Identificação territorial, identificação étnica em Cartagena, Colômbia
Quem faz pesquisas sobre Cartagena vê-se diante de uma ambigüidade: a
observação mostra de imediato que, à medida que se desce na escala
socioeconômica, a população é mais negra; que os bairros com baixo nível de
urbanidade têm os moradores de pele mais escura. Mas, paradoxalmente, é
dificílimo expressar essa segregação sócio-espacial em termos étnicos. Exemplo
evidente é o que se depreende dos estudos realizados no departamento de Trabajo
social da Universidade de Cartagena: cada ano, para obter o diploma, os
estudantes devem fazer a monografia de um bairro. Ora, nessas monografias, em
que os elementos de estruturação e de segregação socioeconômicos são analisados
pormenorizadamente, em que a concentração da pobreza, do subemprego e da
ausência de educação é reconhecida e denunciada, a dimensão racial nunca é
mencionada, nem na caracterização da população, nem na explicitação das
causalidades. Trata-se de "bairros populares", não de "bairros étnicos".
De fato, a questão que aparece em Cartagena, em particular após a instauração
do multiculturalismo, é a da identificação e definição das "populações negras".
Alguém é "negro" por designação categorial externa? E, se assim for, quais os
critérios dessa designação? Aparência física, definição a priori (traços
culturais, o fato de pertencer a um território), genealogia? Por auto-
identificação? Mas, ao agir dessa forma, não estará o pesquisador reproduzindo
estratégias, conscientes ou inconscientes, de instrumentalização ou de
ocultação, das quais precisamente compete a ele descobrir os mecanismos?
Ademais, tal abordagem não reforça a redução da problemática identitária a uma
troca entre pesquisador/pesquisado? Se a recusa do etnocentrismo impede que se
formule uma definição objetiva da vinculação racial, será, portanto,
indispensável investigar os mecanismos utilizados pelos próprios atores quando
integram os traços raciais no seu modo de apresentar-se ou de apreender o
outro.
Cartagena, cidade mestiça?
Em Cartagena, as modificações constitucionais (reconhecimento do
multiculturalismo) e a introdução da Lei 70 destinada às "populações afro-
colombianas" não provocaram nenhum movimento significativo de reivindicação
étnica. Algumas associações e alguns candidatos às eleições bem que tentaram
invocar "a negritude", as "comunidades afro-colombianas" ou os "direitos
étnicos", mas essas tentativas não surtiram efeito, pois não receberam o apoio
da população e mais pareceram um artifício político.
1
Convém ainda lembrar que a própria Lei 70 torna difícil a instauração de um
sistema de discriminação positiva para outra região que não seja a do Pacífico,
diretamente afetada pela questão das "terras da Nação" (terras baldias),
capítulo principal da lei. Foi assim que, por exemplo, o candidato à prefeitura
do Movimiento de las Comunidades Negras só obteve 1,36% dos votos na eleição
local de outubro de 1997, ou que as eleições dos delegados das comunidades
negras do Atlântico só se realizaram uma única vez, em 1997. A afirmação de uma
especificidade étnica é quase sempre percebida como forma de oportunismo
político que instrumentaliza o discurso multicultural, ou como forma de racismo
que estigmatiza o mais negro.
Cartagena é, de fato, apresentada como o cartão postal turístico da Colômbia,
como um oásis de paz num país mais conhecido pela multiplicidade e recorrência
das formas de violência. Tombada pela Unesco, desde 1984, como Patrimônio
mundial da humanidade, ela ostenta um passado glorioso e se identifica com o
Caribe ' e não com o interior andino, considerado conflitual ' para valorizar
sua tradição de integração e de mestiçagem. Inúmeras evocações de Cartagena
põem agora em destaque a miscigenação, considerada como a característica
principal da cidade: numa revista distribuída pela sociedade hoteleira
internacional Hilton, Cartagena é comparada a uma "jóia racial" que apresenta
os cruzamentos entre todas as raças (Garcia Usta, 1988); um artigo sobre a
gastronomia da cidade considera-a como o resultado da "decantação, durante
anos, da qual participaram raças diversas e várias influências" (Martinez
Emiliani, 1991). De modo geral, o fato de associar a cidade ao Caribe, que o
escritor Gabriel García Marquez elegeu como cenário para muitos de seus
romances e contos, ajuda a reforçar sua imagem de cidade mestiça (García
Marquez, 1985). Assim, Cartagena valoriza seu pluralismo racial, com destaque
para a origem índia e africana através dos consagrados símbolos da India
Catalina e da palenquera, celebrando a diversidade racial das rainhas de beleza
locais. Numa das maiores agências turísticas de Cartagena, Gema Tours, a
justificativa dada para a sobre-representação de guias morenos (eufemismo
corrente para a palavra mestiço) é a seguinte: "é uma atração turística. Os
morenos são um símbolo. E os morenos daqui não são como os de Nova York. Os de
lá metem medo, mas os daqui já são mais miscigenados, têm traços físicos mais
suaves. E agradam aos turistas" (entrevista, 11 de outubro de 1998).
De fato, Cartagena foi o porto onde desembarcaram não só os colonos espanhóis e
os escravos africanos, mas também os comerciantes sírio-libaneses, os
traficantes de todos os horizontes, os piratas europeus. O número de escravos,
embora considerável, jamais atingiu a proporção que havia nos outros centros
urbanos da época, pois Cartagena era, antes de tudo, lugar de chegada e de
trânsito. Em 1778, Jaime Jaramillo Uribe estimava que os escravos em Cartagena
representavam 7% da população da cidade, contra 39% na região do Chocó, 19% em
Popayán, 18% em Antioquia e 10% em Santa Marta (Jaramillo Uribe, 1994: 219-
220). Considerava, na mesma época, que a população mestiça constituía 65% dos
habitantes de Cartagena (ibidem:12). Alfonso Munera, ex-diretor da Faculdade de
Ciências Humanas da Universidade de Cartagena, considera o aumento da
miscigenação como vetor essencial do desenvolvimento da cidade, reinterpretando
o principal acontecimento da história de Cartagena ' a tentativa frustrada de
independência em 11 de novembro de 1811 ' como uma revolta de artesãos e
pequenos comerciantes contra a dominação dos crioulos de origem européia
(Munera, 1998).
No entanto, essa imagem de "cidade mestiça", difundida tanto pelos intelectuais
quanto pela imprensa, pelas campanhas turísticas ou pelos próprios habitantes,
coexiste com uma representação bem diferente, misto de polarização racial e
paternalismo inferiorizante. Na origem deste segundo discurso sobre Cartagena,
encontram-se historiadores pertencentes à elite social e política que mostram
os colonos europeus e seus descendentes como os únicos atores da história da
cidade. Não só lembram com insistência a origem européia desses colonos, a
grandeza de suas intenções e sua nobreza de costumes, mas, quando se referem às
populações negras e mestiças, citam apenas o tráfico e a situação dos escravos,
ou as revoltas dos marrons*, os escravos fugidos que se acoitaram nos arredores
de Cartagena (Porras Troconis, 1965; Bossa Herazo, 1967; Bustamante, 1977).
Entre evangelização dos escravos domésticos e repressão da ameaça marron, a
mestiçagem adota a forma de imposição e de dominação do "branco", assimilando
civilização a embranquecimento (cultural e não biológico). Eis porque os quatro
volumes da Histoire Générale de Cartagena, de Eduardo Lemaître, que parece
ignorar a existência da mestiçagem e só retém uma "perfeita alteridade" (o
outro, escravo ou marron), ainda são considerados obra de referência; a maior
prova disso é a publicação, com base em seus trabalhos, de um manual destinado
aos alunos das escolas da cidade (Funcicar, 1994) ou de um resumo traduzido em
inglês e distribuído nos pontos turísticos (Lemaître, 1998).
Essa dupla leitura da história de Cartagena é reveladora das ambigüidades
próprias a seu estatuto de "cidade mestiça": pois a mestiçagem, hoje
valorizada, tende a ocultar ' por trás do mito do híbrido moderno, da fusão e
do sincretismo, portador de certa modernidade do indivíduo ' a recorrência das
diferenciações raciais e dos antagonismos sócio-econômicos; do mesmo modo, sob
pretexto de uma apresentação a-racial da história, o discurso da aristocracia
contribui para manter a "fronteira da cor" que preserva o grupo dominante.
Porque, apesar dessa imagem, a polarização racial está presente em Cartagena.
Compreende-se, aliás, por que Solan e Kraus, dois pesquisadores da linha anglo-
saxônica que estuda as relações raciais, caracterizaram a cidade, em seu
trabalho pioneiro de 1967, em termos de "discriminação sem violência",
mostrando a mistura paradoxal de discriminação e de integração, característica
de Cartagena. A cidade continua dominada por uma elite branca muito fechada que
não se cansa de lembrar, por meio de intermináveis árvores genealógicas, a
origem européia de seus antepassados; elite que se encontra em lugares
exclusivos (bairros, clubes sociais) e cujos sobrenomes compostos (Velez Velez,
Benedetti Benedetti, Lelarge Lelarge) atestam a predominância de uma lógica
endogâmica. Por outro lado, a aliança com o "negro" constitui um sinal de
exclusão, um estigma, uma inferiorização (Streicker, 1992, 1995) que se percebe
na linguagem (como o demonstra a expressão "negro tenia que ser") e na vida
prática. Exemplo disso é o modo de ver a champeta, música de origem africana
(inspirada sobretudo no soukous do Congo) muito popular nos bairros marginais
da cidade, e "naturalmente" estigmatizada como violenta, agressiva e
transgressora das normas sociais aceitáveis, num processo comparável, por
várias razões, ao que ocorre com o rap nos Estados Unidos e, em menor
proporção, na França.
Portanto, à imagem idílica de uma Cartagena turística, "pérola do Caribe", na
qual convivem harmoniosamente populações mestiças, é possível opor-se uma
realidade mais complexa. Porque a cidade sofreu profundas transformações desde
os anos 1960-1970, passando da categoria de cidade provinciana adormecida sobre
o passado glorioso, marginalizada politicamente, para a de metrópole regional,
com quase um milhão de habitantes, aberta para a América Latina e o Caribe. À
riqueza turística vieram, assim, juntar-se as atividades portuárias e
petroquímicas; à oposição centro/periferia, sucedeu um ativismo político que
passa pela descentralização e pela implantação na área caribenha. Crescimento
demográfico, expansão dos bairros marginais, chegada maciça de refugiados da
violência, insuficiência de infra-estrutura urbana, redução da política da
cidade a uma política turística: eis algumas das atuais características de
Cartagena. Nesse contexto urbano tumultuado, o paternalismo tradicional e a
relativa harmonia das relações raciais coexistem com novas formas de vassalagem
identitárias e fontes de conflito inéditas.
Chambacú, gueto negro?
O estudo de Chambacú, bairro "negro" resultante de invasão e hoje desaparecido,
mítico desde que o escritor Manuel Zapata Olivella o celebrizou, ajudará a
medir a dimensão territorial dos processos de atribuição de status e a examinar
as relações entre as identificações sociais, raciais e espaciais. A forte
segregação sócio-espacial que caracteriza Cartagena hoje em dia, com a oposição
sobretudo dos bairros turísticos e históricos (que são o local de residência
das classes favorecidas) ao restante da cidade, é raramente expressa em termos
étnicos ou raciais. A essa regra, só há uma exceção, a de Chambacú, antigo
bairro de invasão situado ao pé das muralhas (cf. figura 3) que são a
encarnação da Cartagena heróica e turística, hoje um vasto terreno baldio sobre
o qual pairam inúmeros projetos de urbanização. Não que o bairro seja
sistematicamente apresentado como um gueto negro, mas é ele o único a ser
pensado, às vezes, em termos étnico-raciais.
Estudar Chambacú corresponde, portanto, por um lado, a melhor compreender os
processos de rotulagem ' ou de não-rotulagem ' étnica através da diversidade
das narrativas e, por outro lado, a estudar as dinâmicas mútuas da etnicização
e da territorialização. Para retomar os termos de Robert E. Park, o estudo de
Chambacú sugere o confronto entre ordem moral, domínio da comunicação entre as
pessoas, e ordem ecológica, domínio da competição entre populações diferentes.
A ordem moral, que regula o campo das interações de indivíduos, é inseparável
de sua inscrição numa ordem ecológica que contribui para a significação das
categorias.
A noção de gueto 'e, além dela, a de bairro étnico' foi objeto de muitas
discussões sobre sua associação "natural" com a etnicidade, sobretudo nos
Estados Unidos, país que o erigiu em paradigma sociológico. Vamos considerar um
aspecto dessas discussões, o da diluição da dimensão racial do gueto, que
acabaria por designar "um espaço urbano de pobreza extensa e intensa, que
oculta o fundamento e o caráter racial dessa pobreza".
2
(Wacquant, 1997:341). A questão do caráter racial do gueto surge de fato nos
Estados Unidos desde que várias pesquisas (Foreman, 1971; Jencks &
Peterson, 1991; Wilson, 1991; Jargowsky, 1997) insistiram na dimensão sócio-
econômica, deixando entre parênteses seu caráter étnico-racial e/ou cultural,
tal como ele aparece na definição original do gueto judeu na Europa e, depois,
do gueto negro nos Estados Unidos. Será que o gueto se define prioritariamente
por sua dimensão étnico-racial? Ou será ele o resultado de um processo de
exclusão sócio-econômica? Pode-se falar de "gueto branco"? Deve-se dar
prioridade a um ou a outro desses fatores? Como isolar um do outro? Deve-se
propor uma definição a priori ou tomar como base uma caracterização empírica?
Qual o papel do pesquisador na definição do "gueto étnico"? E o papel dos
próprios atores? É a composição da população que faz com que um bairro seja
étnico? Ou essa etnicidade será o resultado de um processo de rotulagem e de
uma territorialização especial? De certa maneira, a reflexão sobre o gueto só
admite, no caso, territórios e identidades pré-fabricados
3
como garantia de validade epistemológica para Loïc Wacquant, ou como fatores
independentes para os autores norte-americanos. Interesso-me, porém, pelos
mecanismos de racialização das relações sociais, nos quais a relação com o
espaço não é produto nem causa, mas sim recurso e imposição para os atores. O
que as reflexões sobre o gueto esquecem é o ponto de vista do indivíduo sobre a
cidade e sobre si mesmo, o ponto de vista de um sujeito que institui um objeto
e, em retorno, é instituído como sujeito (Lepetit, 1996). "É o que aqui nos
interessa: não se trata de estabelecer a identidade de um espaço fazendo a
genealogia de sua singularidade, mas sim de analisar as diferentes relações que
existem entre a idéia que as pessoas têm do espaço e a idéia que elas têm de si
mesmas ou dos outros (Monnet, 2000: 20).
Chambacú, no fim do século XIX, não passa de um emaranhado de mangues-
vermelhos, entre terra e mar: os inúmeros ataques que marcaram a história de
Cartagena obrigam a população a viver dentro das muralhas. Em Chambacú existem
algumas cabanas de madeira de propriedade dos moradores da cidade que vivem
intramuros, ou casebres que servem de abrigo para os visitantes que não
conseguem entrar no recinto fortificado, pois suas portas se fecham diariamente
ao pôr-do-sol. Desse modo, no Registro de notarios dos Arquivos Históricos de
Cartagena só consta uma casa em 1881. Depois, Chambacú começa a povoar-se com a
chegada da ferrovia, no início do século XX. As primeiras construções da
ferrovia provocam uma migração de mão-de-obra proveniente das aldeias vizinhas,
que se instala naturalmente ao pé das muralhas, entre a cidade e a aldeia de
origem, e também no ponto de partida da via férrea. Na mesma época, do outro
lado da cidade, o traçado da avenida Santander, entre o mar e as muralhas,
provoca a destruição dos bairros Pekin, Pueblo Nuevo, El Boquetillo, cujos
moradores, em boa parte, vão procurar abrigo em Chambacú. Ora, esses três
bairros, encostados nas muralhas, onde moravam os antigos escravos, tornaram-
se, após a abolição em 1851, bairros de empregados domésticos, jardineiros e
artesãos em geral.
Depois de 1815, com a violenta repressão à primeira independência da cidade,
que levou à eliminação de sua elite política e à destruição de seu potencial
econômico, Cartagena entrou numa longa fase de letargia, passando da posição de
porto independente e próspero, voltado para o Caribe, à de cidade provinciana,
marginalizada em nível nacional, e, em nível local, ultrapassada pelo dinamismo
da rival Barranquilla. A partir dos anos 1960, Cartagena retoma seu passado
glorioso, apresentado a partir de então sob a forma de um patrimônio nacional e
internacional, e como atração turística entra num novo ciclo de prosperidade.
Chambacú já não combinava com a imagem dessa cidade que se pretendia organizada
e desenvolvida, moderna e turística. É o Instituto de Crédito Territorial '
ICT, órgão nacional responsável pela política de habitação social, que está na
origem da erradicação de Chambacú no início dos anos 1970. Hoje, quase trinta
anos depois, nenhum dos diversos programas de urbanismo propostos para
justificar tal operação (construção de um bairro de classe média, inauguração
de um novo centro administrativo, criação de um centro comercial, projeto de
marina de luxo) foi instalado: Chambacú permanece um imenso terreno baldio que
separa o centro do resto da cidade e evidencia, de modo incômodo e penoso, as
ambições e impasses da nova política urbana instaurada desde os anos 1960.
Projetos destinados a utilizar esse terreno situado a poucos metros do centro
histórico, ao pé das muralhas, não faltam. Recentemente, o terreno foi vendido
à firma Chambacú de Indias S. A., e a ganância despertada por sua localização
provocou um escândalo político-financeiro que implica altos funcionários, entre
os quais o ministro do Desarrollo Económico e o embaixador da Colômbia em
Washington, acusados de tráfico de influências, desvio de recursos públicos e
desaparecimento de documentos administrativos.
Como os diferentes atores e observadores do "episódio Chambacú" apresentam e
justificam a supressão desse bairro? Os termos utilizados são bem reveladores:
enquanto uns se referem à "erradicação" do bairro como um processo violento e
indesejado, outros falam de "remoção", apresentando o mesmo fenômeno, num
eufemismo, como positivo. Se essa dupla interpretação do processo de "limpeza"
dos bairros de invasão já é clássica na Colômbia e alhures, vou focalizar aqui
mais precisamente a racialização diferencial dessas apresentações, entre
supressão de qualquer referência étnico-racial nos discursos oficiais e
destaque da lógica racial nos textos artísticos.
Para a atual diretora do Inurbe ' Instituto Nacional de Interesse Social e de
Reforma Urbana, herdeiro do Instituto de Crédito Territorial, a remoção dos
moradores de Chambacú se interpreta sobretudo em termos de acessão à
citadinidade.
Era um tugurio (favela), sem nenhum serviço público, com eletricidade
pirateada, e com moradores que não pagavam nenhuma taxa pública.
Havia uma forte decomposição social, nem se podia passar por perto.
Nos novos bairros, foram-lhes entregues casas, casas de verdade, com
todos os serviços, água, eletricidade. (entrevista, 16 de setembro de
1999)
Do mesmo modo, o arquiteto que participou da construção das novas moradias para
os habitantes de Chambacú enfatiza a dimensão social do projeto:
em Chambacú todo mundo construía sua casa com um pedaço de papelão,
com um telhado de papelão, com qualquer coisa. Em pleno coração da
cidade, encostado às muralhas, por trás da India Catalina, as pessoas
paravam e viam aquela coisa. Colaborei muito para erradicar esse
bairro porque, em Cartagena, não havia casas para os pobres. E nós
começamos a fazer moradias, para as quais as pessoas iam chegando
pouco a pouco. (entrevista, 3 de agosto de 1999)
Mas, ao lado desses discursos em que toda dimensão racial está excluída,
Chambacú também é apresentado como símbolo da história africana de Cartagena,
desde que Manuel Zapata Olivella o tornou conhecido em seu livro Chambacú
corral de negros: a análise em termos de promoção social e de renovação urbana
é substituída por uma evocação da dimensão racial do fato. O escritor pertence
a uma das famílias de destaque na cidade por sua ação em favor do
reconhecimento da plurietnicidade e da herança africana de Cartagena: seu irmão
Juan, poeta e médico, foi o primeiro candidato negro a uma eleição
presidencial; sua irmã Delia foi pioneira em matéria de estudo e divulgação do
folclore afro-colombiano. Quanto a Manuel, por muito tempo embaixador da
Colômbia, é o autor de muitos romances e ensaios que tratam da epopéia das
populações negras: Chango, el Gran Putas; Levantate Mulato. Por mi raza hablará
el espiritu;Las claves mágicas de América. Em Chambacú corral de negros, Manuel
Zapata Olivella evoca a história do bairro. Em algumas palavras, pronunciadas
por Máximo, personagem central do romance, a situação é apresentada:
A ilha está crescendo. Amanhã seremos quinze mil famílias. O 'Câncer
negro', como eles nos chamam. Querem destruir-nos. Têm medo de que um
dia atravessemos a ponte e a onda de favelas inunde a cidade. Por
isso é que para nós não há ruas, nem esgoto, nem escolas, nem saúde.
Querem afundar-nos na miséria. Estão enganados. Vamos lutar por nossa
dignidade de seres humanos. Não vamos deixar que nos expulsem de
Chambacú. Eles não hão de mudar a face negra de Cartagena. Sua
grandeza e glória apóiam-se nos ossos de nossos antepassados. (Zapata
Olivella, 1990a:199)
Recentemente, Chambacú foi igualmente glorificada por outra artista,
considerada também porta-voz da cultura afro-colombiana: a cantora Totó La
Momposina, uma das mais célebres vozes do Caribe colombiano, que dedica em seu
último CD
4
duas canções ao bairro hoje transformado em terreno baldio. A primeira,
"Chambacú", fala do cotidiano de uma negrinha e da história desse bairro de
"negros Bembé"; na segunda, a intérprete conta:
"En el barrio 'e Chambacú
fui a visitar una familia,
Ay de origen Bantú (...)
Oh, Chambacú, sudor de negros
historia de esclavos".
"No bairro de Chambacú
fui visitar uma família,
Ai, de origem banto (...)
Ó, Chambacú, suor de negros
história de escravos".
O bairro torna-se um episódio central da história de Cartagena, a encarnação do
destino reservado às populações negras, de sua marginalização e segregação.
"Chambacú, Chambacú, Chambacú...
La historia de las murallas
con sangre la escribió la canalla,
con sangre la escribió la canalla,
con la pluma del dolor,
con la pluma del dolor,
curando la carne esclava
a lo lejos se ve la muralla,
a San Pedro Claver con la saya,
curando al negro Bembé,
curando al negro Bembé,
Chambacú, Chambacú,
Chambacú, Chambaculero
De aquí no me sacas tú
Chambacú, Chambacú, Chambacú...
la historia la escribes tú".
"Chambacú, Chambacú, Chambacú...
A história das muralhas
com sangue a escreveu a ralé,
com sangue a escreveu a ralé,
com a pena da dor,
com a pena da dor,
curtindo a carne escrava
ao longe se vê a muralha,
São Pedro Claver com a batina,
curtindo o negro Bembê,
curtindo o negro Bembê,
Chambacú, Chambacú,
Chambacú, Chambaculero,
Daqui não me tiras
Chambacú, Chambacú, Chambacú...
a história é escrita por ti".
Gueto étnico, favela sócio-econômica: a identificação é também uma questão de
rotulagem e remete à posição e aos interesses de quem a enuncia. Para uns,
Chambacú devia ser eliminada a fim de melhorar as condições de vida de seus
moradores; para outros, a destruição de Chambacú decorre de uma lógica de
segregação racial numa cidade que procura melhorar a própria imagem. Para uns,
a dimensão sócio-econômica é o principal fator de explicação da história de
Chambacú; para outros, só a dimensão racial é levada em conta. Mas, num como
noutro caso, tudo acontece como se as identidades pré-definidas viessem
encarnar-se num território ao qual seriam imediatamente atribuídas as
características próprias a essa identidade. Para Manuel Zapata Olivella, por
ser Chambacú um "câncer negro" é que não possui ruas, nem esgoto, nem escolas,
nem saúde; por ser a população de Chambacú negra é que ela não tem acesso a uma
vida urbana efetiva. Esse raciocínio tem um paralelo simétrico nas
interpretações sócio-econômicas: porque a população de Chambacú não conta com
infra-estruturas públicas é que ela é considerada negra, o acesso à vida urbana
transformando-se em sinônimo de embranquecimento. Prova disso é o trecho de um
artigo do Magazin Dominical que resume, de modo lapidar, a destruição de
Chambacú:
um dia pensou-se que Deus fizera um milagre quando alguns negrinhos
de Chambacú subiram num daqueles ônibus desmantelados da época,
atravessaram algumas ruelas típicas e chegaram ao seu destino bem
arrumadinhos e quase brancos. (El Espectador, Magazin Dominical, 11
de novembro de 1973)
A uma população pobre corresponderia, assim, a favela ou tugurio; a uma
população negra, o gueto étnico. Essas assimilações apresentadas como naturais
evitam a questão da identificação dos indivíduos e dos territórios. Baseiam-se
num duplo pressuposto: por um lado, existiriam territórios e identidades
definidos de modo independente uns dos outros; por outro lado, haveria uma
perfeita correspondência (objetiva e subjetiva) entre essas identidades e esses
territórios. Convém, ao contrário, colocar-se num ponto médio entre essas duas
posições, na interação do social com o espacial: os indivíduos "escurecem"
quando associados a um bairro; um bairro vira gueto em função dos moradores que
nele habitam. Esses processos são não só dinâmicos e relacionais, mas a
adequação entre lógica espacial e lógica identitária está longe de ser
sistemática.
Movimentos Marrons identitários e territoriais
Quem se coloca no cerne dos processos de identificação sócio-espacial precisa
focalizar não as identidades e os territórios, nem as práticas subjetivas e sua
encarnação espacial, estudados de modo independente e sucessivo, mas sim suas
interações, seus mecanismos de construção recíproca. É, portanto, da própria
situação que se vai partir, o que permite, em termos de Goffman, explicar os
mecanismos de acoplamento, impreciso e múltiplo, entre ordem estrutural e ordem
das interações, estudar a capacidade que têm os indivíduos de avaliar seu meio
tanto social quanto espacial, de definir simultaneamente o outro e seu
território, Nesse quadro, as aparências raciais surgem como um "marcador de
identidade" (Jean-Luc Bonniol), um "discriminante do papel" (Ulf Hannerz), uma
imposição externa ao levantamento dos papéis, ao conjunto dos compromissos
individuais. Ao estudar duas formas de movimentos marrons contemporâneos,
tenta-se compreender como os mecanismos de gestão social das aparências raciais
são reveladores dos modos diferenciais de produção de normas sociais e de
construção do espaço.
É importante estudar a cidade de Cartagena pois ela tem uma minoria, os
palenqueros,
5
que corresponde diretamente à lógica instaurada pelo reconhecimento do
multiculturalismo (com mais precisão, deve-se falar não de palenqueros em
geral, mas de uma fração deles, culta, em plena ascensão social e que pretende
representá-los). Sua ação como marron, entendida no sentido histórico original
do termo, mais parece um distanciamento, tanto espacial quanto identitário. No
contexto atual, assume a forma de uma transformação do estigma social em
valorização étnica. Ao instrumentalizar seu passado de cimarrones, ao
apropriar-se do mito de Benkos Bioho,
6
ao enfatizar sua especificidade cultural (língua, práticas religiosas,
organização social), os palenqueros são hoje, em Cartagena e no litoral
caribenho colombiano, os únicos representantes dessa "etnia negra" à qual novos
direitos (mínimos) são concedidos. Porque esse processo de construção de um
ator étnico numa nova paisagem multicultural passa também pela exclusão dos que
não podem exibir a nova identidade negra, isto é, a quase totalidade dos
habitantes de Cartagena, que não se reconhece no discurso palenquero.
Os "empresários étnicos" palenqueros confrontaram-se com a experiência urbana:
foi do encontro com o outro e da aprendizagem de um modo de vida caracterizado
por relações múltiplas e parciais que nasceu a afirmação de sua especificidade
cultural. Mas essa experiência do pluralismo e da fluidez das identificações
permite a construção de um território mítico, a aldeia de Palenque de San
Basilio, terra africana da região Atlântica, suficientemente subjetivo para ser
considerado como um recurso mobilizável, suficientemente objetivo para
legitimar a emergência de um ator étnico. A referência a esse território
imaginário funciona então como um recurso mobilizado no processo de construção
identitária e contribui para a formação de uma "identidade étnica", tal como a
reivindicam os líderes de Cartagena ' à sua conformação, pode-se dizer ' pois
os mecanismos de identificação e de territorialização se fortalecem mutuamente.
Porque a evocação da aldeia imaginária, último bastião da autenticidade
africana, autoriza a construção de uma comunidade, também ela imaginária,
guardiã de uma cultura africana preservada; ao mesmo tempo, o reconhecimento
local e nacional do discurso étnico palenquero transforma Palenque de San
Basilio em museu vivo da africanidade. Ambos os processos, longe de serem
independentes, se reforçam mutuamente.
De certo modo, é toda a população de Cartagena que fica duplamente discriminada
pela emergência dessa nova barreira étnica: primeiro, por sua exclusão da
cidadania efetiva e, segundo, por sua exclusão do direito à diferença.
Primeiro, porque ela é negra; segundo, porque ela não é suficientemente negra.
Mais ainda: a associação do princípio democrático de igualdade com a afirmação
recente do multiculturalismo priva a maioria da população de qualquer
possibilidade de reivindicação identitária. Logo, o paradoxo: o semi-sucesso do
igualitarismo republicano explica o semifracasso da discriminação positiva.
Pois a obsessão da diferença, a instrumentalização do multiculturalismo e a
afirmação da etnicidade produzem também a exclusão de quem não pode valer-se da
identidade dada como exemplo. De Palenque de San Basilio ao Caribe, o
multiculturalismo se expressa sob os traços da objetivação e da diferença
absoluta, por um lado, e da imprecisão e da diferença relacional, por outro
lado; da imposição de um modelo identitário, por um lado, da negociação
situacional, por outro.
As atuais celebrações do cabildo atualizam uma tradição de luta marron menos
conhecida (por ser menos violenta e menos visível) que não assume a forma de
apropriação comunitária do espaço urbano, nem a de citadinidade desencarnada.
Os cabildos eram, na época colonial, espaços reservados aos escravos que,
durante um dia, deixavam o trabalho, vestiam a roupa dos senhores, divertiam-
se, escutavam a música de seus donos, dançavam à vontade, praticavam seus
cultos religiosos. Em Cartagena os cabildos mais importantes ocorriam em 2 de
fevereiro, pela festa da Virgem da Candelária, a padroeira de Cartagena. Na
metade dos anos 1980, um grupo de moradores de Getsemaní, bairro considerado
como dos escravos e dos artesãos mulatos, decide reavivar a tradição dos
cabildos e para isso organiza desfiles e espetáculos. Nasce assim o Cabildo de
Getsemaní, que adapta um pouco a história e escolhe 11 de novembro como data
das comemorações. Transformada em festa republicana, com certa reapropriação da
herança das lutas pela independência e com a lembrança do papel desempenhado
pelos habitantes de Getsemaní, tendo à frente Pedro Romero e os Lanceros de
Getsemaní, o Cabildo aproveita assim o contexto festivo e mediático das
comemorações de 11 de novembro, em torno, principalmente, dos concursos de
beleza. Mais ainda: pretende reativar nessas festas de novembro o aspecto
popular e a autenticidade perdidos com a predominância do Concurso Nacional de
Beleza e da imposição de interesses externos. Formado por quarenta grupos em
1998, o Cabildo desfilou pelo Paseo Bolivar, um dos mais importantes eixos de
comunicação de Cartagena, até chegar a Getsemaní. Depois de ter reverenciado o
deus ioruba Oiá, ele festeja este ano La Ceiba, árvore por meio da qual os
orixás se comunicam com os homens, apresentada como duplo símbolo da América e
da África, por Nilda, rainha do Cabildo.
7
O Cabildo foi o momento em que se fez um trabalho de compilação de histórias
orais dos moradores do bairro de Getsemaní e de pesquisas sobre as tradições
festivas e religiosas da cidade; esse trabalho começou na associação Gimaní
Cultural, nascida em 1986, e foi depois mantido pelo Fondo Mixto de Cultura de
Cartagena (dependente do Ministério da Cultura), organismo público à frente do
qual está Nilda, rainha do Cabildo de Getsemaní. Em 1998, o folheto de
apresentação do Cabildodescreve as diferentes danças, destacando sua origem
africana (Danza de los Macheteros, Danza del Garabato,Danza del Congo,Danza de
los Diablos) e reescreve a história dos habitantes de Cartagena, nem apenas
escravos impotentes, nem também marrons em luta: "A realização dessas festas
alegres e coloridas era uma necessidade para os negros que, trazidos da África
como escravos para trabalhar na construção das casas, igrejas e fortificações
da cidade e nas casas e fazendas dos grandes proprietários, conservavam suas
próprias manifestações culturais, entre elas o culto a seus deuses, sempre
acompanhado de cânticos, danças, fantasias e batida de tambores".
A reapropriação da história acompanha um programa de educação, de participação
cidadã, de construção da citadinidade que se encarna no projeto de Gimaní
Cultural. Porque, no meio dos anos 1980, quando nascem simultaneamente o
Cabildo e a associação Gimaní, Getsemaní é um bairro devastado, cuja decadência
econômica, social e até arquitetônica torna-se mais visível porquanto o resto
da cidade histórica passa por uma reabilitação e por um dinamismo ligados ao
desenvolvimento turístico e à chegada de novos moradores. Considerado como um
bairro popular e marginal situado dentro das muralhas, por oposição, por
exemplo, ao aristocrático bairro de San Diego, centro do comércio e do
contrabando, sede do mercado desde 1974, Getsemaní foi o bairro dos
aventureiros estrangeiros, dos comerciantes judeus, mas sobretudo dos mulatos
independentes, dos escravos forros, das empregadas domésticas negras. Esquecido
pelas políticas urbanas, abandonado pelos projetos de desenvolvimento
turístico, afetado pela crise econômica, Getsemaní tornou-se um bairro marginal
e perigoso, ponto de prostituição e de tráfico de drogas, marcado pela
violência e cuja decadência é materialmente simbolizada pelas construções
coloniais e republicanas se desfazendo em ruínas. Ora, no projeto da associação
Gimaní Cultural, a recusa da estigmatização racial e do declínio socioeconômico
se conjugam para dar origem a uma verdadeira proposta política de
reinvestimento da cidade. A partir da organização de eventos "cívico-
culturais", trata-se de estimular uma participação cidadã que passa pela
recuperação e pelo desenvolvimento de "valores cívicos festivos na cidade"
(programa da Fundación Gimaní Cultural, 1997:4).
Para Nilda, que quer transformar os desfiles do Cabildo em carnaval, a
valorização da herança africana não significa concentração comunitária,
encarnada pelo exemplo dos palenqueros, mas incita, ao contrário, a uma
abertura para a participação popular, em que a identificação racial assume a
forma de referência ao Caribe:
Fomos buscar a tradição africana em Bocachica que, por ser uma ilha,
permaneceu mais isolada e manteve sua autenticidade. Mas não é como
os palenqueros. Estes querem conservar a pureza de sua raça, não se
misturam. Perto de La Popa, há palenques urbanos, muito fechados.
Somos mais abertos. Para nós, a cidade é a esquina da rua, e a
esquina é o Caribe, com todas as suas misturas. Os palenqueros dizem
que são negros e querem coisas. O Cabildo é como uma Assembléia de
Ação Comunal (Junta de Acción Comunal), tem um significado político.
Mas não dessa política dos politiqueiros. Queremos envolver toda a
cidade, que seja um espaço de participação. O Cabildo é o canal de
expressão de um povo caribenho. Cartagena é a única cidade onde não é
preciso afirmar-se caribenho, para sê-lo. (entrevista, 7 de janeiro
de 1998)
Em 23 e 24 de setembro de 1999, a associação Gimaní Cultural e o jornal El
Universal organizaram o Primeiro Simpósio sobre o Pensamento Popular e a
Cultura Festiva de Cartagena. A finalidade era fazer o balanço de dez anos de
Cabildo, refletir sobre os objetivos e a contribuição da criação de um carnaval
e, de forma mais ampla, favorecer os debates sobre a cultura popular, a herança
africana, a participação política, o desenvolvimento da citadinidade. Nilda
relata essa tomada de posse da cidade que acompanha o nascimento e o
desenvolvimento do Cabildo:
O Cabildo vem de Getsemaní com esta pergunta: como recuperar nosso
bairro para nosso uso e nossa satisfação? A cidade expressou-se
através do Cabildo que corresponde também a um trabalho cívico do
qual participa toda a comunidade. Mais do que recriar o Cabildo, a
idéia é recriar a identidade da cidade e desenvolver uma cultura
cidadã. Em dez anos fizemos germinar no coração dos habitantes de
Cartagena a idéia de organizar um carnaval. Isto é, contar com um
princípio cidadão suficientemente popular para que essa grande
manifestação seja possível com a participação de todos. O centro
histórico converteu-se em mausoléu. O morador de Cartagena já não
vive no centro. A única resistência é a de Getsemaní. É preciso
recuperar o que nos pertence por meio das tradições festivas. O Paseo
Bolivaré o local doCabildo. O Cabildo segue o deslocamento da cidade
quando ela deixa o centro, as muralhas. Estamos conscientes de que a
cidade começa a partir do mar. Estamos num processo cidadão, de
construção do lugar e da cidade onde vivemos.
Conclusão
A relação com aquele que é diferente não é um caso particular ou
extraordinário; ela faz parte das interações cotidianas comuns, é a encarnação
da questão do vínculo democrático (Martucelli, 1999: 447), revela as virtudes
próprias à entrada na urbanidade e na citadinidade. A cidade, porque obriga ao
confronto e à coexistência num mesmo território, explica mecanismos que existem
na identificação de si e do outro; ao mesmo tempo, a gestão cotidiana da
diferença participa da produção de espaços urbanos, num movimento de vaivém
entre identificação e territorialização. "Toda sistematização do princípio de
discriminação positiva que tenda a estabelecer que um espaço justo é o espaço
apropriado acaba por negar dois fundamentos da cidade e da urbanidade: a co-
presença e suas conseqüências (as duas formas do direito de visita ' a intrusão
e o senso comum) e a mobilidade" (Joseph, 1995: 35). Mais que um fracasso, o
fraco desenvolvimento do multiculturalismo em Cartagena pode ser tomado como a
conseqüência da pregnância de processos de identificação situacionais e
interacionais, por meio dos quais seus habitantes constroem simultaneamente seu
direito à citadinidade e seu direito à diferença. Ao qualificar em situação os
passantes e seu entorno, transformam o controle do face a face com o outro numa
forma de testar o vínculo democrático em escala microssocial, e numa etapa para
a reivindicação cidadã.
NOTAS
1. Os candidatos negros fizeram mútuas acusações de oportunismo eleitoral, e um
deles até preferiu inscrever-se numa lista índia, por considerar que estas
reivindicações étnicas eram mais "autênticas".
2. Wacquant também critica a idéia segundo a qual o gueto é desorganizado, ou a
tendência a só se ver nele o aspecto exótico.
3. É aceita, como um dos elementos constitutivos da noção de segregação, a
idéia de fronteiras espaciais que separam grupos bem identificados (Brun &
Rhein, 1994:37).
4. Totó la Momposina, Pacantó, MTM Ltda., 1999.
5. Habitantes de Palenque de San Basilio, aldeia de negros marrons a alguns
quilômetros de Cartagena, hoje apresentada como "a primeira aldeia livre da
América", conseqüência de um acordo de não-agressão mútua, firmado entre a
coroa espanhola e os moradores locais em 1713 (Arrazola, 1970).
6. Rei africano que teria chefiado as revoltas de escravos e fundado Palenque
de San Basilio.
7. Apresentação do Cabildo 1998 à imprensa, no restaurante La Carbonera, em 22
de outubro de 1998.