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variedadeBr
ano2002
fonteScielo

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A construção da nação (pós-) colonial: África do Sul e Suriname, 1933-1948

Este artigo pretende analisar alguns aspectos da construção da nação (pós- ) colonial nas décadas de 1930 e 1940 na África do Sul e Suriname. Os discursos abaixo ' sobre "raça" e nação ' são contemporâneos, e têm uma matriz comum (os Países Baixos e o mundo de origem colonial neerlandesa). Contudo, inserem-se em contextos bastante diferentes ' um, numa colônia no limite meridional da bacia do Caribe, outro naquele que era na época um dos pouquíssimos países africanos independentes. Contudo, semelhanças importantes entre eles, apesar da disparidade de seus contextos. Ambos são discursos de origem acadêmica que se tornaram em seguida o fundamento de políticas estatais de construção da nação. Além disso, são discursos originados por brancos, mas tratam, em grande medida, do destino de populações não- européias. A diferença principal entre eles é que um é um discurso nitidamente colonial, enquanto o outro se constrói como discurso autóctone e antiimperialista. O discurso relativo ao Suriname e seu contexto serão examinados em mais detalhe, que examinei mais detidamente o discurso sul- africano anteriormente (Rosa Ribeiro, 1996, 1998). Além do mais, o discurso e contexto surinameses são ainda mais desconhecidos entre nós, apesar da proximidade geográfica. Primeiro, apresentarei as idéias de G. Cronjé, um ideólogo do apartheid.

Embora tenha tido vários precursores, e suas idéias não serem exatamente originais, o sociólogo Geoffrey Cronjé sistematizou em seus trabalhos dos anos quarenta as premissas básicas e linhas gerais do que seria logo em seguida a política de apartheid (ver Dubow, 1989).1 As idéias das obras de Cronjé seriam utilizadas pelo Partido Nacionalista a partir de 1948 na implantação do sistema de apartheid e como justificativa ideológica para as políticas de apartheid (Coetzee, 1991:4). Um de seus propósitos é criar um arcabouço ideológico contra o imperialismo e o "liberalismo" britânicos, que ele condena a todo momento em sua obra. O campo do apartheid, tal como desvelado em sua obra, pretende ser uma clareira intensamente iluminada e limpa, em meio a uma situação supostamente caótica. A palavra de ordem que Cronjé utiliza repetidamente em sua principal obra é "consistência", enfatizada como um encantamento no texto (Cronjé, 1945). Ele apregoa que o sistema de apartheid tem que ser "consistente". Para ele, chega-se a essa consistência através da totalização do sistema, isto é, através do emprego, em todo o campo abrangido pelo pensamento, de uma lógica totalizante, que tem como pretensão exilar e destruir toda ambigüidade, toda nuança, toda exceção, toda mediação, criando em seu lugar um espaço sem rincões escuros ou franjas sombrias, sem contradições nem paradoxos.

Nesse sentido, a nêmese de Cronjé é a mengelmoes-samelewing ou a "sociedade-papa". Nessa associação indistinta (outra tradução possível, embora demasiado eufemística), toda diferença termina por perecer porque seus contornos não podem ser mantidos. A variedade da criação (skeppingsverskeidenheid) é, para Cronjé, algo fundado tanto na natureza quanto na vontade divina. Essa variedade sofre um prejuízo irreparável na situação de mengelmoes (mistura). Isto se porque nesta última nenhuma identidade pode ser mantida: através do contato contínuo e da mistura de sangue (bloedvermenging), toda diferença (étnica e racial) se diluirá e o resultado será uma "papa" ' isto é, o caos e a total falta de ordem. Essa "sociedade-papa" seria o resultado último da mediação, do compromisso e da ambigüidade. Para Cronjé, a África do Sul dos anos quarenta estava a perigo exatamente porque as raças viviam umas em meio às outras, no mesmo espaço físico, apresentando assim inumeráveis "pontos de contato" (aanrakingspunte) entre elas. O contato é aqui o agente supremo da perda de identidade e a mistura de sangue (o casamento ou relação sexual interraciais) é para Cronjé sua conseqüência mais nefasta. No seu texto, a mistura de sangue é uma metáfora poderosa para a "infiltração" (insypel) do diferente (anders) dentro de si próprio (eie) (ibidem).

A situação de então na África do Sul é vista por Cronjé como uma situação em que a diferença está ameaçada. Existe, segundo Cronjé, um processo de "abastardamento total" (uitbastering) que leva à aniquilação (vernietiging) da variedade racial. Esse processo também se apresenta na esfera cultural, especialmente no que diz respeito à destribalização (ontstamming) do banto. Devido à destribalização, a "cultura banto inata" (eie Bantoekultuur) estaria desaparecendo. Caso isso continuasse, tanto a "raça banto" quanto a "variedade cultural" (kultuurverskeidenheid) da humanidade como um todo ficariam empobrecidas. A mistura do sangue é aqui altamente prejudicial, e ela é equacionada com a perda não da especificidade de cada raça como também da perda da especificidade cultural (Cronjé menciona as duas praticamente na mesma sentença ' ibidem:11). Nesse sentido, a perda da própria especificidade (eie) é fatal. O "banto destribalizado" perde sua cultura, mas não consegue adquirir a cultura européia, senão superficialmente. Os "danos espirituais" advindos dessa situação são irreparáveis porque nenhuma assimilação é vista como possível ou desejável, da perspectiva de Cronjé. O banto destribalizado torna-se, nessa visão, praticamente menos que humano, que não pertence mais à sua própria cultura, nem pode pertencer à cultura européia (que lhe é, nessa visão, irremediavelmente forânea e alheia). A diferença aqui não está aberta a compromissos ou mediações: ela é absoluta, ou quase. A perda da identidade aqui leva, portanto, em última instância, à perda da própria humanidade de cada um.

E é exatamente dessas duas premissas ' da naturalização da diferença racial e cultural e do perigo do contato para a manutenção dessa variedade ' que surge a proposta de separação (apartheid).

[...] inclinamo-nos à conclusão de que o aparato racial [rassetoerusting] do nativo em seus aspectos corporais e mentais é em primeira instância diverso [anders] (isto é, de tipo distinto [andersoortig] e valor distinto [anderswaardig]) daquele do homem branco. Em última instância, não será este o sentido e significado da variedade racial? Se assim for, então isto significa que cada raça tem seu caráter [aard], predisposição [aanleg] e função próprias e distintas, como é o caso de toda variedade em outros domínios da natureza. A variedade racial (independentemente de qualquer diferença de posição entre as raças) leva-nos necessariamente ao ponto de vista de que cada raça tem uma tarefa e um chamado [roeping] próprio e distinto a ser realizado de acordo com suas próprias possibilidades.

E cada raça pode realizar sua tarefa e seu chamado próprios da melhor maneira, de acordo com seu caráter e suas possibilidades, se tiver as oportunidades necessárias [para fazê-lo] em separado [apart]. Em razão da variedade racial, uma mistura [mengelmoes] de raças é algo artificial. E em razão da variedade racial, a separação [apartheid] das raças é algo natural (ibidem:19, tradução minha, ênfases no original).

Cronjé adverte que a segregação não é algo que o homem branco deseja para se ver livre do "nativo". Em realidade, para que a segregação, ou apartheid, seja bem implementada, deve-se dar a todas as raças a oportunidade de se desenvolverem como raça de acordo com suas próprias possibilidades. Ou seja, a segregação é para todos. "Toda raça deve se desenvolver em separado [apart ontwikkel]", enfatiza Cronjé (idem, ênfase no original).

Ainda segundo ele, a segregação total substituirá a sociedade-papa por comunidades de volk ou étnicas (volksgemeenskappe) diversas e distintas: uma comunidade étnica branca, uma ou mais comunidades étnicas bantos e uma comunidade mestiça.2 Cronjé acrescenta que isso se dará com uma comunidade racial "ao lado da outra [naas mekaar] e não uma em meio à outra [een te midde van die ander]" (ibidem:80, ênfase no original).

O pensamento de apartheid ' ilustrado aqui por citações da obra de Cronjé ' rejeita, portanto, a miscigenação, relegando a figura do mestiço à categoria de uma espécie de minoria étnica ou mais uma comunidade étnica, ao lado das comunidades banto e branca. A construção da nação sul-africana no pensamento de apartheid dá-se, portanto, rejeitando a mediação simbólica representada pela figura do mestiço, assim como rejeitando as "comunidades bantos" como parte da nação. Assim, na África do Sul, o kleurling ou Coloured (pessoa de ascendência "racial" mista) não constituiu nunca a base da nacionalidade no pensamento de apartheid. Pelo contrário, pode-se postular que o pensamento de apartheid se construiu contra a miscigenação, vista como totalmente nociva à manutenção de identidades raciais ou étnicas distintas.

Cronjé e outros pensadores ' como ele, africâneres ' postularam que o bôer (o sul-africano branco de origem colonial no tempo holandês, isto é, antes de 1800) ou africâner sentem por natureza uma aversão (afkeer) contra a mistura racial. Por exemplo, Eloff postula que o típico jovem bôer "simplesmente não pode imaginar como é possível para um homem branco ser culpado de crime tão hediondo" com o intercurso sexual com uma mulher de cor. Ainda segundo ele, a tradição bôer requer que "um jovem moço não fale com mulheres nativas ou mestiças" a não ser sobre assuntos absolutamente necessários (como salários). Em presença de uma jovem de outra raça, o jovem bôer supostamente baixa os olhos... (Eloff, 1942:95-6).

Naturalmente, esse pensamento está cheio de contradições: a primeira é a própria presença de uma comunidade mestiça na província do Cabo Ocidental que, embora demograficamente de âmbito mais limitado que o grupo branco, assim como este tem uma origem no passado colonial distante. Uma explicação da época era que os mestiços teriam surgido no século XVII, nos inícios da colonização holandesa, quando a sociedade colonial ainda não se havia consolidado suficientemente para que suas normas raciais surgissem e se fizessem valer.

Além do mais, essa população mestiça também teria sua origem supostamente no intercurso de mulheres de cor com marinheiros de passagem no porto da Cidade do Cabo, que durante muito tempo foi ponto de parada obrigatório na rota entre Europa e Ásia antes da abertura do Canal de Suez em 1869. Bruwer ' um antropólogo africâner ' menciona o "surgimento simultâneo" dos dois povos (volke) ' kleurling ou mestiço e africâner ' na África do Sul (Bruwer, 1963:1). Isto é, os dois povos teriam surgido no mesmo local e na mesma época, mas separadamente. Nesse sentido, nesse pensamento o mestiço é idealmente apenas mais uma comunidade étnica ou volk.

Não cabe aqui analisar a implementação desse pensamento na prática, a partir de 1948, por parte do governo do Partido Nacionalista (africâner).3 Tampouco se trata aqui de fazer uma análise profunda desse pensamento.4 Basta lembrar que sua implementação durou décadas, e significou um grau de exclusão social dos grupos não-brancos na África do Sul que parece extremo até em comparação com a própria história sul-africana anterior a 1948. Basicamente, os não-brancos ' principalmente os africanos ' não eram considerados parte da nação sul- africana, que seria assim basicamente uma nação exclusivamente de brancos, os africanos ficando relegados aos seus próprios países (criados pelo governo de apartheid como países supostamente autônomos e mesmo independentes, os famosos bantustões, e que nunca foram reconhecidos pela comunidade internacional).5 Seja como for, o pensamento de apartheid é mencionado aqui pelo seu valor comparativo.

Naturalmente, as diferenças entre África do Sul e Suriname são tão vastas que dificilmente poderiam ser plenamente catalogadas de maneira resumida: racista ou não, a África do Sul era um Estado independente, o Suriname sendo uma colônia até 1975. A dimensão territorial dos dois países é também totalmente desigual, para não mencionar o peso demográfico de ambos (hoje a população sul- africana beira os cinqüenta milhões de habitantes, enquanto a surinamesa gira em torno de meio milhão, além dos quase trezentos mil surinameses residentes nos Países Baixos). Economicamente, dificilmente os dois países poderiam ser mais díspares: enquanto a África do Sul é, de longe, a maior potência econômica do seu continente, e tem uma imensa indústria e setor de serviços, o Suriname é uma das menores e mais pobres economias da América do Sul. Contudo, historicamente, ambos os países têm uma experiência colonial comparável, tanto inglesa como holandesa (se bem que, no caso surinamês, a presença inglesa, embora tenha ocorrido primeiro na história, tenha sido muito breve6). Ambos surgiram como colônias quase simultaneamente: em 1650, no caso do Suriname, e 1652, no caso sul-africano.7 Ademais, ambos foram colônias que, durante os séculos XVII e XVIII, pertenceram a companhias ou sociedades comerciais, e não a uma Coroa. Antes de 1800, não houve o objetivo explícito de colonizar o território com europeus no caso da África do Sul, embora isto tenha acontecido na prática.8 Esta última era meramente um posto de reabastecimento na rota das Índias, enquanto o Suriname era uma colônia de plantation, onde se cultivavam açúcar, café e outras safras exclusivamente para exportação. Durante muito tempo, o Suriname teve uma pequena população de proprietários brancos (judeus e não-judeus), uma imensa maioria escrava e uma pequena população livre.9 A Colônia do Cabo da Boa Esperança (embrião da atual África do Sul) possuía uma população branca muito mais substancial, e menos escravos (não havia plantation, mas apenas médias e pequenas propriedades). Antes da imensa expansão territorial de finais do século XVIII e século XIX (Muller, 1987; Worden, 1994), não havia muitos africanos autóctones tampouco (os habitantes originais do Cabo eram os Khoisan, pequenos grupos pastoris ou de caçadores).

Assim como no Suriname, a população livre de cor era minoritária (na África do Sul até hoje o é, inclusive com relação ao grupo branco. Ver Goldin, 1987).

Enquanto a África do Sul adquiriu uma população branca e mestiça minoritária, mas substancial e permanente, o Suriname, com a decadência da plantation a partir do último quartel do século XVIII, que se mostrou irreversível durante o século XIX, perdeu quase toda a sua população branca não-judia em meados dos oitocentos. Quanto aos judeus, com a maior tolerância na Europa ocidental com relação a eles, emigrariam em massa na virada do século XIX para o XX, constituindo hoje apenas uma minúscula minoria no país. Os pouquíssimos brancos não-judeus residentes no país são descendentes de uma pequena leva de fazendeiros holandeses emigrados em meados do século XIX, e constituem uma minoria (e bastante miscigenada). Assim, ao contrário do restante da América do Sul, o Suriname, junto com suas vizinhas Guiana e Guiana francesa, é um país onde praticamente não existem brancos de origem colonial, situação inusitada no continente. Outra característica que o país comparte com as vizinhas Guianas e Trinidad é o fato de que grande parte (metade ou mais) da população é de origem asiática, situação igualmente única no continente, onde descendentes de asiáticos constituem somente minorias bem pequenas.

Os asiáticos entraram no país a partir de meados do século XIX. Com a proximidade da abolição ' que o governo metropolitano em Haia havia fixado para 1863 (enquanto a África do Sul e demais colônias inglesas aboliram a escravidão em 1834) ' havia a necessidade de garantir mão-de-obra para as fazendas (chamadas plantages). Depois de experimentos malsucedidos com imigrantes caribenhos e portugueses, experimentou-se com imigrantes chineses entre 1854 e 1874 (Ramsoedh, 1990:101), que são ainda uma minoria visível dentro da sociedade surinamesa. Contudo, seria com a imigração indiana ' a partir dos anos de 1870 ' e, mais tarde, a javanesa (a partir de 1891) ' que se resolveria o problema da mão-de-obra na lavoura para exportação (Höefte, 1987).

Após a abolição, os governos colonial e metropolitano decidiram-se por um programa de assimilatie ou "assimilação" da população de cor da colônia (Ramsoedh, 1995). Estabeleceu-se o ensino obrigatório em língua neerlandesa (holandesa) para todos os habitantes da colônia em 1876. Em 1892 todos os surinameses tornaram-se oficialmente "súditos neerlandeses" (com exceção dos imigrantes asiáticos e seus descendentes). Com a saída dos brancos, e a escolarização efetiva de toda uma geração de crianças de cor em escolas do governo (que possuíam um currículo idêntico ao das escolas na metrópole), deu-se um mínimo de mobilidade social a partir de finais do século XIX, com os mestiços (kleurlingen) passando a ocupar posições de baixo e médio escalão na sociedade colonial (e mais tarde também de alto-escalão). O parlamento colonial ' com direito de voto censitário e extremamente limitado ' criado em 1866, com a entrada do século XX e a saída dos judeus da colônia, passou a ser dominado pela elite de cor, formada por mestiços claros. Essa elite era frontalmente contra a importação de trabalhadores da Ásia, mas nada podia fazer (o parlamento tinha poderes muito limitados). na virada do século, ficou claro tanto para Haia como para o governo colonial que as plantages não tinham nenhum futuro (hoje apenas uma sobrevive no país ' Mariënburg enquanto no auge do período colonial, no século XVIII, chegaram a existir mais de seiscentas). A imigração asiática, portanto, passou a assentar- se em outra lógica: a da ocupação da terra por pequenos proprietários rurais produzindo para sua própria subsistência e, eventualmente, também para a exportação. Deve-se notar que por essa época o Suriname muito havia deixado de dar lucros significativos para a metrópole e, assim como outras antigas colônias de plantation no Caribe, tornara-se uma fonte contínua de déficit orçamentário, mesmo após o desenvolvimento da importante indústria de extração de bauxita por parte de companhias americanas a partir da década de 1910.

Nessa situação, tornou-se cada vez mais imperativo criar um plano de desenvolvimento para a colônia que eventualmente a tornasse financeiramente independente da metrópole (embora não se pensasse ainda na época ' antes da Segunda Guerra Mundial ' em dar-lhe a independência). Foi nesse sentido que a escolha de E.B. Kielstra para ser o novo governador colonial em 1933 apresentou-se como uma escolha importantíssima aos olhos do governo metropolitano. A tarefa dada a Kielstra era nada mais, nada menos que a de criar um modelo de desenvolvimento colonial financeiramente sustentável e que levasse eventualmente ao progresso do país. Por várias razões, Kielstra era considerado a pessoa ideal para levar a cabo esse plano.

Kielstra havia sido funcionário colonial (ambtenaar) na Índia Neerlandesa entre 1903 e 1915 (também conhecida em português pelo nome de "Índias Orientais Holandesas", atual Indonésia). trabalhara sob o comando de Hendrik Colijn, político calvinista-ortodoxo conservador que se tornaria ministro de colônias em 1933 e, em 1937, primeiro-ministro dos Países Baixos. Colijn tinha uma agenda colonial extremamente conservadora ' era, por exemplo, contra o movimento independentista indonésio (Hurgronje, 1928). O modelo colonial que predominava então, com relação à Índia Neerlandesa, após o experimento da associatie ou política de associação (limitada) entre neerlandeses e indonésios, que existiu durante alguns anos entre a virada do século e a década de 1920, era de manutenção do status quo colonial, especialmente após 1930 (van Doorn, 1994; de Graaff, 1997). Ao contrário do Suriname, onde após a abolição em 1863 não havia nenhuma distinção jurídica entre os habitantes da colônia, na Índia Neerlandesa predominava um modelo quase antiassimilacionista, que lembra o apartheid ulterior na África do Sul. A população do arquipélago estava dividida entre três categorias etno-jurídicas que determinavam direitos e privilégios altamente diferenciados em todas as esferas da vida, desde o casamento e a herança até a posse da terra e o direito a voto: os "nativos" (Inlanders), que eram a esmagadora maioria da população; os "orientais estrangeiros" (Vreemde Oosterlingen, em sua maioria de origem chinesa, mas nascida no próprio arquipélago); e, finalmente, os europeus (Europeanen), cuja maioria havia nascido nas ilhas, e muitos dos quais eram mestiços e não sabiam falar o neerlandês (essa categoria constituía 0,47% da população colonial total em 1930) (Fasseur, 1992).

As três categorias estavam submetidas a direitos diferentes ' tanto na área de direito penal e comercial como no direito de família. Essas três categorias jurídicas ' e os direitos diferenciados que a elas se aplicavam ' se manteriam até o final da era colonial (marcado pela invasão japonesa de 1942). A assimilação na Índia neerlandesa era, assim, muito mais limitada do que no Suriname ' praticamente a elite nativa e chinesa aprendia efetivamente a falar neerlandês nas escolas, por exemplo, e mesmo o fato de se falar o neerlandês e ser uma pessoa de posses não implicava a ascensão automática ao estatuto jurídico de "europeu", muito pelo contrário. Além do mais, existia uma escola jurídico-antropológica metropolitana, centrada na Universidade de Leiden e na figura do jurista Cornelis van Vollenhoven, que preconizava o direito consuetudinário nativo (adatrecht) (Sonius, 1976; Geertz, 1983). Isto é, defendia a utilização pela administração colonial, parcial ou plena, das muitíssimas tradições jurídicas consuetudinárias (chamadas adat em malaio) encontradas nas milhares de ilhas e centenas de etnias do arquipélago.

Embora essa visão nunca se tenha efetivado plenamente numa política colonial consistente, ela não deixou de ser influente (e Kielstra a compartilhava, como mostra Ramsoedh).

Após a abolição, em 1863, o Suriname, ao contrário da Índia, foi considerado oficialmente como uma "colônia neerlandesa" (Nederlandse volksplanting), onde o caráter neerlandês da sociedade deveria ser incentivado e mantido em todas as esferas, da educação ao direito e sistema político.

Também ao contrário da Índia Neerlandesa, o princípio jurídico imperante era o concordantiebeginsel, ou "princípio de concordância" entre o sistema jurídico colonial e o metropolitano. Isto é, as leis surinamesas deveriam se espelhar nas da metrópole e, sempre que possível, serem semelhantes ou idênticas a elas. Ainda ao contrário da Índia, que se acreditava que algum dia se tornaria independente (embora num futuro muito distante), o Suriname era visto como totalmente dependente da metrópole para sua identidade, que as autoridades coloniais acreditavam que os ex-escravos não tinham uma cultura própria, ao contrário dos habitantes da Índia Neerlandesa, e, portanto, eram meros receptáculos para uma cultura neerlandesa metropolitana. Assim, no Suriname, até os anos trinta, aos olhos da metrópole uma política assimilacionista fazia sentido (Ramsoedh, 1990:91). Assim, na Índia via-se a presença neerlandesa como, em última instância, temporária (mesmo que a independência ainda viesse a tardar muito, segundo percepções neerlandesas), que não havia uma identidade última entre colônia e metrópole, enquanto no caso surinamês se dava exatamente o contrário, a Guiana holandesa (como o país era chamado no Brasil e outros países durante a época colonial) sendo de certo modo uma extensão da metrópole no ultramar.

A tradição de administração colonial da Índia Neerlandesa, portanto, era muito diferente da tradição colonial neerlandesa no Caribe após meados do século XIX: naquela primeira havia uma ênfase muito clara na diferenciação, ênfase essa que variava muito através das várias administrações coloniais, mas que se mantinha como fio condutor da política colonial.10 Após seus anos como funcionário colonial na Índia, Kielstra tornou-se o professor de administração ou economia política colonial (koloniale staathuishoudkunde) na nova faculdade de estudos coloniais fundada em 1925 para competir com a de Leiden.11 Essa faculdade diferenciava-se da de Leiden (centro tradicional de formação de funcionários coloniais, que eram obrigados a freqüentá-la antes de serem enviados para as ilhas), era mais conservadora e havia sido criada com o apoio (inclusive financeiro) de setores empresariais importantes, principalmente os ligados à Shell e à indústria petrolífera colonial operando em Sumatra (daí o nome coloquial da faculdade, petroleumfaculteit). Devido ao seu passado colonial, à sua experiência acadêmica, sua política conservadora e à sua ligação com Colijn, Kielstra foi considerado uma escolha ideal para o cargo de novo governador daquela que passara a ser chamada (junto com Curaçau) no século XX de noodlijdende kolonie ("colônia sofredora"), devido à pobreza generalizada e à falta de recursos internos importantes (que contrastava muito com a situação na Índia Neerlandesa). 12 Ao instalar-se em Paramaribo, Kielstra foi inicialmente muito bem recebido pela elite mestiça (kleurling) do grupo Creool .13 Encontrou, contudo, uma capital inchada com imigrantes de origem rural. Com a abolição, após o período de aprendizado forçado (no qual os ex-escravos, apesar de livres, eram obrigados por lei a ficar nas fazendas de seus antigos senhores trabalhando como assalariados), que terminou em 1873, a população liberta gradualmente mudou-se em grande número do campo para a capital.14 Nesta, havia pouco ou mesmo nenhum trabalho. Para Kielstra, assimilar essa população à cultura neerlandesa ' através da escolarização em língua neerlandesa e da urbanização ' havia sido um erro grave da administração colonial.15 Havia criado uma classe empobrecida e urbana que não possuía utilidade para a colônia. Kielstra acreditava que os Creolen deveriam sair da cidade e voltar para o campo, onde poderiam receber pequenos lotes para praticar a agricultura.

Contudo, o projeto de construção da nação colonial de Kielstra não se centrava em absoluto na população negra assimilada. Sua experiência administrativa na Índia Neerlandesa e seu conservadorismo político o levaram a ter uma simpatia quase natural pelos imigrantes asiáticos do Suriname e seus descendentes. Estes eram virtualmente marginalizados na colônia, tanto pela administração colonial como pela elite negra. Antes da Segunda Guerra Mundial, habitavam quase exclusivamente o campo, freqüentemente em comunidades étnicas mais ou menos fechadas (Ramsoedh, 1990:100). Embora houvesse negros no campo também, em linhas gerais havia-se estabelecido uma divisão no país, com a maioria dos negros residindo em áreas urbanas ou próximos a elas, e a quase totalidade dos asiáticos em áreas rurais mais ou menos etnicamente exclusivas, habitadas por indianos (Hindostanen) ou javaneses (Javanen).16 Antes de 1927, nenhum imigrante ou descendente de imigrante asiático podia tornar-se súdito neerlandês (ibidem). A idéia era que voltariam a seus países depois de vencidos seus contratos de trabalho (que os obrigavam a trabalhar em determinada plantage sob pena de castigos corporais e prisão ' poenale sanctie ' caso se recusassem a fazê-lo. Cf. Höefte, 1990). Contudo, como em outros lugares (o Estado de São Paulo com seus imigrantes japoneses, por exemplo, ou a vizinha Guiana com seus próprios imigrantes indianos), a maioria dos imigrantes permaneceu no país após o término de seus contratos (ou das renovações eventuais desses contratos). Por volta da virada do século, os que escolhessem se fixar no país em lugar de serem repatriados recebiam um pequeno lote de terra. Esse lote era propositalmente pequeno, para que seus ocupantes pudessem plantar para comer, mas tivessem, ainda assim, que vender sua força de trabalho nas grandes plantações coloniais (que ainda existiam antes da Segunda Guerra Mundial).

Ao contrário dos Creolen, esses imigrantes não eram objeto de uma política assimilacionista intensa, situação que se perpetuou entre seus descendentes.

Isto é, a política assimilacionista do governo colonial não se aplicava a eles a não ser parcialmente, que não eram vistos como habitantes permanentes do país. Além do mais, até bem entrado o século XX, as condições de trabalho nas plantages eram absolutamente grotescas, como mostram os próprios relatórios coloniais neerlandeses (ibidem). Não imperava a poenale sanctie para todos os contratos, como os trabalhadores eram obrigados a trabalhar e viver nas fazendas em condições extremamente precárias (que lembram a dos japoneses no Estado de São Paulo antes da Segunda Guerra Mundial). Apesar da existência de um Protector of Immigrants britânico, um funcionário estacionado permanentemente em Paramaribo, cuja função era velar por um mínimo de bem-estar entre os imigrantes indianos e seus descendentes, o governo colonial da Índia Britânica decidiu em 1916 proibir a imigração para o Suriname devio às péssimas condições de trabalho nas plantages. Os javaneses, contudo, provinham de outra colônia neerlandesa, portanto, não havia quem os protegesse. Assim, sua imigração não foi sustada. Ambos os grupos tinham em comum o fato de que, ao contrário dos negros, não eram cristãos, e sim hinduístas e muçulmanos; não sabiam falar o neerlandês (língua essencial para a ascensão social no país); e estavam totalmente marginalizados até mesmo no pequeno espaço que o governo colonial dava para a política local (em 1933 havia um único representante asiático no parlamento, um indiano católico-romano).

Essa presença de um grupo substancial dentro da colônia ' que não era assimilado nem mesmo entre as gerações nascidas no país ' vivendo em comunidades próprias no campo é muito interessante, e deixou uma marca profunda que até hoje é visível no país: quando se está em Paramaribo, basta atravessar o rio Suriname, por exemplo, para deparar com todo um distrito eminentemente rural, o Commewijne (cortado pelo rio do mesmo nome), habitado na maior parte por javaneses surinameses. Nieuw Nickerie, distrito e segunda cidade do país, ao lado do rio Corantijn, portanto da fronteira com a vizinha Guiana, é território indiano. No Commewijne, fala-se javanês-surinamês (uma variedade local da língua javanesa) e sranan (que é língua franca entre as classes populares do país); em Nieuw Nickerie, fala-se o sranan e o sarnami (língua crioula de origem indiana, com elementos emprestados do hindi, bihari e outras línguas da Índia). Várias cidadezinhas e vilarejos por todo o país possuem nomes asiáticos como Calcutta e Bombay no distrito de Saramacca, ou Tamanredjo e Java na bacia do rio Commewijne, ao lado de nomes tipicamente sranan como Santigron ou Bigiston, e os muitos topônimos neerlandeses (Groningen, Nieuw- Amsterdam, Wageningen, Alkmaar, etc). É como se a própria geografia do país fosse um espelho de sua pluralidade (no extremo sul do país, onde pouquíssimos habitantes moram, fica o Toemoek Hoemak Gebergte, cadeia conhecida do outro lado da fronteira como Serra do Tumucumaque).

A política desenvolvida por Kielstra a partir de 1933 de certo modo acentuou ainda mais esse caráter diversificado do país. Sua experiência anterior com a diversidade étnica colonial na Índia Neerlandesa foi decisiva aqui, assim como seu conservadorismo político. Na Índia, após 1920, limitou-se a abrangência da educação européia para não-europeus: difundir uma educação ocidental, acreditava-se em círculos conservadores, criava "semi- intelectuais" (half-intelectuelen) que não encontravam emprego no mercado de trabalho e que, além do mais, entravam para as fileiras do nacionalismo indonésio (Ramsoedh, 1990:44). Existia, paralelamente ao sistema de educação europeu, todo um sistema escolar "nativo" separado, que lembra o sistema educacional segregado do apartheid .17 Esse sistema separado dificilmente permitia o acesso aos altos-escalões da sociedade colonial. Havia uma intensificação não das divisões etnojurídicas da colônia como também do conflito entre os diversos grupos e as autoridades coloniais. Nesse ambiente, Kielstra era partidário de uma manutenção das diferenças (dentro de um estado colonial controlado por neerlandeses e sem participação alguma de grupos nacionalistas). Kielstra tinha uma visão organicista e historicista da sociedade indonésia colonial: nesta visão cada grupo étnico teria um lugar (separado) na sociedade colonial, sob supervisão neerlandesa. Esse lugar separado permitiria a manutenção dos valores tradicionais de cada um dos grupos (ibidem:49).

Como funcionário colonial na Índia, Kielstra compartilhava plenamente dos preconceitos raciais de seu tempo, vigentes na colônia. Não via, assim, com bons olhos a formação de um grupo mestiço (ou de "sangue misto"), que teria uma influência supostamente deletéria nas relações sociais e econômicas da colônia. A suposta "indolência" e "falta de energia" dos nativos era transmitida ao mestiço via sua mãe indonésia (a maioria dos mestiços eram filhos de pai europeu com mãe "nativa"). Desse modo, Kielstra acreditava que não era bom para a colônia ter uma grande classe de pessoas de sangue misto, assim como não acreditava que fosse bom que a colônia tivesse muitos nativos "intelectualizados" através de uma educação européia de base assimilacionista (ibidem:48).18 Kielstra era, ademais, partidário de uma política colonial autoritária, sem nenhum tipo de concessão aos nacionalistas.

Para ele, o que faltava à Índia neerlandesa não era mais educação de estilo ocidental ou melhor acesso às escolas européias para os nativos, ou a maior difusão da civilização e língua neerlandesas, mas sim um respeito maior das autoridades coloniais pelas culturas autóctones ou étnicas do arquipélago (volkskulturen). As autoridades também deveriam ajudar na manutenção dessas culturas. Assim como Cronjé, Kielstra acreditava que os nativos deveriam viver dentro dos laços e limites de sua própria volksgemeenschap ou "comunidade étnica" (ibidem:51). Cada um dos povos autóctones (inheemse volkeren) deveria ser oficialmente reconhecido como entidade autônoma (zelfstandig). A "edificação ulterior da civilização" (verdere opbouw van de beschaving) deveria estar baseada nos próprios "bens culturais" (kultuurgoederen) de cada grupo. Ao poder colonial neerlandês caberia a função vital de ser uma "força imparcial" mantendo a unidade desse todo fragmentado e diverso, permitindo o "desenvolvimento material e espiritual pacífico" dos diversos povos. Assim, para ele, a escolarização não podia ser uniforme nem assimilacionista, mas deveria espelhar a diversidade colonial (idem). É difícil imaginar uma visão mais antagônica à idéia de uma nação indonésia comum, como a que preconizavam os nacionalistas como Sukarno.

Kielstra fora convidado a visitar o Suriname em caráter oficial em 1925, dez anos após ter deixado a Índia Neerlandesa definitivamente, e seis anos após ter iniciado sua carreira acadêmica como professor de administração colonial. Nessa primeira e breve estadia, Kielstra identificou os principais problemas da colônia: a economia de plantationnão tinha condições de concorrer com a plantation nas colônias inglesas e francesas da África Ocidental. Para ele, havia alguma possibilidade de crescimento do cultivo de algodão e café, mas não no sistema tradicional de plantation, e sim através da pequena propriedade rural (klein-landbouw). O pequeno produtor rural produziria para o consumo próprio, mas também para a exportação. Contudo, essa solução funcionaria se houvesse um maior influxo de imigrantes asiáticos (e mesmo assim se sentiriam os efeitos dessa política a longo prazo). Trazer trabalhadores sob contrato (contract-koelies) de Java seria o ideal, que esses trabalhadores seriam mais baratos que a mão-de-obra das colônias vizinhas (e, Kielstra deixa subentendido, não estariam sob nenhuma proteção britânica, ao contrário dos indianos, e portanto poderiam ser explorados mais livremente). Além do mais, Kielstra preconizava a introdução no Suriname de um sistema amplamente utilizado em colônias européias na África e também na Índia Neerlandesa: um imposto por cabeça, que obrigava a população colonial a trabalhar para pagá-lo, impedindo-a assim de produzir apenas para sua subsistência, ou então para o comércio próprio (ibidem:53).

Uma grande desvantagem da situação colonial surinamesa era, contudo, segundo Kielstra, a falta de um "laço social autóctone" (inheems maatchappelijk verband), isto é, a inexistência de comunidades étnicas no modelo da Índia Neerlandesa. Isto seria culpa do governo colonial quando da abolição da escravatura em 1863. Segundo Kielstra, [...] não é num desenvolvimento intelectual de cunho ocidental, no qual são gastas fortunas, mas na formação de uma vida social própria em aldeias (dorpen), que gradualmente atinja formas culturais mais elevadas, sob a influência de missionários católicos e protestantes, onde se pode desenvolver uma vida comercial (marktwezen) [...] que esteja o caminho para levar essa população (colonial negra) à colaboração, de acordo com suas forças, na produção surinamesa para o mercado mundial. (citado em Ramsoedh, 1990: 54).

Com a abolição, o governo colonial havia perdido uma excelente oportunidade de organizar a população liberta em comunidades de até duas mil pessoas, que seriam então obrigadas a se dedicar à plantação de cana-de-açúcar. Com a dispersão da população liberta e sua urbanização ulterior, não se desenvolveu, ainda segundo Kielstra, nenhuma "comunidade étnica" (volksgemeenschap).

Kielstra era frontalmente contra a igualdade dos diferentes grupos coloniais perante a lei, que cada grupo ' asiático ou negro ' tinha uma cultura própria que diferia da dos demais grupos. Assim, embora no caso dos libertos ele advogasse, como na citação acima, a evangelização, no caso dos imigrantes asiáticos ele era contra a cristianização. Kielstra acreditava que cada grupo deveria viver separadamente dos outros, numa coexistência pacífica. É difícil imaginar um pensamento menos assimilacionista que o de Kielstra. Não é de surpreender, portanto, que ele eventualmente entrasse em conflito direto com a elite mestiça colonial (os mestiços claros neerlandesados), conflito que terminaria com sua saída do governo em 1944 (por pressão dos grupos mestiços coloniais sobre o governo metropolitano no exílio). Para Kielstra, a população negra havia sido "mimada" pelo governo colonial desde a abolição, através de um estado colonial inchado. Para ele, essa população deveria redescobrir seu "valor social" através da criação de dorpsgemeenschappen ou "comunidades de aldeia" no campo, onde os que estivessem capacitados a trabalhar pagariam um imposto por cabeça (hoofdgeld), como era de lei na África colonial e na Índia Neerlandesa. Isto poderia compensar em parte a falta de um laço social autóctone entre os surinameses (ibidem:54).

Kiesltra tinha um programa muito conservador para a colônia, sugerindo inclusive que conquistas obtidas ' como o direito ao voto (ainda que de uma parcela mínima da população) e os poderes (ainda que limitados) do parlamento colonial ' fossem ainda mais restritas (ibidem:107). Contudo, seu conservadorismo era extremo até mesmo para o parlamento metropolitano da época (que dificilmente poderia ser acusado de simpatizar profundamente com nacionalismos e autonomias coloniais). Kielstra teve mais êxito em políticas menos extremas, embora ainda assim de impacto importante. Em 1934, no que foi sua primeira medida importante como governador, instruiu os comissários distritais a sempre que possível somente darem lotes e terras para pequenas propriedades a comunidades que constituíssem um todo em sentido cultural, fossem da mesma origem étnica (landaard) ou religião ou, ainda melhor, dos dois. Para ele, essa medida ajudaria a deter o processo de "neerlandesação" (vernederlandsing), que ele abominava por inútil.

Não é à toa que essa medida ficou conhecida como o primeiro passo no processo contrário de verindisching ou "indianização" do Suriname, isto é, de transformação gradativa da colônia numa colônia no modelo da Índia neerlandesa (ibidem:111-112). Durante anos, Kielstra sustentaria uma queda de braço com o parlameto colonial (dominado pela elite mestiça) no sentido de aprovar uma lei sobre as "comunidades de aldeia" etnicamente homogêneas (dorpsgemeeschappen), que ele favorecia como esteio do desenvolvimento do país.

Ademais, para Kielstra, assim a população asiática ' através de seus líderes comunitários nas aldeias ' poderia estar representada nas relações com o governo colonial, que ele acreditava que o parlamento colonial representasse exclusivamente a classe negra neerlandesada e urbana.

A comunidade de aldeia é aqui uma noção de origem colonial indo-neerlandesa, baseada na suposta existência de desagemeenschappen ou comunidades rurais de aldeia em Java (denominadas localmente de desa). Acreditava-se que esse tipo de comunidade formasse ao mesmo tempo uma unidade territorial, de parentesco e comunitária, assentada numa religião comum e em laços sociais compartilhados. A idéia era de uma comunidade rural fechada e assentada em tradições milenares.

Contudo, hoje se sabe que essa comunidade orgânica é, em realidade, uma criação colonial, principalmente como unidade administrativa, que tradicionalmente o que existira em Java eram camponeses com alto grau de mobilidade territorial.

Isto é, a administração colonial necessitou da fixação dos camponeses em comunidades assim (ibidem:112). Essa noção e prática colonial indo-neerlandesa foi em seguida importada por Kielstra para o Suriname. Neste, as primeiras comunidades de aldeia foram criadas em 1937 (ibidem:116). O objetivo da criação dessas comunidades como forma jurídica e institucional e fundo orgânico era permitir a imigração em grande escala de javaneses para o Suriname. A idéia original de Kielstra era trazer cem mil imigrantes de Java para o Suriname, num período de dez anos. Esses imigrantes viriam sob a forma de aldeias prontas ' com chefias comunitárias, líderes religiosos, etc. A idéia era de transplantar comunidade autóctones javanesas in totumpara solo surinamês. Caso Kielstra tivesse podido fazer isso, hoje o Brasil teria como vizinho praticamente uma república javanesa muçulmana, que o número de cem mil imigrantes superava muito não o da população negra da colônia (minoritária naquela época em relação à população asiática), como o da população total.

Contudo, o plano foi declarado impraticável devido ao seu alto custo financeiro. Não obstante, Haia concordou com um plano bem mais modesto, com a vinda de mil a 1.200 imigrantes (fazendo parte de famílias camponesas) a cada ano. Mesmo nessa forma reduzida, o plano era impressionante, devido ao tamanho pequeno da população colonial (ele significava, na prática, quase um aumento de 10% ao ano da população através da vinda dos imigrantes javaneses).

Acreditava-se que a imigração em grande escala ajudaria a desenvolver o cultivo do arroz na colônia (hoje importante produto de exportação do país). Em 1939, o primeiro navio com mais de novecentos imigrantes chegou. Contudo, com a chegada da guerra, e com a ocupação nazista dos Países Baixos em 1940, o plano foi engavetado. Após a guerra, num clima mais democrático, e com a concessão de autonomia interna e sufrágio universal para a colônia, um plano desse tipo tornou-se politicamente inviável, que necessitava um regime colonial ' ou muito autoritário e baseado em latifúndios ' para levá-lo a cabo (ibidem:116- 117). Hoje os descendentes de javaneses constituem cerca de 15% da população total do país, sendo o segundo maior grupo asiático (depois dos indianos, e seguidos pelos chineses). Este plano foi, portanto, praticamente o último plano de imigração em massa idealizado pelo governo colonial que, desse modo, durante cerca de cem anos (a partir da vinda de pequenos fazendeiros neerlandeses em 1845) tentou povoar o Suriname para desenvolvê-lo, ou ainda para fornecer mão- de-obra para os grandes latifúndios.

Outra peça fundamental do plano de Kielstra eram as desa-scholen ou "escolas de aldeia". Ele era, como vimos, contra a educação em língua neerlandesa e de cunho europeu. A idéia era de que as escolas de aldeia funcionariam dentro das próprias aldeias, com professores locais, em língua vernácula asiática, e com um currículo voltado para as necessidades comunitárias e para o trabalho no campo. Essa educação era parecida, portanto, à educação para "nativos" na Índia neerlandesa (que não dava necessariamente acesso às escolas secundárias ou terciárias), e à educação dita "banto" na África do Sul de apartheid (ibidem:118). Finalmente, Kielstra estabeleceu que o cargo de comissário de distrito (vagamente parecido com o de intendente no Brasil da era Vargas) deveria ser ocupado unicamente pelos egressos das faculdades ditas "indológicas" nos Países Baixos, isto é, Leiden e Utrecht (Fasseur, 1994). Nessas faculdades, os futuros funcionários coloniais eram treinados em administração colonial, economia, culturas e línguas nativas da Índia neerlandesa, etc. Ora, ninguém no Suriname havia freqüentado essas faculdades. Tradicionalmente, o cargo de comissário distrital ia para os filhos das mais proeminentes famílias mestiças da colônia.

Com a exigência de um diploma "indológico", Kielstra virtualmente fechou o acesso dos mestiços a esses cargos, reservando-os, na prática, a egressos metropolitanos daquelas faculdades (Ramsoedh, 1990:119).

Uma medida que se revelou duradoura foi o reconhecimento oficial ' através de lei própria ' dos casamentos celebrados segundo ritos religiosos hinduístas e muçulmanos, uma reivindicação antiga dos imigrantes asiáticos na Colônia. Essa lei chamou-se Aziatische huwelijkswetgeving, ou legislação de casamento asiático, promulgada em 1940 (ibidem:122-140). Ela é válida até hoje, quando a maioria dos casamentos no país se faz de acordo com essa legislação. Prevê que os casamentos realizados por sacerdotes hinduístas ou muçulmanos podem ser registrados por estes últimos junto ao Registro Civil (numa seção própria, pelo menos em Paramaribo, denominada exatamente de Aziatische huwelijkswetgeving).

Essa lei é importante porque criou uma diferenciação jurídica entre os diversos habitantes coloniais. Os Creolen tampouco se casavam de acordo com a legislação de inspiração européia que imperou sozinha até 1940, mas simplesmente viviam juntos no que era chamado de concubinaat ou então Surinaamse huwelijk, isto é, "casamento surinamês". Contudo, isto não era reconhecido pela legislação colonial. Essa diferença de tratamento entre tradições de casamento negras e asiáticas se explica pelo fato de os colonizadores acreditarem que os descendentes de escravos não possuíam cultura própria, ou caso a possuíssem, fossem apenas práticas "bárbaras". Assim, havia uma lei contra plegen van afgoderij ou "cometer superstição", que se referia a danças e ritos de origem africana (ibidem:93-94). Práticas divinatórias de origem africana encontravam-se igualmente proibidas por lei. A idéia, após a abolição, era de que os ex-escravos e a população de cor tinham de ser "neerlandesados". Essa idéia, como vimos acima, era bastante matizada no caso das populações de origem asiática, vistas como portadoras de cultura própria.

A legislação de casamento asiático era muito interessante, porque permitia os casamentos de acordo com os ritos hinduístas e muçulmanos, mas não permitia todas as práticas a eles relacionadas. A poligamia, por exemplo, continuou proibida, assim como a prática de casamentos infantis. Não obstante essas restrições, a lei representou o atendimento de uma reivindicação importante dos grupos asiáticos na Colônia, e a criação de uma legislação que não se coadunava com o resto da legislação colonial, que distinguia comunidades com direitos distintos dentro da sociedade (uma das acusações mais importantes ' e de cunho mais poderoso ' da elite mestiça contra as idéias de Kielstra neste e outros campos foi exatamente de que estas rompiam o "princípio de concordância" que governava a política colonial, criando práticas jurídicas separadas para grupos distintos). Em realidade, essa legislação representou a única verdadeira herança permanente da administração de Kielstra, que as poucas comunidades de aldeia criadas por ele (javanesas) nunca deram certo (seus habitantes não se sentiam membros de uma comunidade orgânica, como ele queria, mas sim de uma unidade administrativa imposta pelo governo). Em 1980, na época pós-colonial portanto, seriam abolidas como figura jurídica e administrativa. As escolas de aldeia deram ainda menos certo que as comunidades de aldeia, que se rejeitou a idéia de uma educação especial para os grupos asiáticos (que, ademais, poderia vir a impedi-los de ascender socialmente na Colônia, onde o aprendizado do neerlandês era ' e é ' imprescindível para a mobilidade social). Finalmente, por ter antagonizado frontalmente a elite mestiça colonial, Kielstra teve que eventualmente deixar o país em 1944, para ser embaixador neerlandês no México.

Assim, portanto, o processo de "indianização" do Suriname ficou a meio caminho. Não obstante, poderíamos também dizer que a "neerlandesação" ficou igualmente a meio caminho, que até hoje no Suriname os diversos grupos mantêm sua língua própria, religião e costumes, além de partidos políticos separados dos demais (Dew, 1978). Apesar disso, não se pode dizer que houve em algum momento ' nem mesmo durante a administração do governador Kielstra ' um regime de apartheid no país, mesmo que isto possa parecer assim a um olhar brasileiro mais desavisado. Quem vai a Paramaribo observa, contudo, que não segregação residencial (a não ser entre ricos e pobres): as escolas são igualmente mistas, e a única universidade do país também. Em realidade, apesar do discurso político relativamente radical de cada partido étnico, existe na prática uma convivência étnica bastante pacífica que é dificilmente pensável mesmo na África do Sul pós-apartheid. Nesse sentido, o Suriname é ' e sempre foi ' muito diferente da África do Sul. Contudo, é interessante notar que, mesmo que não tenha havido regime de apartheid no Suriname, são importantes as semelhanças entre o pensamento de apartheid em Cronjé e as idéias de Kielstra. Ambos são professores universitários, formados nos Países Baixos (Cronjé estudou na Universidade de Amsterdã na década de 1930, onde fez doutorado em Sociologia, e em seguida tornou-se catedrático da disciplina em Pretória). Não o desprezo (que em Cronjé, contudo, se transforma em temor quase patológico) pela miscigenação e pelos mestiços é comum aos dois, como também o é a idéia de que as volksgemeenschappen ou comunidades étnicas são todos orgânicos essencialistas. Ambos são contra o negro urbanizado (que Cronjé chamada de "banto destribalizado"), que este supostamente não pode senão "macaquear" (aap), como diz Cronjé, a cultura européia, sem nunca realmente poder assimilá-la como própria.

Assim como para Kielstra os negros do Suriname poderiam ter um futuro caso se tornassem comunidades étnicas, Cronjé também acredita que os mestiços sul- africanos poderão ter um futuro caso se desenvolvam como comunidades separadas das comunidades brancas européias.19 Estas últimas, claro, não existiam realmente no Suriname. Contudo, como vimos, Kielstra era totalmente contra a "neerlandesação" levada a cabo na Colônia após a abolição, portanto, contra o que considerava como imitação negra da civilização européia neerlandesa.

Poderíamos aventar que o imaginário de apartheid pôde ser implementado porque uma elite colonial branca tomou o Estado pós-colonial para si, enquanto no Suriname o fim do colonialismo foi marcado por uma democracia mais plena e não- racializada, e quase sem a participação de brancos, apesar de estar baseada em partidos étnicos (Dew, 1978). A África do Sul também teve imigrantes asiáticos ' chineses importados nos primeiros anos do século XX para trabalharem nas minas do Transvaal, e indianos trazidos para as plantations inglesas da província do Natal na segunda metade do século XIX, além dos chamados muçulmanos do Cabo, uma minoria de origem mista africana e asiática derivada de escravos e ex-escravos do tempo colonial neerlandês. Contudo, esses grupos são muito minoritários e de importância mais regional do que nacional, ao contrário dos grupos asiáticos no Suriname. Cronjé considera que os indianos ' que perfazem a grande maioria da população sul-africana de origem asiática ' devam ser "repatriados" para a Índia que não teriam um lugar na sociedade local (assim, seu livro sobre os indianos chama-se Afrika sonder die Asiaat, ou África sem o Asiático (Cronjé, 1946)). Também, podemos dizer que a diversidade instalou-se no Suriname sob a forma de partidos étnicos na política pós-colonial desenvolvida antes da autonomia concedida pela metrópole em 1954, e que seria firmada com a independência oficial em 1975, enquanto na África do Sul de apartheid ela apareceu sob a forma de estados étnicos segregados criados pelo governo branco. Contudo, no período pós-apartheid, poderíamos dizer que a África do Sul se parece um pouco mais com o Suriname, que seus partidos, ao contrário dos surinameses, embora não oficialmente étnicos, na prática o são em grande medida.20 Ou seja, embora nem o Suriname pós-colonial nem a África do Sul pós-apartheid sejam em absoluto caudatários das idéias de Kielstra e de Cronjé, as diferenças e divisões que ocuparam a imaginação dos dois prosseguem, ainda que não sob a forma que ambos quiseram ver, oficializadas como políticas estatais. Isto é, de certa forma, tanto o Suriname como a África do Sul, apesar das imensas diferenças entre os dois, apresentam uma prática social em que a diversidade não é submetida a um discurso assimilacionista. Nesse sentido ' e talvez neste ' ambos os países continuam de algum modo contendo importantes linhas de fragmentação dentro de todos nacionais distintos. Isto é, nesse modelo de construção da nação (se é que se pode falar de um modelo aqui), ao contrário de outros países, a diversidade continua enfatizada de maneira relativamente intensa. Difícil como seja postular isso como necessariamente uma herança colonial neerlandesa (afinal, como vimos acima no caso surinamês, os neerlandeses também chegaram a ter ideais assimilacionistas), também é difícil evitar a impressão de que existe quase que uma fascinação neerlandesa com a diferença e sua manutenção. Com exceção do belga ou alemão, talvez praticamente nenhum outro poder colonial ' nem o britânico, que é o que mais se lhe assemelha em outros aspectos ' parece lançar um olhar tão curioso com relação à diversidade humana, e enfatizar tanto a manutenção de culturas locais, mesmo quando estas não parecem se interessar tanto por isso quanto seus próprios colonizadores. Nesse sentido, o colonialismo neerlandês, apesar de muito menos conhecido que outros colonialismos, inclusive o português, representa um aspecto bastante peculiar, ainda que não único ( que virtualmente todos os colonialismos se debruçaram sobre a questão da diversidade no encontro colonial), da expansão européia no ultramar, que merece mais atenção do que tem recebido não no Brasil, mas também internacionalmente (Rosa Ribeiro, 1998).


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