Negros de almas brancas? A ideologia do branqueamento no interior da comunidade
negra em São Paulo, 1915-1930
Mordendo na sola,
Empunha o martello
Não queiras, com brancos,
Metter-te a tarelo.
Que o branco é mordaz,
Tem sangue azulado.
Se boles com elle
Estás embirado.
Sciencias e lettras
Não são para ti
Pretinho da Costa
Não é gente aqui.
_______________________
Desculpa, meu caro amigo
Eu nada te posso dar;
Na terra que rege o branco,
Nos privam até de pensar!...
"No Álbum", Luís Gama
1. Branqueamento: O Conceito-Chave para a Compreensão das Relações Raciais e/ou
do Racismo no Brasil
Embora seja tido como um conceito-chave para a compreensão das
"relações raciais" e/ou do racismo no Brasil, há
relativamente pouca reflexão teórica sobre aquilo que vem sendo
chamado de branqueamento. [...] Nos trabalhos mais recentes, a
maioria dos autores usa a expressão "ideologia do
branqueamento" para enfatizar o fato de que, com esse termo,
querem descrever um discurso ideológico. Mas também é comum
pesquisadores que insistem nesse refinamento conceitual recorrerem ao
mesmo termo para expressar um "branqueamento concreto" da
cor da pele da população. Ou seja, ocorre com freqüência que as
reflexões sobre essa temática carecem de uma distinção rigorosa entre
análise do discurso ideológico e análise da realidade empírica.
(Hofbauer, 1999:10)
C omo adverte Andreas Hofbauer, o branqueamento é uma categoria analítica que
vem sendo usada com mais de um sentido. O branqueamento ora é visto como a
interiorização dos modelos culturais brancos pelo segmento negro, implicando a
perda do seu ethos de matriz africana, ora é definido pelos autores como o
processo de "clareamento" da população brasileira, registrado pelos
censos oficiais e previsões estatísticas do final do século XIX e início do XX.
Para evitar confusão no momento de operar com tais conceitos, adotaremos neste
artigo a seguinte divisão metodológica: na primeira parte, revelaremos de que
maneira o branqueamento era concebido como um fenômeno populacional da
"realidade empírica" e, na segunda, exploraremos seus aspectos
ideológicos.1
2. Branquear São Paulo Já: A Morte Premeditada dos Filhos e Netos de Escravos
O branqueamento é uma das modalidades do racismo à brasileira. No pós-abolição
este fenômeno era retratado como um processo irreversível no país. Pelas
estimativas mais "confiáveis", o tempo necessário para a extinção do
negro em terra brasilis oscilava entre 50 a 200 anos. Essas previsões eram
difundidas, inclusive, nos documentos oficiais do governo, como, por exemplo,
no censo de 1920, materializado no texto de apresentação de Oliveira Vianna
(1922). Este texto é uma prova cabal de que o governo era avalista do projeto
de branqueamento.2 Salientamos, todavia, que o objetivo era menos o
branqueamento genotípico e mais o "clareamento" fenotípico da
população. Em São Paulo, a situação não foi diferente: o ideal de branqueamento
da população constituiu-se numa das vertentes ideológicas assumidas pelo
pensamento racista da Belle Époque.
Na virada do século XIX para o XX, o ideal de branqueamento da população
paulista era correspondido, aparentemente, de forma muito notória pelo censo
populacional, marcado justamente pela diminuição assustadora da população
negra. Pelo menos esse era o caso da capital, como se vê na tabela a seguir.
Os números são reveladores. Pelo censo de 1872, os negros (pretos e mulatos)
correspondiam a 37,2% da população da cidade de São Paulo. Já em 1893, o
percentual era de 11,1% e, pelas estimativas de 1934, esse percentual declinava
para 8,5%. Portanto, o desaparecimento do negro, ou branqueamento da população,
era um dos fenômenos estatístico mais evidentes do quadro racial de São Paulo.
Diversos observadores estrangeiros descreveram o fenômeno em suas viagens pelo
estado. O inglês Maurício Lamberg foi um desses casos: em seu diário, fez
questão de registrar que a mestiçagem desencadeava a supressão progressiva do
negro no estado:
Há muito quem affirme que a raça negra aqui está desaparecendo, isto
custa a creditar, quando se considera a prolific(l)ação das famílias
negras. Pode-se admittir, que com o tempo se extingua; mas não por
morte, sim pelo cruzamento com caboclos, mulatos e brancos. (Lamberg,
1896:50)
Pierre Denis, um francês que conheceu São Paulo no início do século XX, também
endossava, empiricamente, a tese do branqueamento: "apesar de não haver
estatísticas, parece certo que a população está hoje em plena regressão no
estado de São Paulo. O fim da escravatura levou á eliminação rapida do operario
negro (Denis, 19?? [1909]:158).
Segundo este autor, a classe dirigente paulista "empenhava-se para que a
população branca augmentasse" (ibidem:167). Realmente, esta foi a tônica
da política racial do estado. Entre 1890 e 1929, entraram em São Paulo
1.817.261 imigrantes brancos. A europeização demográfica da cidade chegou ao
ponto de, em 1897, haver dois italianos para cada brasileiro.
Instalou-se um círculo vicioso. A entrada em massa de imigrantes brancos
reforçava as teses de branqueamento, que, por sua vez, clamavam por mais
imigrantes. Estas teses eram propaladas, intensamente, em diversas obras em São
Paulo. Por isso, passamos, neste instante, a avaliar uma amostra desta produção
intelectual.
A primeira obra a ser analisada, sucintamente, é o clássico Retrato do Brasil,
publicada originalmente em 1928, de Paulo Prado (bacharel em Direito,
fazendeiro e empresário). Herdeiro da tradição aristocratizante da elite
paulista, este intelectual advogava neste livro a perspectiva de arianização do
país:
O que se chama a arianização do habitante do Brasil é um fato de
observação diária. Já com 1/8 de sangue negro, a aparência africana
se apaga por completo: é o fenômeno do passing, dos Estados Unidos. E
assim na cruza continua de nossa vida, desde a época colonial, o
negro desaparece aos poucos, dissolvendo-se até a falsa aparência de
ariano puro. (Prado, 1944:167)
Em uma conjuntura na qual a classe dominante franqueou uma fé
"religiosa" no branqueamento, o mestiço, dependendo do grau de
pigmentação da pele, era classificado como quase-branco, semibranco ou sub-
branco e tratado de forma diferenciada do negro retinto, porém não era
considerado um quase-negro, seminegro ou subnegro. Em outras palavras, podemos
afirmar que a mestiçagem era via de mão única. No cruzamento do branco com o
negro, necessariamente, contava-se com o "clareamento" gradual e
permanente da pessoa, mas jamais se cogitava a hipótese de que a mestiçagem
gerava o "enegrecimento" da população.
Em artigo na Revista do Brasil, intitulado "Brancos de toda Cor", de
1923, João Ribeiro, na qualidade de um "arguto observador", também
profetizava de forma muito otimista o branqueamento do estado de São Paulo e do
país, com sua subjetiva estimativa de tempo: "Dentro de cincoenta annos, a
parte uma pequena fracção retro-atavica de typos negróides, teremos uma
população plausivelmente mais branca que a da peninsula ibérica" (Ribeiro,
1923:378).
Entusiasta do processo de mestiçagem do país, este intelectual entendia que a
originalidade do mestiço branqueado estava em se aproximar do tipo ariano:
"Eis, pois, a largos traços a situação e a qualidade do homem branco no
Brasil, com a sua coloração progressiva de ariano de boas origens" (idem).
Realizando uma pesquisa sobre as condições de saúde, alimentação e habitação,
Alfredo Ellis Júnior, formado em direito, político, professor de sociologia e
história da futura Universidade de São Paulo (USP), no livro Populações
Paulistas, escrito em 1930, fazia um prognóstico dramático para a comunidade
negra do planalto paulista: o negro estava caminhando à extinção, num prazo de
40 ou no máximo 50 anos:
Em 1872, os negros e mulatos constituíam no território paulista 62%
da população, em 1923, passaram a ser apenas 16%. De 1919 a 1929, o
crescimento vegetativo de São Paulo, foi em percentagem: Brancos
102,9%; Pardos 0,24%; Amarelos 0,21%; Negros teve um saldo
negativo de -2,86%. (Ellis Junior, 1934:100-117)
As causas pontuadas para o crescente "déficit" do negro eram: a
diminuição assombrosa da natalidade, o aumento da mortalidade e, em último
lugar, sua inadaptalidade ao planalto paulista. Na avaliação de Alfredo Ellis
Júnior, as causas do déficit eram de natureza fisiológica, ou seja, eram
provenientes das deficiências étnicas do negro: "estou convencido de que o
negro, mesmo educado, não pode nivelar-se ao branco". Já no livro Pedras
Lascadas, originalmente publicado em 1928, este autor explica de que maneira
dois fatores da natureza clima e altitude estariam contribuindo para
acelerar a morte da coletividade negra:
No referente á questão de clarificação das nossas populações, ou da
sua europeisação, não é somente a immigração que tem agido nesse
sentido.
Em São Paulo, o negro vae desaparecendo muitissimo mais rapidamente
do que nas demais regiões. Não será tanto, pela mestiçagem, e por
consequentemente por absorpção que esse phenomeno se dá [...]. A
principal causa do rapido desapparecimento do negro de São Paulo,
repousa em outros fatores.
A tendencia notoria do negro para o alcoolismo, é sem duvida uma
força eliminadora e enfraquecedora potente de individuos dessa raça,
mas não é ella a principal.
A meu ver a causa primarcial do desapparecimento do negro, sem deixar
vestigios de monta, repousa em duas origens que se conjugam, de clima
e de altitude, as quaes no Negro, geram a tendência á turbeculose e á
outras affecções do apparelho respiratorio, que os elimina
rapidamente, a ponto de não poderem ser absorvidos pela mestiçagem,
não ficando delles signaes, portanto. (Ellis Junior, 1933:197)
Além da tuberculose, a sífilis era outra epidemia que, segundo Alfredo Ellis,
devastava o meio negro. Mas, apesar do rigor "científico", este
intelectual estava sendo tendencioso em seus prognósticos. Segundo os dados da
Seção de Estatística Demográfico-Sanitária de São Paulo, entre 1918 e 1928, o
crescimento vegetativo do negro era negativo, ou seja, a taxa de mortalidade,
nestes 10 anos, superava a taxa de natalidade, como podemos observar:
Embora o déficit afetasse drasticamente o "estoque" negro entre 1918
e 1928 (em proporção que oscilava de 1,93% a 4, 8% por ano), não existiam
elementos suficientes para se fazer qualquer previsão segura e irrefutável
quanto ao futuro étnico do estado.3 Alfredo Ellis se equivocou em suas
análises, porque as razões do saldo vegetativo negativo do negro não era sua
pretensa inferioridade biológica, mas uma decorrência dos problemas sociais que
assolavam este povo, dos quais os principais eram: as condições desumanas de
moradia, as doenças, o desemprego, o alcoolismo, o abandono do menor, dos
velhos, a mendicância, subnutrição, criminalidade e a mortalidade infantil.4
Estimava-se que três quintos da população negra da capital nessa época vivia em
estado de penúria, "promiscuidade e desamparo social" (Fernandes,
1978:147). Assim, os dados coligidos permitiam apenas termos uma certeza: a
desigualdade racial nos indicadores da saúde pública quanto aos índices de
natalidade e mortalidade (tanto infantil quanto adulta) era abissal,
penalizando terrivelmente a população negra em São Paulo no início do século
XX.
3. A Ideologia do Branqueamento no Meio Negro
3.1. O branqueamento de ordem moral e/ou social
É plausível assinalar que o ideal de branqueamento entrou na ofensiva em São
Paulo no início do século XX, sendo desenvolvido intensamente pelos publicistas
e alcançando, entre outras coisas, penetração no meio negro. Como assinalamos
anteriormente, neste instante analisaremos a dimensão ideológica do
branqueamento.
Para legitimar sua dominação, parafraseando Karl Marx, a "raça
branca" precisa que as demais raças e grupos étnicos, inclusive os negros,
assimilem seus valores e passem a se comportar, pensar, sentir e agir conforme
sua ideologia racial.5 Por isso, a hipótese desenvolvida no curso deste artigo
é a seguinte: uma fração da população negra em São Paulo no início do século XX
aceitou conceber-se nos moldes impostos pela ideologia racial da elite branca,
uma vez que avaliavam, em larga escala, o processo de branqueamento como
fenômeno natural e inevitável. A análise de uma das principais lideranças da
comunidade negra da época é sintomática:
Até é lícito afirmar se há em São Paulo, muito mais acentuada que no
resto do Brasil, uma ideologia no tocante à população escura, preta;
[...] a tendência é, por conseguinte, a branquificação, fato não só
histórico como biológico, concorde ao comportamento tradicional da
sociedade brasileira. Há, portanto, um entendimento tácito, de
absorção das pequenas minorias raciais e de, por meio de cruzamentos
até estimulados, diluir o sangue negro. Em pouco mais de dois
séculos, talvez, esteja concluído o processo assimilador [...]. (Raul
Joviano do Amaral, O Negro na População de São Paulo apud Fernandes,
1978: 112)
Investigaremos de que maneira tais negros, em vez de despirem o caráter racista
desta ideologia, passaram a propagá-la no interior da própria comunidade.
O branqueamento moral e/ou social estava fundado na aquisição ou assimilação6
pelo negro de atitudes e comportamentos presumivelmente "positivos"
do branco. Para conquistar a "Segunda Abolição", por exemplo, um
articulista que se apresentava como antigo militante negro escreveu um
artigo no jornal da "imprensa branca",7 apregoando a necessidade de
os negros se espelharem nas ações políticas dos brancos:
Seguir os brancos nas suas conquistas e iniciativas felizes [...]
será o marco inicial da segunda redempção dos negros [...].
Salientamos que a sua liberdade não foram elles [negros] que
conseguiram. As tentativas que emprehenderam mallograram
desastrosamente. E da mão do branco que odiavam receberam a liberdade
dos seus sonhos! (Folha da Manhã, São Paulo, 12/1/1930).
Segundo o autor deste artigo, o negro não tinha personalidade própria, era
incapaz de forjar um projeto político e ideológico alternativo. Daí a
necessidade da adoção do estilo de vida do branco, acompanhado de sua maneira
de ser, estar e ver o mundo. Mais: o negro devia seguir todas as normas do
código de conduta moral do "branco".
O patrulhamento da comunidade era permanente. Em "Carta Aberta"
publicada no jornal da "imprensa negra",8 Alfinete(12/10/1918), este
era o tom:
O Salão Lyra Ah! diariamente realisam-se bailes de maxixe que na
maioria dançam mulheres brancas, que não se deixam de compartilhar as
nossas patricias a nossa vergonha, e, a nossa raça ficar
completamente desmoralisada.
Não se deve frequentar o celebre salão Lyra.
A nossa raça deve procurar outra convivência...
No início do século XX, os "freges" eram bailes públicos que reuniam
a "escória" da sociedade: negros e brancos das camadas populares,
vadios, gatunos, prostitutas, cáftens. Eram espécies de gafieiras, das quais se
destacava o Bando Prêto, onde predominava o maxixe.9 O casal dançava agarrado,
rebolando, em movimentos sensuais, ritmados ao som da música. Nos
"freges" quebravam-se as normas sociais do "bom tom". A
bebida, a licenciosidade, o despudor, a descontração e libertinagem reinavam.
Daí a veemência com que estes bailes eram reprovados.
Na ótica dos negros branqueados social e moralmente, o salão Lyra era um desses
antros de depravação na cidade, devendo ser evitado pelas mulheres negras:
"a nossa raça deve procurar outra convivência...". Elas deviam se
recusar a freqüentar espaços cujos bailes executavam músicas de
"preto", como o maxixe. Quem não obedecesse, seria severamente
punido: "Foram eliminadas deste Centro, as Senhoritas Benedicta
Vasconcellos e Bicota, por frequentarem os bailes publicos de maxixe, no
Colombo" (O Alfinete, 9/3/1919).
O Centro Recreativo Smart (uma associação recreativa negra) aplicava sanções
rigorosas para quem não cumprisse o estatuto do clube. Pelo simples fato de
terem freqüentado bailes que executavam músicas de "preto", essas
mulheres foram expulsas da entidade. Os bailes públicos de maxixe eram
considerados incompatíveis com os ditames do puritanismo da elite negra.10 Os
ataques eram impiedosos com:
[...] as negras sem-vergonhas que fazem ponto nos quatro cantos entre
as ruas Silva Pinto da Graça e Três Rios, embriagam-se e depois fazem
uma algazarra do diabo, tudo por causa de macho. Criam vergonha, suas
negras sem cabellos. (A Sentinella, 10/10/1920)
Desta vez, a ira voltava-se para as "damas" que no carnaval vestiam-
se de mulheres de apaches:
Echos do carnaval. Moças que se fantasiam de mulheres de apaches.
Apaches é um individuo vagabundo e ladrão, que vive nas tabernas,
premeditando assaltos e crimes.
Que serão as mulheres dos apaches? Nada mais nem nada menos do que
uma desgraçada rameira e ladra que só serve para vergonha da cidade
em que habita.
Estou certo que esse meu appello, ha de ficar gravado no coração dos
paes de muitas moças e meninas, jamais permittindo que as suas filhas
ou parentes, enverguem essas fantasias, que muito depõem contra nosso
meio social. (Horacio da Cunha, O Alfinete, 9/3/1919)
Em Paris, apache era a patuléia, um indivíduo perigoso e cruel, explorador de
mulheres; malfeitor, ladrão. E como os negros da elite se espelhavam nos
centros culturais da civilização européia, sobretudo a França, compreende-se o
preconceito "anti-apacheano". Apesar de ser uma simples fantasia e
fazer parte das festividades carnavalescas, não se admitia que mulher negra
assumisse um personagem que, no plano simbólico, subvertia a moral branca.
As ofensivas moralistas se dirigiam, da mesma maneira, às manifestações
musicais genuinamente negras, como o samba:
O negro ainda conserva a dança característica de rythmos grotescos e
barbaros, que nos foram transmitidos pelos africanos ao som dos
"batuques", "quigengues" e "pandeiros",
instrumentos de sonoridades insípidas, mas bem rythmadas, que os
fazem pular, voltear, numa sensualidade selvagem, verdadeiramente
africana. E assim atravessam uma noite toda ao clarão de uma
fogueira, que ao amanhecer só resta braseiro e cinza. (O Patrocínio,
19/10/1930, Piracicaba)
O artigo emprega definições extremamente pejorativas para caracterizar ritmos e
dança de "preto": "grotescos", "bárbaros",
"selvagens" etc. Negava-se tudo que tivesse referência ao mundo
negro: forma de andar, falar, dançar, gingar, forma de se vestir, cabelo,
tradições culturais e religiosas.11 O repúdio a tais valores culturais era,
provavelmente, um recurso de diferenciação social da plebe negra.
Ao assimilarem os valores sociais e/ou morais da ideologia do branqueamento,
alguns negros avaliavam-se pelas representações negativas construídas pelos
brancos. Era necessário ser um "negro da essencia da brancura".12 Por
isso, desenvolveram um terrível preconceito em relação às raízes da negritude.
Aliás, a recusa da herança cultural africana e o isolamento do convívio social
com os negros da "plebe" eram duas marcas distintivas dos negros
"branqueados socialmente":
Parece incrível [...] que possa existir pessoas que, não obstante ser
de origem Africana, julgam-se Franceza: como acontece com a Senhorita
A. C. da Rua dos Gusmões, que apezar de não pertencer a raça
Caucasiana julga-se branca, e escurece os pretos. (O Alfinete, 22/9/
1918)
Os ataques, agora, eram desferidos contra o consumo de álcool:
Li há dias num jornal de Sorocaba que uma sociedade recreativa
d'aquela cidade deliberou, em reunião, abolir o uso de bebidas
alcoolicas por occasião de suas festas, permittindo tão somente o uso
das bebidas sem alcool, como sejam: Nectar, Sisi, Gazosa e etc.
Abolindo o alcool do seio das nossas sociedades, e mesmo das mezas do
nosso lares, muito conseguiremos em favor da nossa classe de côr.
Creio não haver nisto offensa alguma, pois, simplesmente o ideal de
quem estas linhas subscreve, é ver os seus irmãos no lado d'aquelles
que sabem presar a sua côr, amar a virtude e despresar o vício.13
Para se afirmar nos valores considerados nobres pela sociedade inclusiva, o
negro não devia ingerir bebida alcóolica, assim como não devia jogar, drogar-
se, freqüentar o ambiente da malandragem. Pelo contrário, devia defender sem
tréguas a moral e os bons costumes da classe dominante, ser religiosamente
católico, honrado, regrado e cumpridor de seus deveres. Condenava-se a boêmia,
a prostituição, as religiões de matriz africana, a prática da capoeira, o
samba, enfim, o negro devia possuir um comportamento puritano.
É importante salientar que todas as prédicas moralistas supracitadas neste
tópico foram extraídas dos jornais da denominada "imprensa negra".
Pelo prisma de Roger Bastide, a imprensa negra vai ser no Brasil o principal
instrumento do puritanismo "preto":
Os sociólogos norte-americanos estudaram muito bem esse puritanismo
nos Estados Unidos; viram nele o sinal da ascensão racial, a
característica da formação de uma classe média, a linha de separação
da plebe de cor, preguiçosa, alcoolizada, supersticiosa, imoral e da
aristocracia da raça, instruída, trabalhadeira, vivendo na dignidade
e na respeitabilidade. Fenômeno análogo produz-se no Brasil.
(Bastide, 1951:71)
Continuando amparados nas reflexões de Roger Bastide, constatamos que o
puritanismo se apresenta, antes de mais nada, nas manifestações exteriores da
etiqueta burguesa. Historicamente, o comportamento puritano está vinculado ao
desenvolvimento da burguesia e sua adoção tornou-se um critério de ingresso dos
indivíduos na pequeno-burguesia (ibidem:72). O puritanismo, aliás, praticamente
passou a definir o estilo de vida da pequeno-burguesia. Por isso, a fração mais
elitizada dos negros paulistas o incorporou com tanta veemência ao seu estilo
de vida. O puritanismo da elite negra paulista, reiteramos, foi um mecanismo
sobretudo de distinção social, que é típico de grupos em ascensão.
Por sinal, o discurso puritano não era uma característica exclusiva da imprensa
negra na época.14 Perpassava, outrossim, pela imprensa alternativa dos
anarquistas e das "colônias" étnicas radicadas em São Paulo. Tanto
nas associações culturais e recreativas negras quantos nas anarco-sindicalistas
e dos imigrantes, a moralização dos costumes, a valorização da educação, o
combate ao alcoolismo, o controle do comportamento dos indivíduos, estendia-se
das páginas dos jornais até os bailes.15
3.2. Branqueamento estético
A carga ideológica do branqueamento se expressava totalmente no terreno
estético. O modelo branco de beleza, considerado padrão, pautava o
comportamento e a atitude de muitos negros assimilados.16 Coletamos alguns
anúncios e depoimentos que mostravam o desejo do negro de eliminar seus traços
negróides, a fim de se aproximar, no plano das aparências, ao branco (nariz
afilado, cabelos lisos, lábios finos, cútis clara).
Um exemplo do "branqueamento estético" foram as consecutivas
inserções publicitárias nos jornais, tanto da "imprensa negra" quanto
da "imprensa branca". Voltado para atender às vontades dos
consumidores negros, o enfoque era sempre o mesmo:
Uma invenção maravilhosa!...
"O cabelisador". Alisa o cabello o mais crespo sem dôr.
Uma causa que até agora parecia impossível e que constituia o sonho
dourado de milhares de pessoas, já é hoje uma realidade irrefutavel.
Quem teria jamais imaginado que seria possivel alisar o cabello, por
mais crespo que fosse, tornando-o comprido e sedoso?
Graças á maravilhosa invenção do nosso "CABELISADOR",
consegue-se, em conjuncto com duas "Pastas Mágicas", alisar
todo e qualquer cabello, por muito crespo que seja.
Com o uso deste maravilhoso instrumento, os cabellos não só ficam
infallivelmente lisos, mas tambem mais compridos.
Quem não prefere ter uma cabelleira lisa, sedosa e bonita em vez de
cabellos curtos e crespos? Qual a pessoa que não quer ser elegante e
moderna?
Pois o nosso "Cabelisador" alisa o cabello o mais crespo
sem dôr. (O Clarim D'Alvorada, São Paulo, 9/6/1929:1)
O alisamento significaria a felicidade do negro, a realização de seu sonho mais
profundo; seria a porta de entrada ao mundo moderno de pessoas elegantes. Daí a
adjetivação contundente da invenção: "maravilhosa!...".
Depois de um ano, este anúncio permanecia sendo veiculado no jornalO Clarim
D'Alvorada, ganhando cada vez mais espaço, levando a pensar que o produto tinha
uma imensa aceitação e, por conseguinte, a empresa fabricadora do produto
conquistara o mercado consumidor negro. O título do anúncio continuava sendo
enfático:
Uma Invenção Maravilhosa!
"O cabelisador"
Alisa o cabello o mais crespo sem dor
Uma causa que até agora parecia impossivel e que constituia o sonho
dourado de milhares e milhares de pessoas, já é hoje uma realidade
irrefutável.
Quem teria jamais imaginado que seria possivel alisar o cabello, por
mais crespo que fosse, tornando-o comprido e sedoso?
Graças á maravilhosa invenção do nosso "cabelisador",
consegue-se, em conjunto com duas "Pastas Mágicas", alisar
todo e qualquer cabello, por muito crespo que seja. (O Clarim
D'Alvorada, São Paulo, 13/5/1930).
O sentido mágico da pasta era ter o poder de subverter a lei natural do negro,
seu cabelo crespo. Estava em crescente aumento o número de produtos e serviços
que prometiam ao negro alcançar o padrão de beleza dominante. Além de pastas e
cremes, toda uma rede de salões "afro" alimentavam este sonho:
Salão para alisar cabelos crespos
Systhema rapido, infallivel e barato
Alisamos qualquer cabello, por mais crespo que seja
São Paulo, Praça da Sé, 14 2º andar sala 4. (ibidem, 25/1/1930)
A simulação de um diálogo cotidiano entre duas mulheres negras, que se
encontraram fortuitamente, era a base da propaganda de salão situado no centro
da cidade:
Oh! D. Maria, que é que a Sra. fez, que ficou com o cabelo liso,
diferente do que se vê ai pela rua?
Ora, D. Thomazia, fui ao Instituto Dulce, e de lá sai assim, como o
cabelo liso, sem caspas e sedosos.
Oh, que achado! Por obséquio, diga-me, onde fica essa excelente
casa de beleza!...
Ali na Praça Marechal Deodoro, 41.
Hoje mesmo irei lá, e recomendá-lo-ei às minhas amiguinhas.
Obrigada. Até loguinho, sim?! (Progresso, São Paulo, 28/7/1929:2)
Um instrumento específico, com efeito, pressagiava a façanha do alisamento
capilar:
Zuavos
NICKELADO é um pente de aço para alisar cabellos e custa apenas
20$000. Vende-se nesta redação. Faz-se demonstrações gratis, as
pessoas interessadas.17
Nem mesmo um branco da elite tradicional paulista ficou indiferente ao
fenômeno:
Os cânones estéticos, que sempre inspiraram a Nação, são os mesmos
que norteiam a todos os povos chamados ocidentais. Daí nos
afastarmos, cada vez mais, dos valores africanos. A mais superficial
observação demonstra a verdade do que acabamos de afirmar. Não tem
mesmo outra origem o esforço desesperado que fazem os mulatos por
parecerem, a todo custo, brancos e os pretos para disfarçarem, tanto
quanto possível, as características da sua raça. Exemplo: a mania que
se apoderou da maioria dos pretos de combater a carapinha, tornando,
por meios mecânicos, lisos os seus cabelos. Isto pelo menos em São
Paulo, [...] onde tendem a viver em grupo e em oposição aos brancos.
(Freyre, 1959, vol. 2: 359)
No entanto, o "branqueamento estético" não se restringia ao
alisamento dos cabelos, atingia a principal marca definidora de raça no Brasil:
a cor da pele. Alguns produtos prometiam a proeza de transformar negro em
branco mediante a despigmentação, ou seja, através do "clareamento"
da pele:
Attenção. Milagre!...
Outra grande descoberta deste século, é o creme liquido. Milagre.
Dispensa o uso de pó de arroz... Formula Scientifica allemã para
tratamento da pelle. Clarea e amacia a cutis. (O Clarim D'Alvorada,
São Paulo, 28/9/1930).
A procedência alemã da fórmula já garantia a qualidade do creme. A beleza
alemã, ou melhor, ariana, era considerada exemplar, a qual deveria ser
importada pela comunidade negra. Outra questão, não menos importante, é
observar no texto de anúncio o aviso de que o produto milagroso iria substituir
o uso do pó de arroz como método de "clareamento" da cútis. Não foi
fortuito este aviso, porque era comum, sobretudo entre as mulheres negras,
passar pó de arroz no rosto em festas requintadas, que exigia esmero na beleza
plástica, conforme podemos notar no anúncio publicitário:
A's damas da elite
O melhor creme para "esterelizar a cútis", branquear,
adherir o pó de arroz, empingens, massagens, evitar panno, espinhas,
etc é a pomada "minancora". A mais bella creação dos
últimos 50 annos.
Vende-se em todo o Brasil. (Folha da Manhã, São Paulo, 5/1/1929:2).18
Publicado na segunda página de um jornal da "imprensa branca", o
creme de poderes miraculosos seria utilizado para "branquear" a pele
ou "aderir o pó de arroz" no rosto. Já o periódico A Cigarra, revista
de maior circulação no Estado de São Paulo na época, prometia para suas
leitoras a "Arte de ser Bella":
Crême de Beauté Oriental. Pelas suas qualidades [...] embranquece,
amacia e assetina a cutis, dando-lhe a transparencia da juventude.
Preço 3$000. (A Cigarra, São Paulo, nº XIII, 6/7/1915).19
Segundo a mensagem sub-reptícia do anúncio, para ser bela era necessário
clarear a pele. E o uso do creme proporcionaria a "transparência" e o
rejuvenescimento. A ideologia do "branqueamento estético" foi um
fetiche muito eficaz na alienação do negro. Oficializou a brancura como padrão
de beleza e a negritude como padrão de fealdade. Representou um entrave para a
formação positiva da auto-estima do negro, pois este passou a alimentar um
certo autodesprezo. Ora, na ausência de modelos positivos em que pudesse se
espelhar, o negro recusava sua própria natureza, desembocando, muitas vezes, em
crise de identidade étnica, descaracterizando-se, na busca pela supressão dos
traços raciais afro.
Si os nossos antepassados tiveram por berço a terra africana, é
preciso que se note, nós temos por berço a Patria este grande Paiz...
Não somos africanos, somos brasileiros! (O Bandeirante, São Paulo, 9/
1918:2).
O negro não se sentia mais africano e sim "latino" ou
"ocidental". A negação da ancestralidade africana deve ser entendida
como um mecanismo simbólico de fuga étnica. Combinado à alienação, o recurso do
"branqueamento estético" transmitia à subjetividade do negro a
sensação de estar cada vez mais parecido com o modelo sancionado como superior.
Portanto, foi uma tentativa de superação da inferioridade que sua cor e seus
caracteres físicos representavam.
3.3. Branqueamento biológico
A ideologia do branqueamento, em certas circunstâncias, apresentava
desdobramento no terreno biológico. A premissa era de que o negro melhoraria
biologicamente sua raça casando com alguém mais claro. Este instrumento
ideológico incidia nas relações intrafamiliares. Para se desvencilhar dos
recalques, os pais incentivavam os filhos a casarem com pessoas não-negras o
ideal seria de cor branca na esperança de que seus netos, bisnetos, e assim
por diante, parecessem cada vez menos com a filiação afro-negra. Se a criança
nascesse mais clara que os pais, consideravam uma vitória, porém, caso a
criança fosse mais escura, sentiam-se derrotados.
Pelo fato de o discurso em prol do branqueamento ser um fenômeno que emergia na
vida cotidiana da família, não conseguiríamos detectá-lo em outras fontes senão
pelo resgate da história oral com negro(a)s que viveram em São Paulo no segundo
quartel do século XX. Daí o papel insubstituível desencadeado pelos depoimentos
de famílias negras sobre um assunto tabu. Mas por que era tabu? Porque a
doutrinação desta modalidade de branqueamento apenas se registrava no âmbito da
vida privada, ou seja, na sociabilidade do lar, nos ensinamentos dos pais, nos
exemplos dos parentes, que jamais tomavam o escopo de discurso público:
[...] meu pai achava que as filhas tinham que casar com branco e esse
era mineiro, a família mora longe "Você não casa, você não
casa", tá bom, então não casa.
Mas quando ele descobriu i...a esperar a gente na porta da fábrica
[...] ele não queria, ele achava que eu tinha que casar com branco:
"Você não vai casar com esse negrinho, [...] só fica fazendo
batuque".20
Ao incorporarem os mandamentos do "branqueamento biológico", os pais
das famílias negras realizavam uma vigilância rigorosa dos filhos. Desde os
amigos do bairro até os namorados passavam pelo crivo da aprovação eugênica.
"Casei em 1926 com um amigo de infância, ele era bonito e não era preto,
preto chega eu" (Bosi, 1994:386).
Outrossim, esse comportamento da mulher negra foi registrado, em 1925, pelo
olhar do cronista Sylvio Floreal: "As pretinhas não querem casar a não ser
com mulatos". Já as "mulatinhas, [...] só aspiram casar com homem
branco" (Floreal, 1925:165).21
O peculiar desta ideologia foi transformar o discriminado em agente reprodutor
do discurso discriminatório, colocando o negro a serviço de uma prática
racista.22 Pelo enfoque estritamente psicológico, o coroamento do racismo se
materializa quando a vítima assume o papel de seu próprio algoz. Em última
instância, estamos diante de um quadro favorável ao "raçacídio", que
consistiria no suicídio coletivo de uma comunidade étnica,a médio e longo
prazos, com armas ideológicas impostas de fora para dentro e aceitas pelos
membros desta comunidade.
O branqueamento via casamento, às vezes, estava intimamente vinculado, no
imaginário social, à ascensão do negro. Essa foi a relação que Maria Cristina
fez:
É, [...] um preto que tá numa situação financeira boa, ele não vai
procurar uma preta, pra melhorar a raça, né, vão, então, aquela
riqueza vai progredindo, e tudo, ele vai procurar uma branca, porque
ele quer melhorar a cor dos filhos [...].23
Para uma sociedade de classe com mentalidade racista, o casamento misto, em
particular do negro com alguém do segmento branco, representava tanto o
aprimoramento da raça quanto a premiação pela vitória conquistada: a mobilidade
social. A esposa ou marido brancos simbolizavam, de forma combinada, uma
melhoria dupla: de raça e de classe social. Já o casamento dentro da própria
comunidade étnica era concebido como ameaça, como se apreende das lembranças de
Ana Pacheco:
Ninguém queria o casamento, nem meu tio né? (Sr. Benedito). Ele não
gostava de preto e meu marido era preto e aí eles não gostavam de
preto mesmo.
Minha mãe não gostava. Ela era escura, preta.
Eu não sei porque ela não gostava dele, nem meu tio João Domingos que
era rico, morava lá, também não gostava não, ele falava: "Preto
não presta menina, é uma raça suja! Olha! Preto quando não caga na
entrada, caga na saída e quando não caga na entrada e na saída ele
deixa um bilhete: 'eu volto para cagar'", ele falava isso pra
mim.
Tio João falava: "Sem-vergonha! Porca! Suja! Cê vai casar com
esse negro, sujar a nossa raça né? [...] casar com preto, pretejando
a raça cada vez mais".24
Contrariando a vontade familiar, Ana Pacheco casou-se com um negro,
contribuindo para "empretecer" ou "enegrecer" ainda mais os
descendentes. Na fase de namoro, o relacionamento com um negro não provocou
tanta contestação como no momento em que foi anunciado o casamento. Ora, o
casamento significava a constituição da família, a qual, mais cedo ou mais
tarde, seria complementada pelo nascimento de filhos. Daí a preocupação dos
tios João, Benedito e da mãe. As futuras gerações de negros, segundo os
parentes, teriam que se distanciar ao máximo de sua origem racial. A saída
apontada pelas famílias negras, geralmente, era bem intencionada: imaginavam
que os filhos e os netos dos casamentos com pessoa mais clara levariam uma vida
com menos dor, sofrimento e com mais chances de vencer na vida.
As frustrações raciais geradas pela ideologia do branqueamento causavam o
sentimento de inferioridade no negro. Este chegava ao extremo de pensar que a
cor da pele fosse alguma deformação patológica, cuja cura não tinha ainda sido
descoberta:
Ele é mais preto, então, qualquer coisinha, ele é negro. Ele falava
assim, que se tivesse um remédio para ficar mais claro, ele tomava.25
O "branqueamento biológico" também poderia ser alcançado por métodos
artificiais, "quando se descobrir a droga que poderá lavar a pele"
(Progresso, São Paulo, 13/1/1929:4).
Havia casos cujos negros atentavam contra seu próprio corpo e empregavam
recursos estapafúrdios para clarear a pele. Acreditavam que comendo barro,
ingerindo muito leite, passando alvejante no corpo, tomando banhos demorados
com muito sabão, não ficando exposto ao sol, diariamente, era suficiente para
"desnegrecer", vale dizer, eliminar a alta pigmentação da pele e, por
conseguinte, o complexo de inferioridade. Esta vertente do branqueamento
legitimava ideologicamente o eventual genocídio biológico do negro.
4. A Ideologia do Branqueamento nos Contos da "Imprensa Negra"
Enquanto representação do real, a literatura tem a capacidade de captar os
sentimentos e desejos mais ocultos da alma humana de uma época, que não são
codificados racionalmente. Já como mecanismo ideológico, a literatura cumpre o
papel de transmitir os valores ideológicos da dominação, seja de classe, de
gênero ou de raça.
Tendo em vista um recorte racial, é possível sustentar que alguns escritores da
"imprensa negra", no início do século XX, submetiam os textos
ficcionais à orientação mais geral da ideologia do branqueamento. Na amostragem
qualitativa coletada, explicaremos de que maneira este fenômeno perpassava todo
o universo mágico dos contos destes autores.
Em um conto intitulado Episódio da Revolta da Ilha de São Domingos o autor
descreve como os negros se insurgem contra a opressão escravista, conquistam a
liberdade e resolvem vingar-se de todas as atrocidades cometidas pelos brancos.
"Então matam, incendeiam, arrazam (sic) tudo que no seu caminho
encontram". Todavia, é na parte central, quando é iminente a morte de uma
camponesa "linda, loura, mais loura que uma filha de Albion", que
podemos desvelar o imaginário branqueador do texto.
A multidão de negros revoltosos prende a família de camponeses brancos. O líder
dos revoltosos lança-se com um punhal sobre a cabeça da camponesa, mas,
subitamente, um outro negro intervém:
Mas, oh milagre! Outro preto obsta que seu chefe consumma aquelle
acto! Porque! Porque elle ama. Ama com toda a sua alma aquela moça.
Então ella o reconheceu e suas faces que estavam lividas tornaram-se
vermelhas como o carmin, teve vergonha, tinha-o insultado e agora
ella via claramente aquella scena em que ella lhe dissera, no auge da
raiva, que negro não era gente, elle jurou vingar-se.
Ela agora estava arrependida de o ter dito. Então negro não era
gente? Por que? Seriam talvez os brancos melhores que os pretos? E
ella, que sem dizer palavra, soffreu naquelle momento como soffreram
os virtuosos apostolos de Christo. (O Menelick, São Paulo, 1/1/1916)
Surpreendido com a atitude do companheiro de luta, o líder dos revoltosos
lembrou ao destemido apaixonado da lei de justiçamento para todo aquele que
desrespeita sua autoridade. Então, este negro, em um ato de coragem, entrega-se
no lugar de sua "loura" e, imediatamente, é aprisionado ao pé de uma
árvore. Sem cerimônias, o infeliz foi executado, cumprindo:
[...] a terrível lei que era imposta a todos que desejavam a vida de
quem quer que fosse a morte e elle docemente morreu, morreu como
um bravo, morreu por amor de uma branca, cumprindo assim d'um modo
sublime o seu juramento.
E agora junto ao cadaver puderam dizer: que os negros são tão gente
como os brancos. (idem)
Do ponto de vista do imaginário, o personagem negro é inferiorizado em relação
ao branco. Quando discriminado, aquele promete vingar-se, na primeira
oportunidade, das ofensas da "loura". Ao libertar-se dos grilhões,
entretanto, o negro releva todas as humilhações que sofreu da musa de seus
sonhos. Mais: expressa sua paixão avassaladora por ela. Em um gesto de amor,
renuncia à sua própria vida para salvá-la.
A estrutura do conto é idílica. Estamos diante do que podemos denominar do amor
impossível: um homem negro jamais seria correspondido afetivamente por uma
mulher branca. O personagem negro representa a figura do anti-herói. Seu final
é infeliz e trágico. Em um sentido amplo, a morte do rejeitado simboliza a
extinção da raça negra, ao passo que a preservação da vida da mulher celebra o
triunfo da "raça branca". Em outra perspectiva, podemos aventar que
apenas na morte o negro se iguala ao branco, ou seja, quando ele deixa de
existir, não significando mais nenhum tipo de ameaça no mundo real. Somente
assim haveria o reconhecimento de sua humanidade. No final, cumpria-se a
profecia do branqueamento.
O conto "Quando o Coração Falla" narra a história de um negro, mais
uma vez sem nome, que na adolescência, em 1899, foi convidado por alguns amigos
para assistir a uma opereta na casa de espetáculo da comunidade italiana e se
apaixona pela atriz principal da companhia, "a bela, garbosa e minuscula
Cesira".
Em uma das apresentações, o negro foi convidado para procurá-la no camarim do
teatro. Sem delongas, assim o fez:
Não, Cesira, não creio! Vejo que tudo isto é um sonho. É demasiada
felicidade para mim!... Faça-me ouvir com tua voz maviosa, o que há
pouco me dissestes... Não creio que tambem tu esperavas por este
instante supremo. Repita-me que muito me queres... E frenetico,
acariciava seus perfumados cabellos fios de ouro, beijava-lhe a face
encantadora, os olhos negros, o pescoço torneado e branco, e...
tornava a extasiar-me fitando-a demoradamente (O Clarim da Alvorada,
São Paulo, 3/2/1924:1)
Ao terminar o espetáculo, o negro acompanhou-a até o hotel, causando admiração
entre seus amigos:
Assim, por muitos e interminaveis dias, durou o nosso hydillio, até
que por uma fatalidade fomos obrigados a nos separar.
Dessa data são decorridos 24 annos e, guardo ainda indelevel, na
memoria e no coração, a lembrança desses dias. (idem)
A estrutura do conto é semelhante à receita do anterior. Um homem negro se
apaixona por uma mulher branca e insanamente alimenta o sonho de conquistá-la.
Porém, devido a uma fatalidade não descrita ele tem que se afastar dela,
mas jamais consegue esquecê-la, ou seja, a musa encantadora, de "pescoço
torneado e branco", continua a hipnotizá-lo, sobretudo pelo seu padrão de
beleza, que, daquele dia em diante, nortearia sua preferência na escolha de
novos relacionamentos. Cesira passou a ser o seu ideal de mulher. Estamos
diante de um caso de amor inter-racial impossível. Um dos aspectos mais
importantes da "ideologia da brancura", detectado implicitamente,
consiste no fato de o negro apenas sentir-se plenamente realizado com uma
branca. Impossibilitado de realizar seus planos, ele amargura na dor da
saudade.
Em outro conto, batizado de "A Quem me Entender", um negro, convidado
pelos amigos, vai a uma "simples, mas encantadora reunião familiar".
No local da tertúlia, estava conversando despretensiosamente com os convidados,
mas, de repente, olhou para uma mulher (branca, provavelmente loira) que,
inexplicavelmente, o fascinou. Foi amor à primeira vista. Ascendeu no seu
coração um sentimento platônico.
No entanto,
"[...] passada aquella ephemera chimera, em que fiquei
totalmente subjugado por seus attrahentes olhos azues, bem poucas
vezes a tenho visto. Em compensação, noticias suas jamais deixei de
tel-as, portanto quanto mais tempo não a vejo mais impaciente e com
saudades permaneço". (O Clarim da Alvorada, São Paulo, 3/3/1924:
1)
Verifica-se que, novamente, o personagem negro é um sujeito sem nome;
desprovido de identidade. A ausência de identidade, transportada para toda a
coletividade, é o requisito básico da invisibilidade do negro. Essas
características demonstram de forma cabal o ideal de branqueamento dos autores
dos contos escritos para os jornais da "imprensa negra".
O último conto analisado dessa breve seleção é "O Lenço de Maria".
Ambientado na época da escravidão, narra a história de um escravo que ama sua
sinhá. Depois de sofrer algum tempo em função da paixão reprimida, Halibrach
resolve abrir o seu coração, em um passeio pela fazenda, e declara-se para
Maria:
[...] atirando-se de joelhos aos seus pés implorou a felicidade que
tanto almejava.
A moça commovida pelas apaixonadas phrases que se escapavam dos
labios de seu escravo, levou o lenço aos olhos para enxugar duas
lágrimas! (Getulino, Campinas, 30/9/1923)
Embora sensibilizada com seu escravo, a Sinhá não oculta o caráter utópico
daquele voluntarioso caso de amor. O sentimento que aflora é de piedade pela
humilhante atitude daquela infeliz criatura. Frustrado com a reação de seu
amor, Halibrach resolve atentar contra sua própria vida.
Maria, exclamou Halibrach louco, minha não serás nunca, porém, eu
tambem não mais serei do mundo!
Halibrach que vaes fazer?
Senhora, vou matar-me...
Oh! não, não!
Sim Maria adeus! E que esse lenço humedecido com tuas lagrimas me
acompanhe ao silencio da tumba!
E, arrebatando das mãos da moça o perfumoso lenço que ella trazia
desapareceu por entre os arvoredos do jardim!
Pela manhã, quando o sol brilhante repraiava os seus raios, doirando
a selva das campinas, um corpo gelido repousava sobre um canteiro de
saudades! Era Halibrach morto!Porem, elle não foi assim tão infeliz
nos seus amores, porque levou para a gelidez do tumulo o lenço ainda
humido das lagrimas de Maria! (idem)
Reproduz ficticiamente a fórmula consagrada do amor inter-racial impossível.
Para Halibrach, um negro com nome de branco, sem Maria nada mais faz sentido. A
"linha de cor" a separá-los é indelével. O seu fim é trágico: morre
em prol de sua branca. É curioso observar que o personagem negro recebe um nome
justamente no episódio em que seu papel social de sujeição ao branco é
nitidamente identificado (ibidem).26
Constatamos que a versão idílica do amor impossível do homem negro pela mulher
branca pauta a mensagem simbólica dos textos. Isso revela que os contos eram um
artifício de projeção do imaginário do negro no início do século XX, ou seja, o
"inconsciente coletivo" negro transferia no outro mulher branca
desejos, qualidades, virtudes, enfim, valores positivos desprezados ou
recusados para si.
5. O Desaparecimento do Negro
Alguns artigos da "imprensa negra" eram explicitamente favoráveis ao
desaparecimento do negro. Apesar de reconhecerem a contribuição indígena e
africana na formação da nacionalidade, o multirracialismo era concebido como
obra do passado. No Brasil, em geral, e em São Paulo, especialmente, estaria
forjando-se um sistema unirracial. A construção da unidade racial, sob o
eufemismo de "fusão das raças", passaria pela diluição do sangue
negro, ou seja, pela sua extinção.27 A vontade destes negros era expressa da
seguinte maneira:
O que devemos fazer é [...] o seguinte:
Não pretendemos perpetuar a nossa raça, mas, sim, infiltramo-nos no
seio da raça privilegiada a branca, pois, repetimos, não somos
africanos, mas puramente brasileiros. (O Bandeirante, São Paulo, 9/
1918:3)28
A nacionalidade nesse novo sistema racial não seria incolor, mas branca. A
campanha ideológica da elite negra em prol do branqueamento era requisito
necessário para solucionar "A Questão da Raça". Este foi o título de
um artigo do jornal Auriverde:
Como esta surge como força negativa e anarchica, como a collaboração
negra é considerada deprimente, o negro se isola, se individualiza e
cria uma civilização sua, dentro da civilização alheia.
E por isso, o problema negro é considerado o problema mais serio da
América do Norte.
O Brasil, abrindo-se para todas as raças e acceitando o negro como
acceitou resolveu com muito mais simplicidade o problema racial.
O negro está desaparecendo, está fundido no caminho dessa fusão, tem
elle intensamente collaborado para a grandeza material e moral do
Brasil.
Portanto, neste ponto, não invejamos a civilização yankee, por que,
nesse ponto, obtivemos vantagens... (Auriverde, São Paulo, 29/4/1928:
3)
O sistema racial estadunidense era evocado incessantemente para realçar as
vantagens do modelo racial brasileiro, supostamente democrático. Lá, o negro
enclausurou-se em guetos, tornando-se impermeável e conflituoso o contato com o
branco; aqui, o negro foi aceito de braços abertos, fundindo-se no branco. A
eventual "pieguice" do brasileiro facilitava o processo de
branqueamento em curso, como assinala o artigo "O Sentimentalismo
Brasileiro":
Nós brasileiros costumamos orgulhar-nos da nossa bondade de coração,
da nossa piedade e sentimentalismo generosos. Convictamente
affirmamos em dose mais elevada que os outros povos.
Pretendendo ser mais humanos que os americanos, nós não lynchamos os
negros, mas fizemos a extinguirmos completamente a raça negra,
abandonando-a á ignorância, á degradação ao analphabetismo, á
promiscuidade, á cachaça, á syphillis, a ociosidade.
Qual é o preferível é sentimentalismo brasileiro ou a brutalidade
americana?
O nosso sentimentalismo não é homicida?
Daqui a trinta ou cincoenta annos a raça negra está extinta no Brasil
graças ao nosso sentimentalismo.
Os americanos lyncham cincoenta negros por anno. Nós matamos a raça
negra inteira no Brasil. (O Clarim D'Alvorada, São Paulo, 28/9/1929:
4)
Desta vez, o sistema racial brasileiro era colocado face ao estadunidense para
sinalizar qual seria o destino do negro. Embora fosse sentimentalista, o
brasileiro era insensível à morte do povo negro. Mais: ele compartilhava do
projeto de extermínio não declarado daquele segmento da população. Daí a
pergunta: "o nosso sentimentalismo não é homicida?". Segundo o
articulista, a execução do negro brasileiro, cuja extinção estava prevista para
trinta ou cinqüenta anos, operaria "por atacado" enquanto a do negro
americano aconteceria "a varejo".
A absorção biológica do negro pelo branco, gerada pela mestiçagem, seria
acelerada pela imigração branca. Esta é a tônica do artigo "Desaparecerão
os Pretos do Brasil?":
Muitos carecemos de renovar o nosso sangue por meio de correntes
immigratorias européias. Porque o preto brasileiro, que do contrario
de seu collegas norte-americanos, faz questão em se casar com mulher
branca. Daqui a três quartos de seculo pertencera ao passado.
(Progresso, São Paulo, 13/2.29)
Para o articulista, o branqueamento era causado, também, pela atitude do negro
brasileiro que, ao contrário de seus "irmãos" americanos, fazia
questão de casar com mulher branca. A estimativa de tempo para extinção do
negro, novamente, era apresentada: setenta e cinco anos. A imigração européia
era avaliada como fonte de higienização racial do negro. Este fenômeno adquiria
maior velocidade em São Paulo, conforme apuramos em "Saneamento Étnico da
População Paulista":
Não passaram despercebidos aos paulistas de quarenta anos atrás que,
em vez de tentar agravar com o adicionamento de elementos de raças
diversas, julgaram ser seu dever sanear e melhorar eugenicamente sua
população pela introdução de grandes contigentes de sangue ariano.
(Progresso, São Paulo, 24/11/1929)29
O artigo assegura que o projeto racial da elite paulista não foi obra do acaso.
Com a entrada de milhares de imigrantes europeus, implementou-se em São Paulo a
operação "saneamento étnico", baseada na eliminação de raças
diversas, inclusive a negra, pela infusão do sangue ariano.
6. Negro Contra Negro
Em 1921, o Estado do Mato Grosso ofereceu concessões de terras para empresários
americanos. Quando souberam do recrutamento de trabalhadores afro-americanos
para ocupar tais terras, imediatamente, o presidente do Estado, um bispo
católico, cancelou as concessões. O Itamarati, em medida preventiva, deliberou
negar vistos diplomáticos para esses potenciais imigrantes.30 Dada a
preocupação da elite em evitar o "enegrecimento" do país, dois
deputados federais Andrade Bezerra (PE) e Cincinato Braga (SP) apresentaram
o Projeto de Lei nº 209 no Congresso, após o episódio, em 1921, propondo a
proibição da entrada de imigrantes negros. Sem apoio político suficiente, o
projeto foi arquivado; todavia, a idéia permaneceu viva. Dois anos depois, um
outro deputado federal, Fidélis Reis (MG), apresentou uma nova versão do
projeto cuja essência continuava sendo a barreira de cor.31 A repercussão na
opinião pública teve desdobramentos na "imprensa negra", que mediante
uma série de artigos não escamoteou sua posição sobre a matéria:
A imigração negra norte-americana prejudica a solução do problema
negro brasileiro e ameaça a harmonia da raça e a paz da nação.
Estamos alistados no exercito daquelles que combatem em todo e
qualquer terreno, a invasão do negro norte-americano no nosso paiz.
Apoiamos francamente attitude patriotica assumida pelo governo ante a
grave ameaça da immigração negra, e a combateremos pela pena e pela
palavra porque ella representa, indiscutivelmente, o maior prejuiso
para a solução do problema negro brasileiro. (Getulino, Campinas, 23/
9/1923:1)32
Assim, quando se cogitou a imigração de negros norte-americanos para o Brasil,
a "imprensa negra" reagiu com repulsa. Os motivos eram diversos. Um
dos argumentos era que tais negros transplantariam o ódio racial para nosso
país, representando uma "ameaça à harmonia e à paz da nação". Como a
fusão das raças implicaria, necessariamente, o desaparecimento do negro, a
entrada de negros americanos iria retardar este processo:
A vinda dos negros norte-americanos será o golpe de morte para aquela
obra mathematica, do desapparecimento gradativo da raça negra no
Brasil. (Getulino, Campinas, 23/9/1923:1)
Os autores destes artigos avaliavam o negro norte-americano como refratário à
miscigenação; logo, sua presença no país colocaria em risco o projeto de
branqueamento, embora cientes de que a imigração estava orientada politicamente
por uma conotação racista: contra negros, índios e asiáticos, os articulistas
defendiam a entrada de imigrantes como necessidade. Portanto, a questão devia
ser colocada nos seguintes termos: qual era o imigrante mais conveniente para
resolver o problema do negro?33
Não cuidamos de saber se, por exemplo, a imigração russa nos e
prejudicial ou util. Ignoramos se nos convem ou não que para aqui
afluam correntes de israelitas. Nesse ponto, podemos dizer que apenas
somos unanimes quando se trata da immigração de pretos.34
Apesar da dúvida quanto à qualidade étnica dos estrangeiros que entraram no
estado de São Paulo, era praticamente consensual a rejeição da "immigração
de pretos". Os vários grupos étnicos aceitos pela política imigratória do
estado renovavam a esperança de branqueamento. Por isso, a seleção racial
passava estritamente pelo critério: ser de "raça branca",
independente da origem nacional do imigrante.
Considerações Finais
O fenômeno do branqueamento tinha a "proeza" de ocultar o racismo
anti-negro que trazia na sua essência Este fenômeno foi levado a cabo de
maneira acentuada pela elite paulista no início do século XX, sendo difundido
intensamente pelo discurso científico e previsões estatísticas. Já sua dimensão
ideológica, penetrou e foi compactuada ou absorvida por uma fração da
comunidade negra, sob a forma de branqueamento: "estético",
"biológico" e "social". O paradigma branco de beleza,
comportamento, moral, mentalidade, etiqueta e cultura, foram assimilados e
reassimilados, total ou parcialmente, por alguns membros daquela comunidade. O
embuste racial chegou ao extremo de alguns negros repudiarem a hipótese do
Brasil e, em particular, São Paulo, receber imigrantes do mesmo grupo racial,
fossem estadunidenses ou africanos, pois temiam o "enegrecimento" do
estado.
Como escreve Iray Carone, o branqueamento foi "uma pressão cultural
exercida pela hegemonia branca, sobretudo após a Abolição da Escravatura, para
que o negro negasse a si mesmo, no seu corpo e na sua mente, como uma espécie
de condição para se integrar (ser aceito e ter mobilidade social) na nova ordem
social" (Bento & Carone, 2002:14). Em linhas gerais, essa também é a
explicação de Florestan Fernandes, para quem só é possível entrar no
"mundo dos brancos" passando por um "processo de
abrasileiramento que é, inapelavelmente, um processo sistemático de
embranquecimento" (Fernandes, 1972:16).35 Contudo, é necessário repensar
essa interpretação corrente de conceber branqueamento como sinônimo ou pré-
requisito da integração do negro na sociedade de classes. Segundo Maria
Aparecida Silva Bento, "isso decorre do fato de que essa sociedade de
classes se considera, de fato, como um 'mundo dos brancos' no qual o negro não
deve penetrar" (Bento & Carone, 2002:52). Já Angela Figueiredo vai
mais longe, postulando que "quase todos nós nascemos embranquecidos, visto
que há uma predominância dos aspectos da cultura branca se é que assim
podemos denominá-la em nossa sociedade, e só enegrecem ou se tornam negros ao
longo dos anos os que optam por incluir em suas vidas os aspectos identificados
com a 'cultura negra' e se tornam curiosos em conhecer o seu passado"
(Figueiredo, 2002:104).
De toda sorte, foi possível inferir que a ideologia do branqueamento no início
do século XX em São Paulo deformou as relações raciais: contribuiu para
desenvolver, no branco, um certo complexo de superioridade e, no negro, em
contraposição, um complexo de inferioridade. Os brancos, independente da classe
social, produziram uma auto-representação positiva e concebiam seus valores
como naturalmente superior. Já alguns negros, construíram uma auto-imagem
negativa e passaram a se avaliar como inferiores.36 Na verdade, estabeleceu-se
um círculo vicioso: quanto mais profundos os traumas do racismo, mais o negro
ajustava seu comportamento e atitudes de acordo com a ideologia do
branqueamento; quanto maior os ataques racistas, mais profundos eram os
traumas. Nesse sentido, a interiorização da ideologia do branqueamento pelo
negro deve ser entendida como um mecanismo psicossocial, utilizado para evitar
as agruras do racismo à paulista.