A construção da nação (pós-) colonial: África do Sul e Suriname, 1933-1948
Este artigo pretende analisar alguns aspectos da construção da nação (pós-
) colonial nas décadas de 1930 e 1940 na África do Sul e Suriname. Os discursos
abaixo ' sobre "raça" e nação ' são contemporâneos, e têm uma matriz
comum (os Países Baixos e o mundo de origem colonial neerlandesa). Contudo,
inserem-se em contextos bastante diferentes ' um, numa colônia no limite
meridional da bacia do Caribe, outro naquele que era na época um dos
pouquíssimos países africanos independentes. Contudo, há semelhanças
importantes entre eles, apesar da disparidade de seus contextos. Ambos são
discursos de origem acadêmica que se tornaram em seguida o fundamento de
políticas estatais de construção da nação. Além disso, são discursos originados
por brancos, mas tratam, em grande medida, do destino de populações não-
européias. A diferença principal entre eles é que um é um discurso nitidamente
colonial, enquanto o outro se constrói como discurso autóctone e
antiimperialista. O discurso relativo ao Suriname e seu contexto serão
examinados em mais detalhe, já que examinei mais detidamente o discurso sul-
africano anteriormente (Rosa Ribeiro, 1996, 1998). Além do mais, o discurso e
contexto surinameses são ainda mais desconhecidos entre nós, apesar da
proximidade geográfica. Primeiro, apresentarei as idéias de G. Cronjé, um
ideólogo do apartheid.
Embora tenha tido vários precursores, e suas idéias não serem exatamente
originais, o sociólogo Geoffrey Cronjé sistematizou em seus trabalhos dos anos
quarenta as premissas básicas e linhas gerais do que seria logo em seguida a
política de apartheid (ver Dubow, 1989).1 As idéias das obras de Cronjé seriam
utilizadas pelo Partido Nacionalista a partir de 1948 na implantação do sistema
de apartheid e como justificativa ideológica para as políticas de apartheid
(Coetzee, 1991:4). Um de seus propósitos é criar um arcabouço ideológico contra
o imperialismo e o "liberalismo" britânicos, que ele condena a todo
momento em sua obra. O campo do apartheid, tal como desvelado em sua obra,
pretende ser uma clareira intensamente iluminada e limpa, em meio a uma
situação supostamente caótica. A palavra de ordem que Cronjé utiliza
repetidamente em sua principal obra é "consistência", enfatizada como
um encantamento no texto (Cronjé, 1945). Ele apregoa que o sistema de apartheid
tem que ser "consistente". Para ele, chega-se a essa consistência
através da totalização do sistema, isto é, através do emprego, em todo o campo
abrangido pelo pensamento, de uma lógica totalizante, que tem como pretensão
exilar e destruir toda ambigüidade, toda nuança, toda exceção, toda mediação,
criando em seu lugar um espaço sem rincões escuros ou franjas sombrias, sem
contradições nem paradoxos.
Nesse sentido, a nêmese de Cronjé é a mengelmoes-samelewing ou a
"sociedade-papa". Nessa associação indistinta (outra tradução
possível, embora demasiado eufemística), toda diferença termina por perecer
porque seus contornos não podem ser mantidos. A variedade da criação
(skeppingsverskeidenheid) é, para Cronjé, algo fundado tanto na natureza quanto
na vontade divina. Essa variedade sofre um prejuízo irreparável na situação de
mengelmoes (mistura). Isto se dá porque nesta última nenhuma identidade pode
ser mantida: através do contato contínuo e da mistura de sangue
(bloedvermenging), toda diferença (étnica e racial) se diluirá e o resultado
será uma "papa" ' isto é, o caos e a total falta de ordem. Essa
"sociedade-papa" seria o resultado último da mediação, do compromisso
e da ambigüidade. Para Cronjé, a África do Sul dos anos quarenta estava a
perigo exatamente porque as raças viviam umas em meio às outras, no mesmo
espaço físico, apresentando assim inumeráveis "pontos de contato"
(aanrakingspunte) entre elas. O contato é aqui o agente supremo da perda de
identidade e a mistura de sangue (o casamento ou relação sexual interraciais) é
para Cronjé sua conseqüência mais nefasta. No seu texto, a mistura de sangue é
uma metáfora poderosa para a "infiltração" (insypel) do diferente
(anders) dentro de si próprio (eie) (ibidem).
A situação de então na África do Sul é vista por Cronjé como uma situação em
que a diferença está ameaçada. Existe, segundo Cronjé, um processo de
"abastardamento total" (uitbastering) que leva à aniquilação
(vernietiging) da variedade racial. Esse processo também se apresenta na esfera
cultural, especialmente no que diz respeito à destribalização (ontstamming) do
banto. Devido à destribalização, a "cultura banto inata" (eie
Bantoekultuur) estaria desaparecendo. Caso isso continuasse, tanto a "raça
banto" quanto a "variedade cultural" (kultuurverskeidenheid) da
humanidade como um todo ficariam empobrecidas. A mistura do sangue é aqui
altamente prejudicial, e ela é equacionada com a perda não só da especificidade
de cada raça como também da perda da especificidade cultural (Cronjé menciona
as duas praticamente na mesma sentença ' ibidem:11). Nesse sentido, a perda da
própria especificidade (eie) é fatal. O "banto destribalizado" perde
sua cultura, mas não consegue adquirir a cultura européia, senão
superficialmente. Os "danos espirituais" advindos dessa situação são
irreparáveis porque nenhuma assimilação é vista como possível ou desejável, da
perspectiva de Cronjé. O banto destribalizado torna-se, nessa visão,
praticamente menos que humano, já que não pertence mais à sua própria cultura,
nem pode pertencer à cultura européia (que lhe é, nessa visão,
irremediavelmente forânea e alheia). A diferença aqui não está aberta a
compromissos ou mediações: ela é absoluta, ou quase. A perda da identidade aqui
leva, portanto, em última instância, à perda da própria humanidade de cada um.
E é exatamente dessas duas premissas ' da naturalização da diferença racial e
cultural e do perigo do contato para a manutenção dessa variedade ' que surge a
proposta de separação (apartheid).
[...] inclinamo-nos à conclusão de que o aparato racial
[rassetoerusting] do nativo em seus aspectos corporais e mentais é em
primeira instância diverso [anders] (isto é, de tipo distinto
[andersoortig] e valor distinto [anderswaardig]) daquele do homem
branco. Em última instância, não será este o sentido e significado da
variedade racial? Se assim for, então isto significa que cada raça
tem seu caráter [aard], predisposição [aanleg] e função próprias e
distintas, como é o caso de toda variedade em outros domínios da
natureza. A variedade racial (independentemente de qualquer diferença
de posição entre as raças) leva-nos necessariamente ao ponto de vista
de que cada raça tem uma tarefa e um chamado [roeping] próprio e
distinto a ser realizado de acordo com suas próprias possibilidades.
E cada raça pode realizar sua tarefa e seu chamado próprios da melhor
maneira, de acordo com seu caráter e suas possibilidades, se tiver as
oportunidades necessárias [para fazê-lo] em separado [apart]. Em
razão da variedade racial, uma mistura [mengelmoes] de raças é algo
artificial. E em razão da variedade racial, a separação [apartheid]
das raças é algo natural (ibidem:19, tradução minha, ênfases no
original).
Cronjé adverte que a segregação não é algo que o homem branco só deseja para se
ver livre do "nativo". Em realidade, para que a segregação, ou
apartheid, seja bem implementada, deve-se dar a todas as raças a oportunidade
de se desenvolverem como raça de acordo com suas próprias possibilidades. Ou
seja, a segregação é para todos. "Toda raça deve se desenvolver em
separado [apart ontwikkel]", enfatiza Cronjé (idem, ênfase no original).
Ainda segundo ele, a segregação total substituirá a sociedade-papa por
comunidades de volk ou étnicas (volksgemeenskappe) diversas e distintas: uma
comunidade étnica branca, uma ou mais comunidades étnicas bantos e uma
comunidade mestiça.2 Cronjé acrescenta que isso se dará com uma comunidade
racial "ao lado da outra [naas mekaar] e não uma em meio à outra [een te
midde van die ander]" (ibidem:80, ênfase no original).
O pensamento de apartheid ' ilustrado aqui por citações da obra de Cronjé '
rejeita, portanto, a miscigenação, relegando a figura do mestiço à categoria de
uma espécie de minoria étnica ou mais uma comunidade étnica, ao lado das
comunidades banto e branca. A construção da nação sul-africana no pensamento de
apartheid dá-se, portanto, rejeitando a mediação simbólica representada pela
figura do mestiço, assim como rejeitando as "comunidades bantos" como
parte da nação. Assim, na África do Sul, o kleurling ou Coloured (pessoa de
ascendência "racial" mista) não constituiu nunca a base da
nacionalidade no pensamento de apartheid. Pelo contrário, pode-se postular que
o pensamento de apartheid se construiu contra a miscigenação, vista como
totalmente nociva à manutenção de identidades raciais ou étnicas distintas.
Cronjé e outros pensadores ' como ele, africâneres ' postularam que o bôer (o
sul-africano branco de origem colonial no tempo holandês, isto é, antes de
1800) ou africâner sentem por natureza uma aversão (afkeer) contra a mistura
racial. Por exemplo, Eloff postula que o típico jovem bôer "simplesmente
não pode imaginar como é possível para um homem branco ser culpado de crime tão
hediondo" com o intercurso sexual com uma mulher de cor. Ainda segundo
ele, a tradição bôer requer que "um jovem moço não fale com mulheres
nativas ou mestiças" a não ser sobre assuntos absolutamente necessários
(como salários). Em presença de uma jovem de outra raça, o jovem bôer
supostamente baixa os olhos... (Eloff, 1942:95-6).
Naturalmente, esse pensamento está cheio de contradições: a primeira é a
própria presença de uma comunidade mestiça na província do Cabo Ocidental que,
embora demograficamente de âmbito mais limitado que o grupo branco, assim como
este tem uma origem no passado colonial distante. Uma explicação da época era
que os mestiços teriam surgido no século XVII, nos inícios da colonização
holandesa, quando a sociedade colonial ainda não se havia consolidado
suficientemente para que suas normas raciais surgissem e se fizessem valer.
Além do mais, essa população mestiça também teria sua origem supostamente no
intercurso de mulheres de cor com marinheiros de passagem no porto da Cidade do
Cabo, que durante muito tempo foi ponto de parada obrigatório na rota entre
Europa e Ásia antes da abertura do Canal de Suez em 1869. Bruwer ' um
antropólogo africâner ' menciona o "surgimento simultâneo" dos dois
povos (volke) ' kleurling ou mestiço e africâner ' na África do Sul (Bruwer,
1963:1). Isto é, os dois povos teriam surgido no mesmo local e na mesma época,
mas separadamente. Nesse sentido, nesse pensamento o mestiço é idealmente
apenas mais uma comunidade étnica ou volk.
Não cabe aqui analisar a implementação desse pensamento na prática, a partir de
1948, por parte do governo do Partido Nacionalista (africâner).3 Tampouco se
trata aqui de fazer uma análise profunda desse pensamento.4 Basta lembrar que
sua implementação durou décadas, e significou um grau de exclusão social dos
grupos não-brancos na África do Sul que parece extremo até em comparação com a
própria história sul-africana anterior a 1948. Basicamente, os não-brancos '
principalmente os africanos ' não eram considerados parte da nação sul-
africana, que seria assim basicamente uma nação exclusivamente de brancos, os
africanos ficando relegados aos seus próprios países (criados pelo governo de
apartheid como países supostamente autônomos e mesmo independentes, os famosos
bantustões, e que nunca foram reconhecidos pela comunidade internacional).5
Seja como for, o pensamento de apartheid é mencionado aqui pelo seu valor
comparativo.
Naturalmente, as diferenças entre África do Sul e Suriname são tão vastas que
dificilmente poderiam ser plenamente catalogadas de maneira resumida: racista
ou não, a África do Sul era um Estado independente, o Suriname sendo uma
colônia até 1975. A dimensão territorial dos dois países é também totalmente
desigual, para não mencionar o peso demográfico de ambos (hoje a população sul-
africana beira os cinqüenta milhões de habitantes, enquanto a surinamesa gira
em torno de meio milhão, além dos quase trezentos mil surinameses residentes
nos Países Baixos). Economicamente, dificilmente os dois países poderiam ser
mais díspares: enquanto a África do Sul é, de longe, a maior potência econômica
do seu continente, e tem uma imensa indústria e setor de serviços, o Suriname é
uma das menores e mais pobres economias da América do Sul. Contudo,
historicamente, ambos os países têm uma experiência colonial comparável, tanto
inglesa como holandesa (se bem que, no caso surinamês, a presença inglesa,
embora tenha ocorrido primeiro na história, tenha sido muito breve6). Ambos
surgiram como colônias quase simultaneamente: em 1650, no caso do Suriname, e
1652, no caso sul-africano.7 Ademais, ambos foram colônias que, durante os
séculos XVII e XVIII, pertenceram a companhias ou sociedades comerciais, e não
a uma Coroa. Antes de 1800, não houve o objetivo explícito de colonizar o
território com europeus no caso da África do Sul, embora isto tenha acontecido
na prática.8 Esta última era meramente um posto de reabastecimento na rota das
Índias, enquanto o Suriname era uma colônia de plantation, onde se cultivavam
açúcar, café e outras safras exclusivamente para exportação. Durante muito
tempo, o Suriname teve uma pequena população de proprietários brancos (judeus e
não-judeus), uma imensa maioria escrava e uma pequena população livre.9 A
Colônia do Cabo da Boa Esperança (embrião da atual África do Sul) possuía uma
população branca muito mais substancial, e menos escravos (não havia
plantation, mas apenas médias e pequenas propriedades). Antes da imensa
expansão territorial de finais do século XVIII e século XIX (Muller, 1987;
Worden, 1994), não havia muitos africanos autóctones tampouco (os habitantes
originais do Cabo eram os Khoisan, pequenos grupos pastoris ou de caçadores).
Assim como no Suriname, a população livre de cor era minoritária (na África do
Sul até hoje o é, inclusive com relação ao grupo branco. Ver Goldin, 1987).
Enquanto a África do Sul adquiriu uma população branca e mestiça minoritária,
mas substancial e permanente, o Suriname, com a decadência da plantation a
partir do último quartel do século XVIII, que se mostrou irreversível durante o
século XIX, perdeu quase toda a sua população branca não-judia já em meados dos
oitocentos. Quanto aos judeus, com a maior tolerância na Europa ocidental com
relação a eles, emigrariam em massa na virada do século XIX para o XX,
constituindo hoje apenas uma minúscula minoria no país. Os pouquíssimos brancos
não-judeus residentes no país são descendentes de uma pequena leva de
fazendeiros holandeses emigrados em meados do século XIX, e constituem uma
minoria (e já bastante miscigenada). Assim, ao contrário do restante da América
do Sul, o Suriname, junto com suas vizinhas Guiana e Guiana francesa, é um país
onde praticamente não existem brancos de origem colonial, situação inusitada no
continente. Outra característica que o país comparte só com as vizinhas Guianas
e Trinidad é o fato de que grande parte (metade ou mais) da população é de
origem asiática, situação igualmente única no continente, onde descendentes de
asiáticos constituem somente minorias bem pequenas.
Os asiáticos entraram no país a partir de meados do século XIX. Com a
proximidade da abolição ' que o governo metropolitano em Haia havia fixado para
1863 (enquanto a África do Sul e demais colônias inglesas aboliram a escravidão
já em 1834) ' havia a necessidade de garantir mão-de-obra para as fazendas
(chamadas plantages). Depois de experimentos malsucedidos com imigrantes
caribenhos e portugueses, experimentou-se com imigrantes chineses entre 1854 e
1874 (Ramsoedh, 1990:101), que são ainda uma minoria visível dentro da
sociedade surinamesa. Contudo, seria com a imigração indiana ' a partir dos
anos de 1870 ' e, mais tarde, a javanesa (a partir de 1891) ' que se resolveria
o problema da mão-de-obra na lavoura para exportação (Höefte, 1987).
Após a abolição, os governos colonial e metropolitano decidiram-se por um
programa de assimilatie ou "assimilação" da população de cor da
colônia (Ramsoedh, 1995). Estabeleceu-se o ensino obrigatório em língua
neerlandesa (holandesa) para todos os habitantes da colônia em 1876. Em 1892
todos os surinameses tornaram-se oficialmente "súditos neerlandeses"
(com exceção dos imigrantes asiáticos e seus descendentes). Com a saída dos
brancos, e a escolarização efetiva de toda uma geração de crianças de cor em
escolas do governo (que possuíam um currículo idêntico ao das escolas na
metrópole), deu-se um mínimo de mobilidade social a partir de finais do século
XIX, com os mestiços (kleurlingen) passando a ocupar posições de baixo e médio
escalão na sociedade colonial (e mais tarde também de alto-escalão). O
parlamento colonial ' com direito de voto censitário e extremamente limitado '
criado em 1866, com a entrada do século XX e a saída dos judeus da colônia,
passou a ser dominado pela elite de cor, formada por mestiços claros. Essa
elite era frontalmente contra a importação de trabalhadores da Ásia, mas nada
podia fazer (o parlamento tinha poderes muito limitados). Já na virada do
século, ficou claro tanto para Haia como para o governo colonial que as
plantages não tinham nenhum futuro (hoje apenas uma sobrevive no país '
Mariënburg enquanto no auge do período colonial, no século XVIII, chegaram a
existir mais de seiscentas). A imigração asiática, portanto, passou a assentar-
se em outra lógica: a da ocupação da terra por pequenos proprietários rurais
produzindo para sua própria subsistência e, eventualmente, também para a
exportação. Deve-se notar que por essa época o Suriname já há muito havia
deixado de dar lucros significativos para a metrópole e, assim como outras
antigas colônias de plantation no Caribe, tornara-se uma fonte contínua de
déficit orçamentário, mesmo após o desenvolvimento da importante indústria de
extração de bauxita por parte de companhias americanas a partir da década de
1910.
Nessa situação, tornou-se cada vez mais imperativo criar um plano de
desenvolvimento para a colônia que eventualmente a tornasse financeiramente
independente da metrópole (embora não se pensasse ainda na época ' antes da
Segunda Guerra Mundial ' em dar-lhe a independência). Foi nesse sentido que a
escolha de E.B. Kielstra para ser o novo governador colonial em 1933
apresentou-se como uma escolha importantíssima aos olhos do governo
metropolitano. A tarefa dada a Kielstra era nada mais, nada menos que a de
criar um modelo de desenvolvimento colonial financeiramente sustentável e que
levasse eventualmente ao progresso do país. Por várias razões, Kielstra era
considerado a pessoa ideal para levar a cabo esse plano.
Kielstra havia sido funcionário colonial (ambtenaar) na Índia Neerlandesa entre
1903 e 1915 (também conhecida em português pelo nome de "Índias Orientais
Holandesas", atual Indonésia). Lá trabalhara sob o comando de Hendrik
Colijn, político calvinista-ortodoxo conservador que se tornaria ministro de
colônias em 1933 e, em 1937, primeiro-ministro dos Países Baixos. Colijn tinha
uma agenda colonial extremamente conservadora ' era, por exemplo, contra o
movimento independentista indonésio (Hurgronje, 1928). O modelo colonial que
predominava então, com relação à Índia Neerlandesa, após o experimento da
associatie ou política de associação (limitada) entre neerlandeses e
indonésios, que existiu durante alguns anos entre a virada do século e a década
de 1920, era de manutenção do status quo colonial, especialmente após 1930 (van
Doorn, 1994; de Graaff, 1997). Ao contrário do Suriname, onde após a abolição
em 1863 não havia nenhuma distinção jurídica entre os habitantes da colônia, na
Índia Neerlandesa predominava um modelo quase antiassimilacionista, que lembra
o apartheid ulterior na África do Sul. A população do arquipélago estava
dividida entre três categorias etno-jurídicas que determinavam direitos e
privilégios altamente diferenciados em todas as esferas da vida, desde o
casamento e a herança até a posse da terra e o direito a voto: os
"nativos" (Inlanders), que eram a esmagadora maioria da população; os
"orientais estrangeiros" (Vreemde Oosterlingen, em sua maioria de
origem chinesa, mas nascida no próprio arquipélago); e, finalmente, os europeus
(Europeanen), cuja maioria havia nascido nas ilhas, e muitos dos quais eram
mestiços e não sabiam falar o neerlandês (essa categoria constituía 0,47% da
população colonial total em 1930) (Fasseur, 1992).
As três categorias estavam submetidas a direitos diferentes ' tanto na área de
direito penal e comercial como no direito de família. Essas três categorias
jurídicas ' e os direitos diferenciados que a elas se aplicavam ' se manteriam
até o final da era colonial (marcado pela invasão japonesa de 1942). A
assimilação na Índia neerlandesa era, assim, muito mais limitada do que no
Suriname ' praticamente só a elite nativa e chinesa aprendia efetivamente a
falar neerlandês nas escolas, por exemplo, e mesmo o fato de se falar o
neerlandês e ser uma pessoa de posses não implicava a ascensão automática ao
estatuto jurídico de "europeu", muito pelo contrário. Além do mais,
existia uma escola jurídico-antropológica metropolitana, centrada na
Universidade de Leiden e na figura do jurista Cornelis van Vollenhoven, que
preconizava o direito consuetudinário nativo (adatrecht) (Sonius, 1976; Geertz,
1983). Isto é, defendia a utilização pela administração colonial, parcial ou
plena, das muitíssimas tradições jurídicas consuetudinárias (chamadas adat em
malaio) encontradas nas milhares de ilhas e centenas de etnias do arquipélago.
Embora essa visão nunca se tenha efetivado plenamente numa política colonial
consistente, ela não deixou de ser influente (e Kielstra a compartilhava, como
mostra Ramsoedh).
Após a abolição, em 1863, o Suriname, ao contrário da Índia, foi considerado
oficialmente como uma "colônia neerlandesa" (Nederlandse
volksplanting), onde o caráter neerlandês da sociedade deveria ser incentivado
e mantido em todas as esferas, da educação ao direito e sistema político.
Também ao contrário da Índia Neerlandesa, o princípio jurídico imperante era o
concordantiebeginsel, ou "princípio de concordância" entre o sistema
jurídico colonial e o metropolitano. Isto é, as leis surinamesas deveriam se
espelhar nas da metrópole e, sempre que possível, serem semelhantes ou
idênticas a elas. Ainda ao contrário da Índia, que se acreditava que algum dia
se tornaria independente (embora num futuro muito distante), o Suriname era
visto como totalmente dependente da metrópole para sua identidade, já que as
autoridades coloniais acreditavam que os ex-escravos não tinham uma cultura
própria, ao contrário dos habitantes da Índia Neerlandesa, e, portanto, eram
meros receptáculos para uma cultura neerlandesa metropolitana. Assim, no
Suriname, até os anos trinta, aos olhos da metrópole só uma política
assimilacionista fazia sentido (Ramsoedh, 1990:91). Assim, na Índia via-se a
presença neerlandesa como, em última instância, temporária (mesmo que a
independência ainda viesse a tardar muito, segundo percepções neerlandesas), já
que não havia uma identidade última entre colônia e metrópole, enquanto no caso
surinamês se dava exatamente o contrário, a Guiana holandesa (como o país era
chamado no Brasil e outros países durante a época colonial) sendo de certo modo
uma extensão da metrópole no ultramar.
A tradição de administração colonial da Índia Neerlandesa, portanto, era muito
diferente da tradição colonial neerlandesa no Caribe após meados do século XIX:
naquela primeira havia uma ênfase muito clara na diferenciação, ênfase essa que
variava muito através das várias administrações coloniais, mas que se mantinha
como fio condutor da política colonial.10 Após seus anos como funcionário
colonial na Índia, Kielstra tornou-se o professor de administração ou economia
política colonial (koloniale staathuishoudkunde) na nova faculdade de estudos
coloniais fundada em 1925 para competir com a de Leiden.11 Essa faculdade
diferenciava-se da de Leiden (centro tradicional de formação de funcionários
coloniais, que eram obrigados a freqüentá-la antes de serem enviados para as
ilhas), era mais conservadora e havia sido criada com o apoio (inclusive
financeiro) de setores empresariais importantes, principalmente os ligados à
Shell e à indústria petrolífera colonial operando em Sumatra (daí o nome
coloquial da faculdade, petroleumfaculteit). Devido ao seu passado colonial, à
sua experiência acadêmica, sua política conservadora e à sua ligação com
Colijn, Kielstra foi considerado uma escolha ideal para o cargo de novo
governador daquela que passara a ser chamada (junto com Curaçau) no século XX
de noodlijdende kolonie ("colônia sofredora"), devido à pobreza
generalizada e à falta de recursos internos importantes (que contrastava muito
com a situação na Índia Neerlandesa). 12
Ao instalar-se em Paramaribo, Kielstra foi inicialmente muito bem recebido pela
elite mestiça (kleurling) do grupo
Creool
.13 Encontrou, contudo, uma capital inchada com imigrantes de origem rural. Com
a abolição, após o período de aprendizado forçado (no qual os ex-escravos,
apesar de livres, eram obrigados por lei a ficar nas fazendas de seus antigos
senhores trabalhando como assalariados), que terminou em 1873, a população
liberta gradualmente mudou-se em grande número do campo para a capital.14
Nesta, havia pouco ou mesmo nenhum trabalho. Para Kielstra, assimilar essa
população à cultura neerlandesa ' através da escolarização em língua
neerlandesa e da urbanização ' havia sido um erro grave da administração
colonial.15 Havia criado uma classe empobrecida e urbana que não possuía
utilidade para a colônia. Kielstra acreditava que os Creolen deveriam sair da
cidade e voltar para o campo, onde poderiam receber pequenos lotes para
praticar a agricultura.
Contudo, o projeto de construção da nação colonial de Kielstra não se centrava
em absoluto na população negra assimilada. Sua experiência administrativa na
Índia Neerlandesa e seu conservadorismo político o levaram a ter uma simpatia
quase natural pelos imigrantes asiáticos do Suriname e seus descendentes. Estes
eram virtualmente marginalizados na colônia, tanto pela administração colonial
como pela elite negra. Antes da Segunda Guerra Mundial, habitavam quase
exclusivamente o campo, freqüentemente em comunidades étnicas mais ou menos
fechadas (Ramsoedh, 1990:100). Embora houvesse negros no campo também, em
linhas gerais havia-se estabelecido uma divisão no país, com a maioria dos
negros residindo em áreas urbanas ou próximos a elas, e a quase totalidade dos
asiáticos em áreas rurais mais ou menos etnicamente exclusivas, habitadas por
indianos (Hindostanen) ou javaneses (Javanen).16 Antes de 1927, nenhum
imigrante ou descendente de imigrante asiático podia tornar-se súdito
neerlandês (ibidem). A idéia era que voltariam a seus países depois de vencidos
seus contratos de trabalho (que os obrigavam a trabalhar em determinada
plantage sob pena de castigos corporais e prisão ' poenale sanctie ' caso se
recusassem a fazê-lo. Cf. Höefte, 1990). Contudo, como em outros lugares (o
Estado de São Paulo com seus imigrantes japoneses, por exemplo, ou a vizinha
Guiana com seus próprios imigrantes indianos), a maioria dos imigrantes
permaneceu no país após o término de seus contratos (ou das renovações
eventuais desses contratos). Por volta da virada do século, os que escolhessem
se fixar no país em lugar de serem repatriados recebiam um pequeno lote de
terra. Esse lote era propositalmente pequeno, para que seus ocupantes pudessem
plantar para comer, mas tivessem, ainda assim, que vender sua força de trabalho
nas grandes plantações coloniais (que ainda existiam antes da Segunda Guerra
Mundial).
Ao contrário dos Creolen, esses imigrantes não eram objeto de uma política
assimilacionista intensa, situação que se perpetuou entre seus descendentes.
Isto é, a política assimilacionista do governo colonial não se aplicava a eles
a não ser parcialmente, já que não eram vistos como habitantes permanentes do
país. Além do mais, até bem entrado o século XX, as condições de trabalho nas
plantages eram absolutamente grotescas, como mostram os próprios relatórios
coloniais neerlandeses (ibidem). Não só imperava a poenale sanctie para todos
os contratos, como os trabalhadores eram obrigados a trabalhar e viver nas
fazendas em condições extremamente precárias (que lembram a dos japoneses no
Estado de São Paulo antes da Segunda Guerra Mundial). Apesar da existência de
um Protector of Immigrants britânico, um funcionário estacionado
permanentemente em Paramaribo, cuja função era velar por um mínimo de bem-estar
entre os imigrantes indianos e seus descendentes, o governo colonial da Índia
Britânica decidiu em 1916 proibir a imigração para o Suriname devio às péssimas
condições de trabalho nas plantages. Os javaneses, contudo, provinham de outra
colônia neerlandesa, portanto, não havia quem os protegesse. Assim, sua
imigração não foi sustada. Ambos os grupos tinham em comum o fato de que, ao
contrário dos negros, não eram cristãos, e sim hinduístas e muçulmanos; não
sabiam falar o neerlandês (língua essencial para a ascensão social no país); e
estavam totalmente marginalizados até mesmo no pequeno espaço que o governo
colonial dava para a política local (em 1933 só havia um único representante
asiático no parlamento, um indiano católico-romano).
Essa presença de um grupo substancial dentro da colônia ' que não era
assimilado nem mesmo entre as gerações nascidas no país ' vivendo em
comunidades próprias no campo é muito interessante, e deixou uma marca profunda
que até hoje é visível no país: quando se está em Paramaribo, basta atravessar
o rio Suriname, por exemplo, para deparar com todo um distrito eminentemente
rural, o Commewijne (cortado pelo rio do mesmo nome), habitado na maior parte
por javaneses surinameses. Nieuw Nickerie, distrito e segunda cidade do país,
ao lado do rio Corantijn, portanto da fronteira com a vizinha Guiana, é
território indiano. No Commewijne, fala-se javanês-surinamês (uma variedade
local da língua javanesa) e sranan (que é língua franca entre as classes
populares do país); em Nieuw Nickerie, fala-se o sranan e o sarnami (língua
crioula de origem indiana, com elementos emprestados do hindi, bihari e outras
línguas da Índia). Várias cidadezinhas e vilarejos por todo o país possuem
nomes asiáticos como Calcutta e Bombay no distrito de Saramacca, ou Tamanredjo
e Java na bacia do rio Commewijne, ao lado de nomes tipicamente sranan como
Santigron ou Bigiston, e os muitos topônimos neerlandeses (Groningen, Nieuw-
Amsterdam, Wageningen, Alkmaar, etc). É como se a própria geografia do país
fosse um espelho de sua pluralidade (no extremo sul do país, onde pouquíssimos
habitantes moram, fica o Toemoek Hoemak Gebergte, cadeia conhecida do outro
lado da fronteira como Serra do Tumucumaque).
A política desenvolvida por Kielstra a partir de 1933 de certo modo acentuou
ainda mais esse caráter diversificado do país. Sua experiência anterior com a
diversidade étnica colonial na Índia Neerlandesa foi decisiva aqui, assim como
seu conservadorismo político. Na Índia, após 1920, limitou-se a abrangência da
educação européia para não-europeus: difundir uma educação ocidental,
acreditava-se em círculos conservadores, só criava "semi-
intelectuais" (half-intelectuelen) que não encontravam emprego no mercado
de trabalho e que, além do mais, entravam para as fileiras do nacionalismo
indonésio (Ramsoedh, 1990:44). Existia, paralelamente ao sistema de educação
europeu, todo um sistema escolar "nativo" separado, que lembra o
sistema educacional segregado do
apartheid
.17 Esse sistema separado dificilmente permitia o acesso aos altos-escalões da
sociedade colonial. Havia uma intensificação não só das divisões etnojurídicas
da colônia como também do conflito entre os diversos grupos e as autoridades
coloniais. Nesse ambiente, Kielstra era partidário de uma manutenção das
diferenças (dentro de um estado colonial controlado por neerlandeses e sem
participação alguma de grupos nacionalistas). Kielstra tinha uma visão
organicista e historicista da sociedade indonésia colonial: nesta visão cada
grupo étnico teria um lugar (separado) na sociedade colonial, sob supervisão
neerlandesa. Esse lugar separado permitiria a manutenção dos valores
tradicionais de cada um dos grupos (ibidem:49).
Como funcionário colonial na Índia, Kielstra compartilhava plenamente dos
preconceitos raciais de seu tempo, vigentes na colônia. Não via, assim, com
bons olhos a formação de um grupo mestiço (ou de "sangue misto"), que
teria uma influência supostamente deletéria nas relações sociais e econômicas
da colônia. A suposta "indolência" e "falta de energia" dos
nativos era transmitida ao mestiço via sua mãe indonésia (a maioria dos
mestiços eram filhos de pai europeu com mãe "nativa"). Desse modo,
Kielstra acreditava que não era bom para a colônia ter uma grande classe de
pessoas de sangue misto, assim como não acreditava que fosse bom que a colônia
tivesse muitos nativos "intelectualizados" através de uma educação
européia de base assimilacionista (ibidem:48).18 Kielstra era, ademais,
partidário de uma política colonial autoritária, sem nenhum tipo de concessão
aos nacionalistas.
Para ele, o que faltava à Índia neerlandesa não era mais educação de estilo
ocidental ou melhor acesso às escolas européias para os nativos, ou a maior
difusão da civilização e língua neerlandesas, mas sim um respeito maior das
autoridades coloniais pelas culturas autóctones ou étnicas do arquipélago
(volkskulturen). As autoridades também deveriam ajudar na manutenção dessas
culturas. Assim como Cronjé, Kielstra acreditava que os nativos deveriam viver
dentro dos laços e limites de sua própria volksgemeenschap ou "comunidade
étnica" (ibidem:51). Cada um dos povos autóctones (inheemse volkeren)
deveria ser oficialmente reconhecido como entidade autônoma (zelfstandig). A
"edificação ulterior da civilização" (verdere opbouw van de
beschaving) deveria estar baseada nos próprios "bens culturais"
(kultuurgoederen) de cada grupo. Ao poder colonial neerlandês caberia a função
vital de ser uma "força imparcial" mantendo a unidade desse todo
fragmentado e diverso, permitindo o "desenvolvimento material e espiritual
pacífico" dos diversos povos. Assim, para ele, a escolarização não podia
ser uniforme nem assimilacionista, mas deveria espelhar a diversidade colonial
(idem). É difícil imaginar uma visão mais antagônica à idéia de uma nação
indonésia comum, como a que preconizavam os nacionalistas como Sukarno.
Kielstra fora convidado a visitar o Suriname em caráter oficial já em 1925, dez
anos após ter deixado a Índia Neerlandesa definitivamente, e seis anos após ter
iniciado sua carreira acadêmica como professor de administração colonial. Nessa
primeira e breve estadia, Kielstra identificou os principais problemas da
colônia: a economia de plantationnão tinha condições de concorrer com a
plantation nas colônias inglesas e francesas da África Ocidental. Para ele,
havia alguma possibilidade de crescimento do cultivo de algodão e café, mas não
no sistema tradicional de plantation, e sim através da pequena propriedade
rural (klein-landbouw). O pequeno produtor rural produziria para o consumo
próprio, mas também para a exportação. Contudo, essa solução só funcionaria se
houvesse um maior influxo de imigrantes asiáticos (e mesmo assim só se
sentiriam os efeitos dessa política a longo prazo). Trazer trabalhadores sob
contrato (contract-koelies) de Java seria o ideal, já que esses trabalhadores
seriam mais baratos que a mão-de-obra das colônias vizinhas (e, Kielstra deixa
subentendido, não estariam sob nenhuma proteção britânica, ao contrário dos
indianos, e portanto poderiam ser explorados mais livremente). Além do mais,
Kielstra preconizava a introdução no Suriname de um sistema amplamente
utilizado em colônias européias na África e também na Índia Neerlandesa: um
imposto por cabeça, que obrigava a população colonial a trabalhar para pagá-lo,
impedindo-a assim de produzir apenas para sua subsistência, ou então para o
comércio próprio (ibidem:53).
Uma grande desvantagem da situação colonial surinamesa era, contudo, segundo
Kielstra, a falta de um "laço social autóctone" (inheems
maatchappelijk verband), isto é, a inexistência de comunidades étnicas no
modelo da Índia Neerlandesa. Isto seria culpa do governo colonial quando da
abolição da escravatura em 1863. Segundo Kielstra,
[...] não é num desenvolvimento intelectual de cunho ocidental, no
qual são gastas fortunas, mas na formação de uma vida social própria
em aldeias (dorpen), que gradualmente atinja formas culturais mais
elevadas, sob a influência de missionários católicos e protestantes,
onde se pode desenvolver uma vida comercial (marktwezen) [...] que
esteja o caminho para levar essa população (colonial negra) à
colaboração, de acordo com suas forças, na produção surinamesa para o
mercado mundial. (citado em Ramsoedh, 1990: 54).
Com a abolição, o governo colonial havia perdido uma excelente oportunidade de
organizar a população liberta em comunidades de até duas mil pessoas, que
seriam então obrigadas a se dedicar à plantação de cana-de-açúcar. Com a
dispersão da população liberta e sua urbanização ulterior, não se desenvolveu,
ainda segundo Kielstra, nenhuma "comunidade étnica"
(volksgemeenschap).
Kielstra era frontalmente contra a igualdade dos diferentes grupos coloniais
perante a lei, já que cada grupo ' asiático ou negro ' tinha uma cultura
própria que diferia da dos demais grupos. Assim, embora no caso dos libertos
ele advogasse, como na citação acima, a evangelização, no caso dos imigrantes
asiáticos ele era contra a cristianização. Kielstra acreditava que cada grupo
deveria viver separadamente dos outros, numa coexistência pacífica. É difícil
imaginar um pensamento menos assimilacionista que o de Kielstra. Não é de
surpreender, portanto, que ele eventualmente entrasse em conflito direto com a
elite mestiça colonial (os mestiços claros neerlandesados), conflito que só
terminaria com sua saída do governo em 1944 (por pressão dos grupos mestiços
coloniais sobre o governo metropolitano no exílio). Para Kielstra, a população
negra havia sido "mimada" pelo governo colonial desde a abolição,
através de um estado colonial inchado. Para ele, essa população deveria
redescobrir seu "valor social" através da criação de
dorpsgemeenschappen ou "comunidades de aldeia" no campo, onde os que
estivessem capacitados a trabalhar pagariam um imposto por cabeça (hoofdgeld),
como era de lei na África colonial e na Índia Neerlandesa. Isto poderia
compensar em parte a falta de um laço social autóctone entre os surinameses
(ibidem:54).
Kiesltra tinha um programa muito conservador para a colônia, sugerindo
inclusive que conquistas já obtidas ' como o direito ao voto (ainda que de uma
parcela mínima da população) e os poderes (ainda que limitados) do parlamento
colonial ' fossem ainda mais restritas (ibidem:107). Contudo, seu
conservadorismo era extremo até mesmo para o parlamento metropolitano da época
(que dificilmente poderia ser acusado de simpatizar profundamente com
nacionalismos e autonomias coloniais). Kielstra teve mais êxito em políticas
menos extremas, embora ainda assim de impacto importante. Em 1934, no que foi
sua primeira medida importante como governador, instruiu os comissários
distritais a sempre que possível somente darem lotes e terras para pequenas
propriedades a comunidades que constituíssem um todo em sentido cultural,
fossem da mesma origem étnica (landaard) ou religião ou, ainda melhor, dos
dois. Para ele, essa medida ajudaria a deter o processo de
"neerlandesação" (vernederlandsing), que ele abominava por inútil.
Não é à toa que essa medida ficou conhecida como o primeiro passo no processo
contrário de verindisching ou "indianização" do Suriname, isto é, de
transformação gradativa da colônia numa colônia no modelo da Índia neerlandesa
(ibidem:111-112). Durante anos, Kielstra sustentaria uma queda de braço com o
parlameto colonial (dominado pela elite mestiça) no sentido de aprovar uma lei
sobre as "comunidades de aldeia" etnicamente homogêneas
(dorpsgemeeschappen), que ele favorecia como esteio do desenvolvimento do país.
Ademais, para Kielstra, só assim a população asiática ' através de seus líderes
comunitários nas aldeias ' poderia estar representada nas relações com o
governo colonial, já que ele acreditava que o parlamento colonial representasse
exclusivamente a classe negra neerlandesada e urbana.
A comunidade de aldeia é aqui uma noção de origem colonial indo-neerlandesa,
baseada na suposta existência de desagemeenschappen ou comunidades rurais de
aldeia em Java (denominadas localmente de desa). Acreditava-se que esse tipo de
comunidade formasse ao mesmo tempo uma unidade territorial, de parentesco e
comunitária, assentada numa religião comum e em laços sociais compartilhados. A
idéia era de uma comunidade rural fechada e assentada em tradições milenares.
Contudo, hoje se sabe que essa comunidade orgânica é, em realidade, uma criação
colonial, principalmente como unidade administrativa, já que tradicionalmente o
que existira em Java eram camponeses com alto grau de mobilidade territorial.
Isto é, a administração colonial necessitou da fixação dos camponeses em
comunidades assim (ibidem:112). Essa noção e prática colonial indo-neerlandesa
foi em seguida importada por Kielstra para o Suriname. Neste, as primeiras
comunidades de aldeia foram criadas em 1937 (ibidem:116). O objetivo da criação
dessas comunidades como forma jurídica e institucional e fundo orgânico era
permitir a imigração em grande escala de javaneses para o Suriname. A idéia
original de Kielstra era trazer cem mil imigrantes de Java para o Suriname, num
período de dez anos. Esses imigrantes viriam sob a forma de aldeias já prontas
' com chefias comunitárias, líderes religiosos, etc. A idéia era de
transplantar comunidade autóctones javanesas in totumpara solo surinamês. Caso
Kielstra tivesse podido fazer isso, hoje o Brasil teria como vizinho
praticamente uma república javanesa muçulmana, já que o número de cem mil
imigrantes superava muito não só o da população negra da colônia (minoritária
naquela época em relação à população asiática), como o da população total.
Contudo, o plano foi declarado impraticável devido ao seu alto custo
financeiro. Não obstante, Haia concordou com um plano bem mais modesto, com a
vinda de mil a 1.200 imigrantes (fazendo parte de famílias camponesas) a cada
ano. Mesmo nessa forma reduzida, o plano era impressionante, devido ao tamanho
pequeno da população colonial (ele significava, na prática, quase um aumento de
10% ao ano da população só através da vinda dos imigrantes javaneses).
Acreditava-se que a imigração em grande escala ajudaria a desenvolver o cultivo
do arroz na colônia (hoje importante produto de exportação do país). Em 1939, o
primeiro navio com mais de novecentos imigrantes chegou. Contudo, com a chegada
da guerra, e com a ocupação nazista dos Países Baixos em 1940, o plano foi
engavetado. Após a guerra, num clima mais democrático, e com a concessão de
autonomia interna e sufrágio universal para a colônia, um plano desse tipo
tornou-se politicamente inviável, já que necessitava um regime colonial ' ou
muito autoritário e baseado em latifúndios ' para levá-lo a cabo (ibidem:116-
117). Hoje os descendentes de javaneses constituem cerca de 15% da população
total do país, sendo o segundo maior grupo asiático (depois dos indianos, e
seguidos pelos chineses). Este plano foi, portanto, praticamente o último plano
de imigração em massa idealizado pelo governo colonial que, desse modo, durante
cerca de cem anos (a partir da vinda de pequenos fazendeiros neerlandeses em
1845) tentou povoar o Suriname para desenvolvê-lo, ou ainda para fornecer mão-
de-obra para os grandes latifúndios.
Outra peça fundamental do plano de Kielstra eram as desa-scholen ou
"escolas de aldeia". Ele era, como vimos, contra a educação em língua
neerlandesa e de cunho europeu. A idéia era de que as escolas de aldeia
funcionariam dentro das próprias aldeias, com professores locais, em língua
vernácula asiática, e com um currículo voltado para as necessidades
comunitárias e para o trabalho no campo. Essa educação era parecida, portanto,
à educação para "nativos" na Índia neerlandesa (que não dava
necessariamente acesso às escolas secundárias ou terciárias), e à educação dita
"banto" na África do Sul de apartheid (ibidem:118). Finalmente,
Kielstra estabeleceu que o cargo de comissário de distrito (vagamente parecido
com o de intendente no Brasil da era Vargas) deveria ser ocupado unicamente
pelos egressos das faculdades ditas "indológicas" nos Países Baixos,
isto é, Leiden e Utrecht (Fasseur, 1994). Nessas faculdades, os futuros
funcionários coloniais eram treinados em administração colonial, economia,
culturas e línguas nativas da Índia neerlandesa, etc. Ora, ninguém no Suriname
havia freqüentado essas faculdades. Tradicionalmente, o cargo de comissário
distrital ia para os filhos das mais proeminentes famílias mestiças da colônia.
Com a exigência de um diploma "indológico", Kielstra virtualmente
fechou o acesso dos mestiços a esses cargos, reservando-os, na prática, a
egressos metropolitanos daquelas faculdades (Ramsoedh, 1990:119).
Uma medida que se revelou duradoura foi o reconhecimento oficial ' através de
lei própria ' dos casamentos celebrados segundo ritos religiosos hinduístas e
muçulmanos, uma reivindicação antiga dos imigrantes asiáticos na Colônia. Essa
lei chamou-se Aziatische huwelijkswetgeving, ou legislação de casamento
asiático, promulgada em 1940 (ibidem:122-140). Ela é válida até hoje, quando a
maioria dos casamentos no país se faz de acordo com essa legislação. Prevê que
os casamentos realizados por sacerdotes hinduístas ou muçulmanos podem ser
registrados por estes últimos junto ao Registro Civil (numa seção própria, pelo
menos em Paramaribo, denominada exatamente de Aziatische huwelijkswetgeving).
Essa lei é importante porque criou uma diferenciação jurídica entre os diversos
habitantes coloniais. Os Creolen tampouco se casavam de acordo com a legislação
de inspiração européia que imperou sozinha até 1940, mas simplesmente viviam
juntos no que era chamado de concubinaat ou então Surinaamse huwelijk, isto é,
"casamento surinamês". Contudo, isto não era reconhecido pela
legislação colonial. Essa diferença de tratamento entre tradições de casamento
negras e asiáticas se explica pelo fato de os colonizadores acreditarem que os
descendentes de escravos não possuíam cultura própria, ou caso a possuíssem,
fossem apenas práticas "bárbaras". Assim, havia uma lei contra plegen
van afgoderij ou "cometer superstição", que se referia a danças e
ritos de origem africana (ibidem:93-94). Práticas divinatórias de origem
africana encontravam-se igualmente proibidas por lei. A idéia, após a abolição,
era de que os ex-escravos e a população de cor tinham de ser
"neerlandesados". Essa idéia, como vimos acima, era bastante matizada
no caso das populações de origem asiática, vistas como portadoras de cultura
própria.
A legislação de casamento asiático era muito interessante, porque permitia os
casamentos de acordo com os ritos hinduístas e muçulmanos, mas não permitia
todas as práticas a eles relacionadas. A poligamia, por exemplo, continuou
proibida, assim como a prática de casamentos infantis. Não obstante essas
restrições, a lei representou o atendimento de uma reivindicação importante dos
grupos asiáticos na Colônia, e a criação de uma legislação que não se coadunava
com o resto da legislação colonial, já que distinguia comunidades com direitos
distintos dentro da sociedade (uma das acusações mais importantes ' e de cunho
mais poderoso ' da elite mestiça contra as idéias de Kielstra neste e outros
campos foi exatamente de que estas rompiam o "princípio de
concordância" que governava a política colonial, criando práticas
jurídicas separadas para grupos distintos). Em realidade, essa legislação
representou a única verdadeira herança permanente da administração de Kielstra,
já que as poucas comunidades de aldeia criadas por ele (javanesas) nunca deram
certo (seus habitantes não se sentiam membros de uma comunidade orgânica, como
ele queria, mas sim de uma unidade administrativa imposta pelo governo). Em
1980, já na época pós-colonial portanto, seriam abolidas como figura jurídica e
administrativa. As escolas de aldeia deram ainda menos certo que as comunidades
de aldeia, já que se rejeitou a idéia de uma educação especial para os grupos
asiáticos (que, ademais, poderia vir a impedi-los de ascender socialmente na
Colônia, onde o aprendizado do neerlandês era ' e é ' imprescindível para a
mobilidade social). Finalmente, por ter antagonizado frontalmente a elite
mestiça colonial, Kielstra teve que eventualmente deixar o país em 1944, para
ser embaixador neerlandês no México.
Assim, portanto, o processo de "indianização" do Suriname ficou a
meio caminho. Não obstante, poderíamos também dizer que a
"neerlandesação" ficou igualmente a meio caminho, já que até hoje no
Suriname os diversos grupos mantêm sua língua própria, religião e costumes,
além de partidos políticos separados dos demais (Dew, 1978). Apesar disso, não
se pode dizer que houve em algum momento ' nem mesmo durante a administração do
governador Kielstra ' um regime de apartheid no país, mesmo que isto possa
parecer assim a um olhar brasileiro mais desavisado. Quem vai a Paramaribo
observa, contudo, que não há segregação residencial (a não ser entre ricos e
pobres): as escolas são igualmente mistas, e a única universidade do país
também. Em realidade, apesar do discurso político relativamente radical de cada
partido étnico, existe na prática uma convivência étnica bastante pacífica que
é dificilmente pensável mesmo na África do Sul pós-apartheid. Nesse sentido, o
Suriname é ' e sempre foi ' muito diferente da África do Sul. Contudo, é
interessante notar que, mesmo que não tenha havido regime de apartheid no
Suriname, são importantes as semelhanças entre o pensamento de apartheid em
Cronjé e as idéias de Kielstra. Ambos são professores universitários, formados
nos Países Baixos (Cronjé estudou na Universidade de Amsterdã na década de
1930, onde fez doutorado em Sociologia, e em seguida tornou-se catedrático da
disciplina em Pretória). Não só o desprezo (que em Cronjé, contudo, se
transforma em temor quase patológico) pela miscigenação e pelos mestiços é
comum aos dois, como também o é a idéia de que as volksgemeenschappen ou
comunidades étnicas são todos orgânicos essencialistas. Ambos são contra o
negro urbanizado (que Cronjé chamada de "banto destribalizado"), já
que este supostamente não pode senão "macaquear" (aap), como diz
Cronjé, a cultura européia, sem nunca realmente poder assimilá-la como própria.
Assim como para Kielstra os negros do Suriname só poderiam ter um futuro caso
se tornassem comunidades étnicas, Cronjé também acredita que os mestiços sul-
africanos só poderão ter um futuro caso se desenvolvam como comunidades
separadas das comunidades brancas européias.19 Estas últimas, claro, não
existiam realmente no Suriname. Contudo, como vimos, Kielstra era totalmente
contra a "neerlandesação" levada a cabo na Colônia após a abolição,
portanto, contra o que considerava como imitação negra da civilização européia
neerlandesa.
Poderíamos aventar que o imaginário de apartheid pôde ser implementado porque
uma elite colonial branca tomou o Estado pós-colonial para si, enquanto no
Suriname o fim do colonialismo foi marcado por uma democracia mais plena e não-
racializada, e quase sem a participação de brancos, apesar de estar baseada em
partidos étnicos (Dew, 1978). A África do Sul também teve imigrantes asiáticos
' chineses importados nos primeiros anos do século XX para trabalharem nas
minas do Transvaal, e indianos trazidos para as plantations inglesas da
província do Natal na segunda metade do século XIX, além dos chamados
muçulmanos do Cabo, uma minoria de origem mista africana e asiática derivada de
escravos e ex-escravos do tempo colonial neerlandês. Contudo, esses grupos são
muito minoritários e de importância mais regional do que nacional, ao contrário
dos grupos asiáticos no Suriname. Cronjé considera que os indianos ' que
perfazem a grande maioria da população sul-africana de origem asiática ' devam
ser "repatriados" para a Índia já que não teriam um lugar na
sociedade local (assim, seu livro sobre os indianos chama-se Afrika sonder die
Asiaat, ou África sem o Asiático (Cronjé, 1946)). Também, podemos dizer que a
diversidade instalou-se no Suriname sob a forma de partidos étnicos na política
pós-colonial desenvolvida já antes da autonomia concedida pela metrópole em
1954, e que seria firmada com a independência oficial em 1975, enquanto na
África do Sul de apartheid ela apareceu sob a forma de estados étnicos
segregados criados pelo governo branco. Contudo, no período pós-apartheid,
poderíamos dizer que a África do Sul se parece um pouco mais com o Suriname, já
que seus partidos, ao contrário dos surinameses, embora não oficialmente
étnicos, na prática o são em grande medida.20
Ou seja, embora nem o Suriname pós-colonial nem a África do Sul pós-apartheid
sejam em absoluto caudatários das idéias de Kielstra e de Cronjé, as diferenças
e divisões que ocuparam a imaginação dos dois prosseguem, ainda que não sob a
forma que ambos quiseram ver, oficializadas como políticas estatais. Isto é, de
certa forma, tanto o Suriname como a África do Sul, apesar das imensas
diferenças entre os dois, apresentam uma prática social em que a diversidade
não é submetida a um discurso assimilacionista. Nesse sentido ' e talvez só
neste ' ambos os países continuam de algum modo contendo importantes linhas de
fragmentação dentro de todos nacionais distintos. Isto é, nesse modelo de
construção da nação (se é que se pode falar de um modelo aqui), ao contrário de
outros países, a diversidade continua enfatizada de maneira relativamente
intensa. Difícil como seja postular isso como necessariamente uma herança
colonial neerlandesa (afinal, como vimos acima no caso surinamês, os
neerlandeses também chegaram a ter ideais assimilacionistas), também é difícil
evitar a impressão de que existe quase que uma fascinação neerlandesa com a
diferença e sua manutenção. Com exceção do belga ou alemão, talvez praticamente
nenhum outro poder colonial ' nem o britânico, que é o que mais se lhe
assemelha em outros aspectos ' parece lançar um olhar tão curioso com relação à
diversidade humana, e enfatizar tanto a manutenção de culturas locais, mesmo
quando estas não parecem se interessar tanto por isso quanto seus próprios
colonizadores. Nesse sentido, o colonialismo neerlandês, apesar de muito menos
conhecido que outros colonialismos, inclusive o português, representa um
aspecto bastante peculiar, ainda que não único (já que virtualmente todos os
colonialismos se debruçaram sobre a questão da diversidade no encontro
colonial), da expansão européia no ultramar, que merece mais atenção do que tem
recebido não só no Brasil, mas também internacionalmente (Rosa Ribeiro, 1998).