensa chegada de africanos a causa da diminuição de casamentos endogâmicos verificada em Mambucaba? A região vinha de fato recebendo tantos africanos a ponto de gerar a urgência em aparentar-se? Não contamos com os números de entrada de africanos na freguesia, mas, sim, 156 registros de batismo de adultos dessa origem, demonstrando a chegada de "estrangeiros" entre 1830 e 1859. Esses registros, a levar-se em conta que, uma vez anotados no livro da freguesia, tratavam de recém-chegados, pois, ao contrário, seriam batizados em outras áreas, demonstram números mínimos, outros poderiam ter vindo, mas batizados nos portos africanos de embarque. Por exemplo, no caso dos cativos que embarcaram nos portos congo- angolanos, havia a tendência a serem batizados antes da viagem; prática que não teria sido comum em relação aos cativos embarcados da Costa da Mina (Soares, 1997:89-91).

Ou seja, existiriam propriedades que, dentro do contexto de término efetivo do tráfico externo, em 1850, conduziram-se à obtenção de cativos, mas não o suficiente para gerar um crescimento populacional, pois, como visto, houve uma diminuição de 0,2% entre 1840 e 1856, movimento que viria a agravar-se após a segunda data.23 Cremos que uma das explicações possíveis viria pelo quadro demográfico que se desenhava na região. O percentual da população africana decresceu de 45.4%, em 1856, para 16,8% em 1872, ou perda, fundamentado nos cálculos sobre os números absolutos, de menos 510 africanos ou 86,4%. Isso significa, indiretamente, que a escravaria estava vivendo um processo de crioulização.24 Após 1860, como dito, os africanos desapareceram dos registros, possivelmente, porque não havia novos africanos, e aqueles que, em Mambucaba, estavam tinham se aparentado, via casamento legal ou por uniões consensuais, e passaram a ser "substituídos" pelos crioulos. Isso explica também a diminuição de casamentos mistos.

As uniões entre crioulos, embora tenham diminuído em números absolutos após 1850, conheceram uma elevação em percentuais, de 17,5% para 46,7%. Essa elevação estaria associada à queda dos dois outros tipos de matrimônios, enquanto que o decréscimo de onze para sete cerimônias ligar-se-ia à queda numérica de escravos, verificada entre 1856-1872, de 63,3%, dos quais, 312 (44,0%) dos nascidos no Brasil desapareceram.25 Porém, o quadro demográfico seria uma das explicações possíveis, a outra se ligaria a uma política senhorial no sentido de dificultar que seus cativos se unissem legalmente. Sheila de Castro Faria explica que esse movimento afetou diversas áreas a partir da década de 1830, quando o risco de fim do tráfico e o aumento do preço dos escravos teriam feito com que os senhores dificultassem a realização dos casamentos de seus escravos. Com isso, os proprietários ficariam livres de possíveis intervenções da Igreja, quando houvesse necessidade de venda de um dos cônjuges, prática censurada pela instituição (Faria, 1998:339).

Esse comportamento senhorial seria mais do que coerente numa realidade como a de Mambucaba, uma área que, no correr da segunda metade do século, conheceu um quadro de transformação econômica e um processo de empobrecimento dos homens livres, se levarmos em conta a presença dos inventários com bens seqüestrados em função de conterem dívidas maiores que os montes.

Por meio dos números absolutos dos casamentos para cada um dos subperíodos, verifica-se uma diminuição das cerimônias ao longo do tempo. Até 1849, os casamentos somaram 73, enquanto, de 1850 em diante, não passaram de 23.26 O aumento da ilegitimidade, ou, em outras palavras, a diminuição de casamentos, foi verificado ainda para áreas de grande lavoura, mais intenso na Província do Rio de Janeiro do que na de São Paulo, mas presente em ambas. Entre 1872 e 1887, os escravos casados e viúvos tenderam a diminuir em 51,5%, no Alto Paraíba, 59,4%, na região do Paraíba do Sul, 81,8%, na região do Cantagalo e, em 67,6%, na Comarca de Campos (Slenes, 1999:86).

A diminuição de casamentos é aqui entendida como uma diminuição de famílias organizadas em torno das nucleares (pai, mãe com ou sem filhos),27 mas que não gerou necessariamente a constituição de cativos não aparentados. A modalidade, uniões sancionadas pela Igreja, era uma das possibilidades de organização familiar, bem como as uniões consensuais. Infelizmente, esse tipo de associação não aparece em nossas fontes, pois eram produzidas pela Igreja, que não as reconhecia. Porém, o silêncio sobre elas pode e será compensado pelas famílias matrifocais, caracterizadas pela presença da mãe e seus filhos, definidos nos registros de batismo como "naturais". Essas famílias tanto devem esconder as tais uniões consensuais quanto as fortuitas.

A redução de casamentos e o número crescente de crianças ilegítimas batizadas na freguesia, entre 1830 e 1871, não podem ser compreendidos como um processo de promiscuidade.28 Eles estavam seguindo uma opção contrária à norma, mas não diferente à de grande parte da população livre da época. A ampliação da ilegitimidade aparece associada a outro movimento, a ampliação do compadrio envolvendo escravos, principalmente após 1850.29 Num quadro de diminuição populacional e de diminuição de casamentos, em contrapartida, de aumento de uniões que não passavam pela Igreja, as cerimônias de batismo eram momentos em que as famílias buscavam contrair laços de compadrio com compadres e comadres também cativos, conhecedores da vida levada em cativeiro, "irmãos" no destino.

Mesmo com o predomínio de mães africanas casadas, demonstração de maior facilidade na localização de parceiros dentro da propriedade em que viviam e trabalhavam, muitas acabaram procriando ilegitimamente, assim como as crioulas.

Foram anotadas, uma única vez, as mães com filhos "naturais", que apareceram nos registros de batismo, e as mulheres com filhos, quase todos pequenos e possivelmente pagãos, nos inventários.30 Pelos dados obtidos, muitas mulheres africanas também ficaram de fora do casamento, 257 ou 49,2%, embora predominassem ligeiramente as crioulas, pois eram 265 ou 50,8% solteiras.31 Casar estava se tornando uma opção cada vez mais rara, porém mais difícil era para as crioulas, principalmente, por maiores dificuldades na obtenção de companheiros nos limites das propriedades; ao contrário, para as africanas, tal como vimos, havia maiores possibilidades de contrair matrimônio, mesmo depois de parir um filho ilegitimamente.

Algumas dessas mulheres, após gerar filhos "naturais", acabaram se casando. Nesse caso, incluíam-se 16 mulheres africanas, que se associaram a 14 homens de mesma origem, um homem crioulo e um de origem desconhecida. Das nascidas no Brasil, seis uniram-se a quatro homens também crioulos e dois africanos. Com exceção de uma cerimônia, todas se deram antes de 1849, anos em que o casamento era menos dificultoso.

Geralmente, essas mulheres, africanas e crioulas, tenderam a gerar apenas um filho ilegítimo antes do casamento, situação vivida por 19, em contraposição a duas, que tiveram dois, e uma com três crianças.

José Joaquim de Siqueira Pinto viu, entre seus cativos, casos de procriação antecedendo o casamento. Isabel, crioula, batizou três filhos "naturais". No ano de 1848, casou-se com José africano e batizaram mais seis filhos.32 O caso ocorrido na propriedade de Antônio Jordão da Silva Vargas também merece ser citado. Madalena, africana, batizada como adulta em 1849, teve sua filha "natural" Rita levada à pia batismal em 1857, e falecida no ano seguinte. No ano de 1859, Madalena compareceu novamente à Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário para casar-se com Calisto, também africano e batizado, coincidentemente, no mesmo ano que sua cônjuge, em 1849. Alguns anos depois, em 1860, ambos batizaram dois filhos, Faustino e Fabiano, gêmeos, e, cinco anos depois, foi a vez da criança Romana.33 Esse é um típico caso de família escrava tendo à frente um casal de mesma origem, em que, antes do matrimônio, a mulher pariu um filho ilegitimamente.

Este poderia ser fruto da união, na época ilegal, entre ela e o escravo que, posteriormente, viria a ser seu marido. Ambos chegaram na mesma época à propriedade como "estrangeiros" e, talvez, por essa associação, aproximaram-se. Seus filhos, tanto a "natural" quanto os legítimos, foram batizados, respectivamente, por um escravo e uma escrava da propriedade, um escravo de propriedade diferente, um escravo da propriedade e outro de propriedade de um parente de Antônio Jordão da Silva Vargas, José Jordão da Silva Vargas e sua esposa Dona Antônia Luíza de Magalhães. Além de assumirem laços matrimoniais na propriedade, Madalena e Calisto usaram do compadrio, um meio de associarem-se a outros escravos, aumentando, assim, o raio de ação de sua família nuclear.

Caso semelhante ao de Luíza, crioula, escrava de Bernardo Soares Ferreira. A escrava batizou sua filha Felisbina em 22 de junho de 1834 e, no mesmo ano, uniu-se em matrimônio com Jacinto crioulo, em 26 de outubro. Posteriormente, em 1838, batizaram Martinho. A primeira filha recebeu como padrinho Antônio José During, proprietário de escravos, e Delfina Maria, livre, enquanto o filho legítimo recebeu como padrinhos e madrinhas Rufino e Joaquina, escravos de Manoel da Costa Lima. Esse perfil de compadrio, variando quanto a filho ilegítimo e legítimo, não foi exclusivo deles, a tendência a padrinhos livres entre as crianças ilegítimas foi comum, enquanto que para as legítimas predominaram, particularmente entre as madrinhas, aquelas também escravas.

Portanto, a ilegitimidade poderia não somente representar uniões fortuitas, mas uniões que dependiam da boa vontade senhorial para serem efetivadas; outras, envolvendo escravos de diferentes propriedades, estavam fadadas a manterem-se consensuais.

Concluindo, os escravos de Mambucaba, ao se casarem, buscavam cônjuges de mesma origem. Os africanos, "estrangeiros", uma vez que chegavam sem laços de amizade e familiar ligavam-se a outros também identificados na região como "estranhos", afinados por ausência de conhecimentos. Eles possuíam maiores possibilidades de localizar, dentro da propriedade a que a sorte os "jogou", futuros cônjuges; primeiro porque, eram em número representativo, e, segundo, porque não tinham laços familiares estabelecidos, o que, a princípio, viabilizava o casamento com qualquer um da propriedade. Os crioulos, por sua vez, também casavam entre si. Estes acabavam sendo menos presentes nas cerimônias, pois tinham maiores dificuldades em localizar parceiros nas propriedades em que viviam, conseqüentemente, buscavam companheiros para além dos limites das propriedades. Como o casamento inter- propriedades era evitado pelos senhores de escravos, os crioulos tenderam a estabelecer uniões consensuais.

Para os africanos, "estranhos", o matrimônio significava um dos caminhos para a ressocialização e oferecia aos envolvidos vantagens emocionais.

Mas existiam outros caminhos para a socialização, como as uniões consensuais, amizades que iam sendo estabelecidas no decorrer do dia-a-dia e pelos laços de compadrio, que adquiriam, quer seja como pais de batizandos, quer seja como padrinhos. Com isso, o "estranho", gradativamente, tornava-se "conhecido". Para os crioulos, o casamento geraria a ampliação e confirmação de laços estabelecidos, possíveis também mediante uniões não reconhecidas pela Igreja e o compadrio. Para ambos, a família seria um lugar de criação e preservação de espaços de resistências dentro da sociedade escravista, espaço em que experiências foram passadas aos descendentes, e na elaboração de um universo próprio a eles.

Para os senhores, representaria um caminho a fim de viverem "melhor" a escravidão. Porém, dentro desse projeto, estavam excluindo, gradativamente, o casamento sancionado pela Igreja, no decorrer do século XIX, garantindo a possibilidade de venda de suas escravarias, caso houvesse necessidade. Esse tipo de comportamento era coerente no caso de realidades como a de Mambucaba, onde o contexto da segunda metade do século gerou maiores dificuldades para os homens livres, constatadas pelos casos de endividamento. Os escravos, por sua vez, respondiam a essa dificuldade, estabelecendo famílias matrifocais, elevando a ilegitimidade e fazendo do nascimento de filhos um caminho para efetivação de laços de compadrio tendentes a serem estabelecidos com outros escravos, especialmente, no caso das madrinhas.

Notas 1.

A Freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Mambucaba, criada em 1808, em território do atual município de Angra dos Reis, era fronteiriça a Parati. Em seu território, estão, hoje, a Vila Histórica de Mambucaba e as Usinas Nucleares de Angra dos Reis.

2.

Tais livros apresentam as informações contidas no Almanaque Laemmert para Angra dos Reis entre os anos de 1844 e 1850.

3.

Somando as embarcações que chegaram ao Rio de Janeiro provenientes do litoral sul-fluminense, ou seja, dos portos localizados em Mangaratiba, Angra dos Reis e Parati, constatamos: entre 1828-1838, foram 655 entradas, sendo que 74,5% transportavam café; entre 1839-1849, somaram 727, sendo 94,5% com carregamento de café; entre 1850-1860, foram 805, dos quais 94,8% com a rubiácea; e entre 1861-1871, 533 entradas com 82,6% de café. Dados extraídos do Jornal do Comércio, dos meses de março e outubro de 1828 a 1871. Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional, RJ. Para mais, ver Vasconcellos, (2001:52-54).

4.

Quadro Estatístico da população da província do Rio de Janeiro, segundo as condições, sexos e cores-1840, extraído do Relatório de Presidente de Província do Rio de Janeiro de 1840 e 1841; Recenseamento da população livre e escrava da Província do Rio de Janeiro em 1856, presente no Relatório de Presidente de Província de 1858. Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional, RJ.

Recenseamento Geral do Brasil, 1872. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), RJ.

5.

Tal movimento foi comum a outras regiões da Província do Rio de Janeiro: Capivary possuía 5.999 escravos em 1856, enquanto em 1872 eram 3.903 (Castro, 1987:39). Assim como em algumas das freguesias do município de Magé, no RJ, como Piedade e Suruí, que chegaram a 20% de escravos em 1872. Outras conheceram uma ampliação populacional como a freguesia de Guapimirim, também em Magé (Sampaio, 1998:124).

6.

Por meio da análise de 19 inventários de proprietários de escravos de Mambucaba, verificamos que 60,0% de proprietários com até 3 escravos tinham dívidas superiores aos montes brutos e 22,2% daqueles com 15 ou mais cativos.

Inventários post-mortem de proprietários de escravos de Mambucaba, 1840 a 1881.

Arquivo Nacional e Museu da Justiça do Rio de Janeiro.

7.

Recenseamento da população escrava da Província do Rio de Janeiro em 1856, presente no Relatório de Presidente de Província de 1858. Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional, RJ. Recenseamento Geral do Brasil, 1872. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), RJ.

8.

Foram 215 proprietários que enviaram escravos batizandos e noivos, e 36 que ofereceram exclusivamente padrinhos e madrinhas para o batismo.

9.

A passagem pelo ritual do batismo era uma das condições exigidas para os indivíduos convidados tornarem-se padrinhos ou madrinhas. Os procedimentos e critérios adotados foram inspirados no trabalho de Góes, 1993.

10.

Baseamo-nos nas idades estipuladas por Florentino & Góes (1997:66).

11.

Isso porque contamos com maior número de registros paroquiais. Os inventários, como dissemos, são somente 19, num total de 215 proprietários identificados.

12.

Casamentos endogâmicos por origem envolviam ambos os noivos africanos ou ambos crioulos e os mistos, noivos africanos e crioulas ou vice-versa.

13.

Livro de Casamentos de Escravos da Freguesia de Mambucaba, 1830-1871. Convento do Carmo de Angra dos Reis, RJ.

14.

Inventários post-mortem de proprietários escravistas de Mambucaba. Museu da Justiça do Rio de Janeiro e Arquivo Nacional. Trata-se de senhores localizados nos registros paroquiais de casamento e que possuíam propriedades ou viviam na freguesia.

15.

Chamamos de famílias matrifocais aquelas constituídas por mães solteiras e seus filhos e as famílias nucleares as que contavam com casais unidos junto a Igreja, com ou sem filhos.

16.

Optamos pela divisão de escravarias a partir da premissa de que, a fim de analisar Mambucaba, não seria pertinente dividir por faixas de tamanho de propriedades pelos números definidos geralmente, quando se estudam áreas de "plantationsescravista". Baseamo-nos nas afirmações e na organização efetivada por Castro (1987:31-115).

17.

Para saber sobre famílias extensas e compadrio em Mambucaba, cf.Vasconcellos (2001).

18.

Acreditamos que, se houvessem casado, após 1830, em Mambucaba, seus registros estariam presentes no livro consultado. Outra possibilidade seria a da chegada do casal na região unidos segundo os preceitos da Igreja Católica.

19.

Livros de Casamento e de Batismo de Escravos da Freguesia de Mambucaba, 1830- 1871. Convento do Carmo, Angra dos Reis, RJ.

20.

Ao menos nos anos de estudo da pesquisa, pois não as localizamos em nenhum dos registros de casamento disponíveis.

21.

Livros de Casamento e de Batismo de Escravos da Freguesia de Mambucaba, 1830- 1871. Convento do Carmo, Angra dos Reis, RJ.

22.

Livros de Casamento e de Batismo de Escravos da Freguesia de Mambucaba, 1830- 1871. Convento do Carmo, Angra dos Reis, RJ.

23.

Quadro Estatístico da população da província do Rio de Janeiro, segundo as condições, sexos e cores-1840, extraído do Relatório de Presidente de Província do Rio de Janeiro de 1840 e 1841 e Recenseamento da população escrava da Província do Rio de Janeiro, em 1856, presente no Relatório de Presidente de Província de 1858. Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional, RJ.

24.

Recenseamento da população escrava da Província do Rio de Janeiro em 1856, presente no Relatório de Presidente de Província de 1858. Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional, RJ. Recenseamento Geral do Brasil, 1872. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), RJ.

25.

Recenseamento da população escrava da Província do Rio de Janeiro em 1856, presente no Relatório de Presidente de Província de 1858. Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional, RJ. Recenseamento Geral do Brasil, 1872. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), RJ.

26.

Entre 1830-1849, foram 63 casamentos endogâmicos ou mistos e 10 sem especificação de origem de um ou dos dois cônjuges, o que totaliza 73 registros; entre 1850-1871, os casamentos endogâmicos ou mistos chegaram a 15, e aqueles sem especificação de origem de um ou dos dois cônjuges o que corresponde a 23 registros nos anos definidos.

27.

Cremos que os registros de casamento possam dar uma estimativa sobre os padrões de organizações das famílias nucleares, da mesma forma que os inventários post-mortemgarantem um olhar mais amplo, chegando às matrifocais.

Aqui, neste estudo, matrifocais são vistas a partir da freqüência de ilegitimidade das crianças batizadas.

28.

Segundo os registros de batismo, houve uma ampliação de crianças ilegítimas batizadas: entre 1830-1849, foram 27,3% de legítimos e 72,7% de ilegítimos; entre 1850-1871, 9,6% de legítimos contra 90,4% de ilegítimos. Livro de Registros de Batismo de Escravos da Freguesia de Mambucaba, 1830-1871. Convento do Carmo, Angra dos Reis, RJ.

29.

Os padrinhos e madrinhas escravos passaram de, respectivamente, 35,0% e 44,8%, entre 1830-1849, para 59,3% e 77,6% entre 1850-1871. Livro de Batismos de Escravos da Freguesia de Mambucaba, 1830-1871. Convento do Carmo, Angra dos Reis, RJ.

30.

Isso significa dizer que a amostragem vai além de 1871, chegando ao ano de 1881, devido à utilização dos inventários.

31.

Não foram contadas 80 mães com origens desconhecidas.

32.

Livro de Registros de Batismos de Escravos da Freguesia de Mambucaba, 1830- 1871 e Livro de Registros de Casamento de Escravos da Freguesia de Mambucaba, 1830-1871. Convento do Carmo, Angra dos Reis, RJ.

33.

Idem.


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