Metamorfoses do Estado brasileiro no final do século XX
O objetivo deste artigo é analisar algumas das mudanças políticas mais
importantes ocorridas no Estado brasileiro nas últimas duas décadas do século
XX. Para isso focalizarei dois processos que alteraram tanto o Estado como suas
relações com a ordem social e a ordem econômica: a democratização política e a
liberalização econômica.
Esses dois processos foram dimensões-chave da transição política que
transformou a forma autocrática e desenvolvimentista de Estado, vigente no
Brasil desde os anos de 1930. Ao longo de sua existência, este Estado cumpriu o
papel de núcleo organizador da sociedade, deixando pouco espaço para a
organização e a mobilização autônomas de grupos sociais (sobretudo dos
vinculados às classes populares), e funcionou como alavanca para a construção
de um capitalismo industrial, nacionalmente integrado mas dependente do capital
externo, por meio de uma estratégia de substituição de importações.1 Essa forma
de Estado vem sendo denominada "varguista", pois adquiriu suas características
básicas sob a presidência de Getúlio Vargas. Adotarei essa denominação porque
ela acentua o caráter específico do Estado, cuja superação se estudará neste
artigo. Não tenho dúvidas, porém, de que ele é uma entre outras modalidades
autocráticas e desenvolvimentistas de Estado ocorridas na periferia capitalista
no mesmo período.
A transição política brasileira começou com a crise de Estado de 1983-1984 e
terminou com o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, momento em que o
Estado ganhou estabilidade segundo um novo padrão hegemônico de dominação,
moderadamente liberal em assuntos econômicos e completamente identificado com a
democracia representativa. Nessa transição, a democratização política foi mais
importante na década de 1980 ao passo que a liberalização econômica destacou-se
nos anos de 1990. Essa transformação política só pode ser completamente
entendida se a considerarmos no contexto da transnacionalização do capitalismo
(desencadeada pela globalização financeira) e da democratização da sociedade
brasileira.
Na próxima seção procuro caracterizar a crise do Estado varguista em função de
sua importância para a explicação dos processos de democratização política e
liberalização econômica. Essas duas dimensões serão os objetos centrais da
segunda e terceira seções do artigo, respectivamente. Ao final, faço um esboço
das mudanças políticas recentes que apontam para o predomínio de um
desenvolvimentismo renovado e para um aprofundamento da democracia.
Crise de Estado e transição política
O cerne da crise do Estado desenvolvimentista brasileiro foi, do ângulo
econômico, a incapacidade de fazer frente aos pagamentos da dívida externa no
início da década de 1980,2 colocando em xeque o padrão costumeiro de
relacionamento do Brasil com a ordem capitalista mundial. Dessa forma, a crise
só poderia ser contornada ou superada mediante um re-arranjo da articulação que
havia permitido que o país tivesse apresentado até então um desenvolvimento
capitalista pujante, embora dependente. Conforme fosse o caminho escolhido para
enfrentar a situação, poderiam surgir fraturas nas relações do Brasil com
centros econômicos e políticos mundiais mais importantes e/ou na própria base
doméstica de sustentação política do Estado.
Ademais, a situação era tanto mais difícil porque as mudanças em curso nos
âmbitos internacional e doméstico acentuavam os riscos dessas fraturas.
Externamente, a moratória mexicana resultou na suspensão dos fluxos voluntários
de empréstimos bancários para o Brasil e outros países devedores latino-
americanos de 1982 até o final da década, o que provocou uma profunda crise
econômica na região. Além disso, desde meados da década de 1970, as idéias
predominantes nos países centrais e nas agências financeiras multilaterais em
relação à política econômica moveram-se, cada vez mais, do paradigma keynesiano
para a ortodoxia monetarista, inclinada a adotar políticas rígidas de contenção
de gastos públicos e de controle monetário. Essas mudanças nos fluxos
econômicos e nas idéias predominantes em relação à gestão econômica
restringiram muito a autonomia das políticas econômicas nacionais.3
Internamente, as mudanças políticas iniciadas nos anos de 1970 e aprofundadas
desde então também dificultaram a rearticulação externa. De fato, nas eleições
de 1982, o partido de sustentação do regime militar perdeu sua maioria absoluta
na Câmara dos Deputados e dez governos estaduais importantes passaram a ser
governados por partidos da oposição.4 Com tais resultados, o processo de
liberalização política, iniciado por Ernesto Geisel em 1973-1974, pôs mais uma
vez em xeque o controle do regime militar sobre a mudança política do país.5
Com efeito, esses insucessos políticos aprofundaram o padrão segundo o qual
mudanças sociais empurravam sempre, para além de seus próprios limites, o
projeto de liberalização política do regime militar. De fato, a partir de 1970,
os alicerces politicamente excludentes do regime militar e do velho Estado
varguista foram abalados por um vigoroso processo de democratização política.
As classes populares tornaram-se politicamente muito mais autônomas e tentaram
partilhar valores materiais e não-materiais que antes eram exclusivos das
classes média e alta. Por meio das eleições, das atividades de novas
associações civis ou da renovação da atuação de velhas associações, as classes
populares, parte das classes médias e, até mesmo, alguns setores empresariais
passaram a pôr em xeque a capacidade de o Estado controlar, como antes, a
sociedade.6
Dessa forma, no início dos anos de 1980, o governo brasileiro encontrava-se em
campo minado. Na escolha da estratégia para enfrentar a crise, ele sofria, ao
mesmo tempo, pressões externas para conduzir o país em direção à ortodoxia
econômica e estímulos na direção oposta, decorrentes das novas condições
políticas internas. Embora o governo tenha optado por um ajuste externo -
produção de megasaldos no comércio exterior para pagar o serviço da dívida
externa - acompanhado de um ajuste fiscal pouco drástico, isso foi
suficiente para causar sérios danos ao seu suporte sociopolítico.7
Com efeito, a estratégia escolhida para enfrentar o estrangulamento externo
produziu uma crise política muito complexa.8 Ela começou por dissociar o
governo da base de sustentação sociopolítica do Estado varguista. O "ajuste
externo" opôs-se ao receituário econômico da coalizão desenvolvimentista, que
via no crescimento econômico nacional o valor básico a ser alcançado e fazia
das empresas estatais seu pilar central de sustentação. A política
governamental foi considerada recessiva, inflacionária e "injusta", pois
transferia todos os custos do "ajuste" para os agentes econômicos domésticos,
principalmente para os assalariados e para as empresas estatais, evitando
onerar os credores externos. Assim, as políticas de governo não só se
dissociaram dos interesses imediatos da base de sustentação do Estado como
passaram a ser consideradas ilegítimas, contrárias aos valores básicos da
aliança desenvolvimentista.
Um dos resultados disso foi que parte da velha coalizão desenvolvimentista
passou a se opor ao governo. As reações dos dirigentes das empresas estatais,
duramente atingidas pela política de "ajuste" escolhida, foram pouco
explícitas, em função mesmo do caráter autoritário do regime. Sua oposição
manifestou-se indiretamente, pela resistência intra-burocrática aos comandos
governamentais e pela atuação de parlamentares sintonizados com as estatais no
Congresso. Os empregados das empresas estatais, pelo contrário, manifestaram-se
pública e claramente contra a política do governo, seja com demonstrações de
rua, seja pela greve de protesto.
Foi no empresariado privado, porém, que ocorreu a fratura mais importante da
base de apoio do Estado. Parte das elites empresariais não apenas se opôs à
estratégia governamental de ajuste, mas aderiu a "projetos" alternativos para
enfrentar a crise econômica, indicando claramente o esvaziamento da liderança
do governo. Uma porção da elite empresarial, a dissidência mais numerosa, foi
magnetizada por uma versão mais nacionalista e industrialista de
desenvolvimentismo e uma outra, bem menor, foi atraída por uma variante
periférica de neoliberalismo.
Essas reações surgidas no interior da elite empresarial e no sistema de
empresas estatais favoreceram a atuação da oposição político-partidária no
Congresso e seus esforços para mobilizar as classes médias e populares na luta
contra a perpetuação do regime militar. Essa mobilização de massa resultou,
entre janeiro e março de 1984, na mais importante demonstração pública ocorrida
no Brasil em favor da democratização política - a campanha das " Diretas
Já".
A mobilização popular minou completamente o apoio ainda existente à política de
democratização gradual e limitada liderada pelo regime autoritário. Com isso, a
crise política expandiu-se e aprofundou-se: a perda de legitimidade do governo
estendeu-se, incluindo o próprio regime autoritário. Mais ainda, naquela
conjuntura crítica, foi iniciada a ruptura dos limites da legitimidade do
Estado varguista. A entrada maciça da população na luta política em favor da
superação rápida do regime autoritário produziu uma inovação substancial na
vida política brasileira: obrigou o governo a tolerá-la, os meios de
comunicação de massa fiéis ao regime a noticiá-la e as elites políticas a
rejeitar as costumeiras condicionalidades interpostas à vigência da democracia
no Brasil. De fato, a idéia de que não há democracia sem participação popular e
de que não há participação popular sem a liberdade plena de associar-se e de
manifestar demandas coletivas fortaleceu-se social e politicamente pelo amplo
apoio das classes médias e das massas populares. A Campanha das Diretas
redefiniu o espaço legítimo da política no Brasil.
Em suma, apoiada pela mobilização de massa, a oposição produziu uma crise no
padrão vigente de hegemonia política. Daí em diante seria inaceitável um Estado
que impusesse restrições à expressão e à organização políticas das massas
populares; um Estado assim só poderia se manter pela força e/ou pelo interesse.
Dessa forma, a campanha "Diretas Já" anunciou um novo projeto de Estado,
orientado por valores democráticos surgidos do clamor da sociedade pela
democratização.9
Todavia, o regime militar derrotou no Congresso Nacional a proposta de eleições
diretas para a Presidência da República, minimizando com isso os efeitos
políticos mais profundos da crise de hegemonia desencadeada pela mobilização de
massa. O governo conseguiu, usando as alavancas de poder de que dispunha,
contornar parcial e provisoriamente a crise: manteve as massas populares fora
do processo imediato de escolha do novo presidente da República, mas não
conseguiu evitar que boa parte de sua base político-partidária apoiasse a
eleição de um governo civil liderado pela oposição. Não há dúvida, porém,
quanto aos efeitos conservadores da exclusão das massas da sucessão
presidencial: a oposição política, minoritária no Colégio Eleitoral, só teve
condições efetivas de vencer moderando suas ambições e efetuando um pacto
político com dissidentes do regime autoritário. Ademais, os programas dos
candidatos permaneceram dentro dos limites dados pelo próprio governo e por
empresários dissidentes. Tancredo Neves, candidato da Aliança Democrática,10
assimilou algumas das propostas desenvolvimentistas que contavam principalmente
com apoio no empresariado industrial. O candidato de direita, Paulo Maluf, fez
algo semelhante em relação ao projeto neoliberal, que tinha suporte de
associações comerciais e no setor agrícola de exportação. Mesmo com tais
limitações, as propostas anunciavam sua sintonia com as aspirações populares de
implantar a democracia política no país.
A esmagadora vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral mostrou bem quais
eram as aspirações políticas dominantes na elite política brasileira e,
implicitamente, qual o projeto político que prevaleceria no período
presidencial seguinte: construir uma Nova República, uma democracia plena, que
não impusesse restrições aos movimentos e às organizações populares, que
tivesse como orientação econômica um nacional-desenvolvimentismo renovado e que
combinasse crescimento econômico e redistribuição de renda.
A Nova República: democratização e desenvolvimentismo
Durante o governo Sarney11 o legado institucional autoritário ajustou-se ao
processo de democratização em curso, traduzindo as demandas de ampliação do
espaço da política e do universo de seus participantes reconhecidos em regime
político democrático. Isso implicou tanto o rompimento dos limites
institucionais impostos à participação e à organização política das classes
populares como a expansão dos direitos básicos do cidadão. Eliminou-se, assim,
na Nova República, um dos pilares centrais do Estado varguista em qualquer de
suas formas de organização política.
De fato, já no início do governo de José Sarney alterou-se um conjunto de leis
que bloqueavam a participação política popular. No primeiro semestre de 1985
foram instituídos: a) eleições diretas, em dois turnos, para a Presidência da
República; b) eleições diretas nas capitais dos estados, áreas de segurança e
principais estâncias hidro-minerais; c) representação política para o Distrito
Federal na Câmara dos Deputados e no Senado Federal; d) direito de voto aos
analfabetos; e) liberdade de organização partidária, mesmo para os comunistas;
e todo um conjunto de alterações menores que iam na mesma direção. Além disso,
a legislação sofreu algumas mudanças que provocaram um enorme impacto na
atividade política dos trabalhadores, aumentando muito seus direitos de
participação e liberando-os do controle governamental: a) foram readmitidos
líderes sindicais, antes demitidos por "mau comportamento"; b) foi cancelado o
controle do Ministério do Trabalho sobre as eleições sindicais; e c) foi
eliminada a proibição de associações inter-sindicais, o que legalizou as
atividades das centrais sindicais que, até então, eram apenas toleradas.
Essas e outras mudanças nas normas que regulavam a vida pública e também a
tolerância governamental, quando do desrespeito à lei nas manifestações
coletivas, permitem caracterizar a Nova República como um arranjo político no
qual vários segmentos sociais, inclusive as classes populares, puderam lutar
por seus interesses e idéias com grande liberdade de ação e organização.
Demonstra bem este ponto o crescimento extraordinário do número de greves e
dias parados durante o governo Sarney.12
O aumento da participação popular afetou a hierarquia entre os centros de poder
do Estado, a gestão governamental e a amplitude dos direitos de cidadania. De
fato, a crise de hegemonia enfraqueceu a hierarquia que caracterizava o regime
autoritário anterior. Na Nova República as pressões da base para o topo da
sociedade fortaleceram a autonomia dos centros de poder que antes costumavam
ser subalternos. Portanto, o Congresso Nacional, o Judiciário, os governos dos
estados e os partidos políticos ganharam mais latitude de ação em relação à
Presidência da República.
As mudanças nas instituições políticas e no âmbito de poder dos diversos atores
culminaram na Constituição de 1988, que ampliou o poder de ação do Legislativo,
do Judiciário e do Ministério Público nos processos de decisão governamentais.
Parte da base material para exercer o poder - impostos e autonomia
financeira - foi transferida da União para os estados e municípios, a ponto
de transformar os últimos em verdadeiras unidades federadas (não subordinados
aos estados). Em relação aos direitos de cidadania, a nova Constituição
estabeleceu uma regra política democrática e ampliou a proteção social para
todos, trabalhadores ou não. Definiu como dever do Estado garantir vários
direitos sociais - inclusive alguns direitos difusos, como os relacionados
à proteção do meio ambiente - e tornou possível que cidadãos e coletividade
exigissem o cumprimento dessas garantias pelo poder público. Além disso, os
constituintes ampliaram drasticamente o âmbito das atividades dos promotores
públicos fazendo do Ministério Público um ramo especial do Estado, independente
dos três poderes clássicos. Em sua nova forma, o Ministério Público recebeu a
missão de assegurar o cumprimento dos direitos da cidadania, garantidos em lei,
inclusive contra a ação ou a omissão do Estado.
Ao mesmo tempo, a mesma Constituição de 1988 emprestou uma moldura legal rígida
ao desenvolvimentismo democratizado: foram ampliadas as restrições ao capital
estrangeiro, as empresas estatais ganharam mais espaço para suas atividades, o
Estado obteve mais controle sobre o mercado e os servidores públicos e outros
trabalhadores viram aumentar sua estabilidade no emprego e vários benefícios,
inclusive os de aposentadoria. Portanto, a Constituição de 1988 assegurou a
permanência à velha articulação entre o Estado e o mercado no momento mesmo em
que o processo de transnacionalização e a ideologia liberal estavam para ganhar
uma dimensão mundial em função do colapso do socialismo de Estado.
Dessa forma, durante a presidência de José Sarney, a elite política brasileira
realizou completamente, do ponto de vista institucional, o projeto da Nova
República. Ainda assim, esta não se converteu em um sistema estável de poder. A
elite política dirigente fracassou em articular uma nova coalizão sociopolítica
que sustentasse o projeto desenvolvimentista democratizado para, por esta via,
superar a crise de Estado. A instabilidade econômica crescente no governo
Sarney sinalizava, de fato, a fragilidade política do Estado. No entanto, não
se tratava apenas de a elite política ter ou não ter as idéias certas ou de ela
fazer ou não as alianças apropriadas para estabilizar um novo sistema de poder.
Na verdade, as circunstâncias em que ela operava eram muito difíceis para que
pudesse ter sucesso.
Com efeito, a elite política tentou renovar a estratégia desenvolvimentista,
combinando distribuição e crescimento econômico, mas o fez em um contexto
externo muito adverso que, em vez de ser uma fonte de capitais (empréstimos
estrangeiros ou investimentos), os drenava continuamente do país (como
obrigações internacionais). Ademais, a elite dirigente enfrentou esse ambiente
inóspito em circunstâncias políticas muito desfavoráveis. Ela teve de lidar com
uma sociedade onde os movimentos sociais e as organizações coletivas floresciam
e demandavam enfaticamente a satisfação imediata de suas carências. Talvez se
possa dizer que, em uma sociedade tão esperançosa como era o Brasil da Nova
República, a escassez de recursos não dava muito espaço para negociações
políticas bem-sucedidas.
Ademais, a elite política tentou resolver os problemas surgidos com a crise do
Estado varguista como se o Estado não tivesse perdido muito de sua autoridade
política e de sua força material. Em função dessas perdas, as tentativas
ortodoxas ou heterodoxas13 de enfrentar a instabilidade econômica depararam-se
seja com ameaças coações externas decorrentes da ameaça ou da falta de
pagamento de débitos, seja com o veto e/ou a adesão reticente de membros da
velha aliança desenvolvimentista que sustentava o Estado, embora já sem
articulação e objetivos definidos. Com efeito, além dos credores privados
externos, governos estrangeiros e organizações multilaterais, as atividades das
coletividades novas ou renovadas, inspiradas em ideário ora conservador ora
reformista e constituídas a partir de distintas bases socioeconômicas, ajudaram
a moldar as políticas estatais, algumas vezes estimulando e outras colocando
alguns limites à ação do Estado. Organizações de empresários agrícolas e de
proprietários de terra, por exemplo, restringiram o programa de reforma agrária
a um mínimo e, por sua atuação junto ao Congresso Constituinte, conseguiram
assegurar amplamente os direitos de posse da terra. Em sentido oposto, em 1989,
ano da sucessão presidencial, fortes manifestações organizadas pela Central
Única de Trabalhadores(CUT) e por sindicatos levaram o Congresso Nacional a não
aprovar na íntegra o chamado Plano Verão visto que ele tentava estabilizar a
moeda reduzindo os salários reais dos trabalhadores. Seguramente, a eficácia da
atuação dos movimentos e das organizações populares e das camadas médias na
Nova República podem ser explicadas, em boa parte, pela fragilidade material do
Estado e pela articulação frouxa de sua base de sustentação social.
Em síntese, a Nova República tornou-se um sistema instável de dominação
política, em que não se articulavam bem a dimensão institucional, a esfera
sociopolítica e as condições econômicas.
Essa instabilidade resultou, de um ponto de vista material, numa trajetória
decadente de desenvolvimento. O Estado continuou a proteger o mercado interno,
mas o dinamismo econômico anterior, que tinha permitido ao Brasil ter uma das
maiores taxas de crescimento econômico do mundo, se esvaiu. As taxas de
investimento caíram drasticamente: estancou a entrada de capital estrangeiro e
o Estado perdeu sua capacidade de investir. O sistema de empresas estatais, que
tinham sido a vanguarda do modelo desenvolvimentista anterior, perdeu seu
dinamismo próprio passando a se subordinar aos objetivos governamentais do
"ajustamento", que visava a produzir insumos de preços baixos para combater a
inflação e/ou ajudar o setor privado a produzir saldos crescentes no comércio
exterior. A desorganização tanto da economia como das finanças públicas geraram
flutuações súbitas no crescimento do PIB, uma redução do crescimento econômico
médio além de intensas pressões inflacionárias. A inflação substituiu o
desenvolvimento como questão política básica daquele período. Tudo isso
constituiu um poderoso obstáculo para que na Nova República o processo de
democratização política produzisse o seu equivalente material. Assim, embora
tenha havido expansão dos serviços públicos de bem-estar, na década de 1980 os
brasileiros mais pobres não aumentaram sua participação na renda nacional.
Ademais, as dificuldades de estabilizar uma nova forma de Estado estimularam o
crescimento no interior da elite brasileira de um novo projeto político para o
país. Com efeito, na medida em que a elite econômica se tornava insegura e
assustada com as iniciativas reformistas do governo da Nova República,
sobretudo com as políticas heterodoxas de estabilização monetária, as idéias
econômicas liberais passaram a se tornar relevantes para ela. Além de se
mostrarem ineficientes para restringir a inflação e retomar o crescimento
econômico de forma sustentada, as políticas heterodoxas foram interpretadas
como ameaças à propriedade privada, pois restringiam a liberdade de mercado e
ameaçavam os contratos. Daí em diante, a elite empresarial mobilizou-se para
moldar as estruturas e controlar as ações do Estado orientando-se, pelo menos
parcialmente, pelas concepções neoliberais que vinham sendo difundidas, desde
os anos de 1970, pelas instituições econômicas multilaterais, por think tanks e
governos dos países centrais.14 Dessa maneira, sobretudo de 1987 1988 em
diante, a elite econômica passou a confrontar o intervencionismo do Estado,
exigindo desregulamentação, melhor acolhida para o capital estrangeiro,
privatização das empresas estatais etc. Assim, embora o liberalismo econômico
no Brasil só tenha se tornado politicamente hegemônico nos anos de 1990, essa
hegemonia começou a ser socialmente construída ainda na segunda metade da
década de 1980.
Entretanto, mesmo que a retórica liberal tenha sido absorvida pelos meios de
comunicação e tenha se difundido entre as camadas médias da população, isso
ocorreu em menor proporção na elite política, entre os trabalhadores
organizados e servidores públicos, que continuaram a defender os ideais de "
propriedade nacional" e "regulação estatal".
Eis porque a Constituição de 1988, que materializou o projeto político da Nova
República - democratização política e desenvolvimentismo democratizado
- tornou-se um alvo para os ataques da elite empresarial e de seus líderes
políticos e intelectuais e, inversamente, converteu-se em trincheira para as
organizações de trabalhadores, servidores, funcionários das companhias estatais
e da classe média assalariada ligada ao serviço público.
A eleição direta para presidente da República em 1989 sumariou os resultados
políticos do período anterior. Depois de quase trinta anos de interrupção de
disputas diretas para a Presidência, a eleição foi realizada com total
liberdade de expressão e reunião, constituindo um dos pontos mais altos de
participação das classes populares e das camadas médias na política brasileira.
Certamente, foi a crescente presença das classes populares e média na esfera
pública que abriu caminho para o desempenho eleitoral dos candidatos da
esquerda no primeiro turno da eleição presidencial e, especialmente, para o ex-
operário metalúrgico e líder sindical Luiz Inácio da Silva (Lula) no segundo
turno. Mesmo sendo candidato de um partido tão pequeno como o Partido dos
Trabalhadores (PT), Lula foi derrotado apenas por uma pequena margem de
votos.15 Sublinhe-se, ainda, que este ótimo resultado foi obtido sem mascarar
as intenções reformistas do PT. Lula prometeu durante sua campanha uma ruptura
efetiva do padrão autocrático de dominação social: as classes populares seriam
conduzidas ao poder, o governo faria uma redistribuição de renda deslocando
recursos do topo para a base da sociedade, realizaria uma "verdadeira" reforma
agrária e as empresas estatais seriam preservadas, embora sua administração
devesse ser democratizada. Em suma, o reformismo de esquerda visava a eliminar,
pelo menos em parte, a "exclusão social", radicalizando o processo de
democratização ao lhe dar bases materiais adequadas. No pólo oposto, dando
menos de 5% dos votos aos candidatos do PMDB e do PFL o eleitorado ratificou o
fracasso da elite política em converter a Nova República numa forma estável de
domínio político.
O processo eleitoral foi um momento de inflexão nas referências ideológicas que
polarizavam o sistema partidário. A partir da campanha de 1989, o confronto
entre democracia e autoritarismo, que caracterizava o sistema partidário desde
a liberalização política do regime militar, tornou-se menos relevante. As
forças partidárias reorganizaram-se de acordo com novas polarizações, e, nesse
processo, sobretudo as relações Estado/mercado ganharam espaço. Os partidos
foram magnetizados pelas idéias econômicas liberais, de um lado, e pelo
desenvolvimentismo democratizado, de outro. O Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB), dissidência do PMDB organizada como partido em 1988,
inclinou-se decisivamente para o liberalismo, como enfatizou seu candidato
Mário Covas ao exigir para o país um "choque de capitalismo". O Partido
Democrata Cristão (PDC) e o Partido Liberal (PL) também adotaram um programa
liberal. O PDS, partido do extinto regime militar, já havia se adaptado às
idéias do livre mercado desde a crise de 1983/ 84, embora elas tenham sido
sufocadas na disputa eleitoral, tal como na sucessão presidencial anterior,
pelo populismo conservador de seu candidato Paulo Maluf. E, apesar da retórica
nacional-desenvolvimentista do candidato do PFL, Aureliano Chaves, o partido
vinha apresentando, desde a Constituinte, uma crescente inflexão liberal e não
lhe deu apoio significativo. Na direção contrária, o PMDB, o PDT e o PT
radicalizaram o desenvolvimentismo em sua versão nacionalista e
distributivista.
A campanha eleitoral de 1989 mostrou também outra polarização ideológica: a
oposição entre dois tipos diferentes de ideais democráticos. Embora todos os
partidos fossem favoráveis à democracia, aqueles que tinham a liberalização
econômica no centro de sua agenda sinalizavam a aceitação da democracia
representativa, mesmo quando questionavam a forma presidencialista de governo.
No outro pólo, o da esquerda, enfatizava-se o caráter limitado da democracia
representativa (o de só dar espaço para atuação popular nos períodos
eleitorais) e predominava a idéia de avançar em direção a formas mais
participativas de democracia.
Em suma, com a vitória de Fernando Collor de Mello - político identificado
com o neoliberalismo e pouco simpático aos experimentos participativos da
democracia -, as eleições presidenciais de 1989 tornaram-se o marco
divisório entre dois momentos da transição política brasileira, quais sejam, o
período em que predominou a democratização política e o que teve como seu
impulso básico a liberalização econômica.
A nova hegemonia liberal e suas conseqüências16
O governo Collor confirmou, em parte, a inflexão liberal manifestada no embate
eleitoral de 1989. Contribuiu para danificar o quadro institucional nacional-
desenvolvimentista e redirecionar a sociedade brasileira em um sentido anti-
estatal e internacionalizante.
Ainda assim, embora dando ao Estado o impulso inicial para conformar uma nova
estratégia de desenvolvimento, o governo Collor não conseguiu vencer a crise de
Estado experimentada pela sociedade brasileira desde o início da década de
1980.
Durante o período Collor, as licenças e as barreiras não tarifárias à
importação foram suspensas e as tarifárias alfandegárias foram redefinidas,
criando-se um programa para sua redução progressiva ao longo de quatro anos.17
Ao mesmo tempo, programou-se a desregulamentação das atividades econômicas e a
privatização das companhias estatais que não estivessem protegidas pela
Constituição, afim de recuperar as finanças públicas e reduzir aos poucos o
papel do Estado no incentivo à indústria doméstica. Finalmente, deu-se
seqüência à política de integração regional com os países da fronteira sul,
instituindo-se o Mercosul (1991), com vistas a ampliar o mercado para os
produtos domésticos de seus participantes.
Essas medidas significavam o descarte da estratégia anterior de
desenvolvimento, vigente plenamente até o início dos anos de 1980, cuja
pretensão era construir uma estrutura industrial completa e integrada, usando o
Estado como escudo protetor ante a competição externa e como alavanca do
desenvolvimento industrial e da empresa privada nacional.
Essa reorientação estratégica, embora sintonizada com as novas inclinações
liberais dos empresariado local e com as tendências ideológicas dominantes no
plano internacional, foi insuficiente para soldar um novo pacto político que
superasse a crise de hegemonia iniciada em 1983. Não obstante Collor parecesse
ser um César auspicioso surgido das fissuras da ordem política em crise com a
promessa de superá-la, seu governo, em vez disso, contribuiu para aprofundá-las
drasticamente, frustrando as expectativas das forças políticas em cena. Para
estabilizar a moeda o Plano Collor congelou preços, confiscou provisoriamente e
reduziu parte da riqueza financeira das classes médias e empresariais. Assim,
além de atingir a riqueza material, ameaçou a segurança jurídica da propriedade
privada. Ademais, o governo submeteu as organizações tradicionais dos
empresários a ataques verbais sistemáticos organizando, ao mesmo tempo, grupos
de empresários para apoiá-lo na implementação de suas políticas. Também
procurou exercer o poder dissociado da classe política e de seus mecanismos
tradicionais de sobrevivência; reduziu as despesas do Estado de forma
arbitrária por meio da demissão em massa de servidores, desorganizando a
administração pública; e tentou enfraquecer as organizações oposicionistas de
trabalhadores estimulando organizações alternativas ligadas ao governo. No
campo internacional, Collor também teve dificuldades. Apesar de sua orientação
liberal e internacionalizante, a primeira equipe econômica do governo tentou
postergar o fim da moratória herdada do período Sarney e enfraquecer a posição
dos bancos estrangeiros privados na negociação da dívida externa. Essa
estratégia contribuiu para enfraquecer ainda mais o suporte da elite econômica
brasileira e estimulou o governo dos Estados Unidos a opor-se a ele e a
proteger o sistema bancário norte-americano. As dificuldades externas só
diminuíram quando uma equipe econômica muito mais liberal tomou posse, em
1991.18
Nesse contexto político tão perturbado é que Fernando Collor foi acusado de ser
o chefe oculto de um esquema governamental de corrupção. Depois de ser
investigado e processado pelo Congresso, renunciou à Presidência da República
para evitar o impeachment.19 Em suma, Collor fracassou como César.20 Suas ações
acirraram a crise política. Em vez de dar às forças políticas em disputa os
meios para resolver de forma negociada seus próprios impasses, ele tentou
impor-lhes uma solução alternativa "de cima para baixo". Tentou restaurar de
forma autocrática a estabilidade da moeda - base das relações de troca e da
autoridade do Estado sobre o mercado - em uma sociedade que, embora mal
alinhavada politicamente, já havia avançado muito no caminho da democratização.
Com efeito, o impeachment do presidente Collor de Mello dificilmente teria
ocorrido se não houvesse avançado tanto na sociedade o sentimento/concepção de
que o governo e o Estado deviam obedecer a limites políticos e morais muito
mais estreitos do que anteriormente. Ele também não teria ocorrido se a
capacidade de ação autônoma dos vários agrupamentos sociais e dos vários
centros de poder do Estado não tivesse crescido tanto. As manifestações de
dezenas de milhares de jovens "caras pintadas" que exigiram nas ruas o
impeachment, os testemunhos corajosos de trabalhadores subalternos contra o
chefe de Estado, a conduta autônoma da imprensa, do rádio e da televisão, assim
como do Congresso e do Judiciário são expressões - cada uma a seu modo
- do processo de democratização política do país.
Embora este governo tenha fracassado na tentativa de superar a crise
brasileira, desde o final dos anos de 1980 as condições econômicas
internacionais vinham se tornando mais positivas para os países da periferia.
Alguns fatores e decisões políticas possibilitaram essa reversão, como o grande
aumento no volume das aplicações financeiras nos países centrais e em direção
aos mercados "emergentes", o "alívio" produzido nas carteiras dos credores em
função do Plano Brady de renegociação da dívida externa e o aperfeiçoamento das
políticas de liberalização econômica nos países periféricos.21 De qualquer
forma, "depois de quase dez anos de transferências de recursos líquidos
negativos, a América Latina recebeu transferências positivas do resto do mundo.
A magnitude dos fluxos de capital líquido para a nação cresceu drasticamente em
1992 e 1993, ultrapassando 20 bilhões de dólares" (Edwards, 1995, p. 82).
O grande afluxo de capital para o Brasil,22 os legados do período Collor
(avanço do liberalismo econômico, no plano ideológico e institucional, e
rejeição a soluções autocráticas para a crise), a exacerbação da instabilidade
político-econômica durante o período Itamar Franco e o avassalador crescimento
do prestígio popular de Luiz Inácio da Silva, candidato de esquerda à
Presidência de República, foram algumas das condições e, ao mesmo tempo,
alavancas poderosas para a nova tentativa, realizada em 1994, de superar a
crise de hegemonia que minava a sociedade brasileira desde o início da década
de 1980.23
As condições e as características do sistema institucional brasileiro
especificam a fortuna com que se defrontaram algumas lideranças políticas que,
bem situadas no seio do Estado e temerosas de perder o seu controle, tiveram
virtú suficiente para aproveitar a ocasião e negociar a associação entre
partidos de centro e de direita em torno da continuidade das reformas liberais,
da estabilização da economia e da tomada do poder político central. Tudo isso
foi materializado nos lançamentos bem-sucedidos do Plano Real e da candidatura
à Presidência da República de seu articulador, o então Ministro da Fazenda,
Fernando Henrique Cardoso.
A referência à fortuna e à virtú permite retomar cum grano salis a idéia de
"momento maquiaveliano", de John Poccok, que enfatiza o papel da liderança na
manipulação criativa das oportunidades legadas pela fortuna para fazer
prevalecer os interesses gerais da comunidade política ameaçada pela
confrontação entre interesses particularistas, reconstruindo com isso o
Estado.24
Segundo Sola e Kugelmas (1996), o próprio Plano Real teria sido a construção
desse "princípio de universalidade [...] capaz de assegurar a superação da
particularidade e da contingência inerentes ao comportamento descontrolado das
forças em conflito", para retomar os termos segundo os quais Malloy e Connaghan
(1996) definem o momento maquiaveliano. Seguindo esse raciocínio, a utilização
criativa da Revisão Constitucional25 em curso no sentido de gerar condições
fiscais mínimas para a estabilização (Fundo Social de Emergência, votado em
fevereiro de 1994); a instituição de uma moeda paralela, a URV (Unidade de
Referência Variável), unidade de conta que generalizou a indexação e
sincronizou preços e salários, criando uma espécie de "hiperinflação de
laboratório"; e a substituição, no dia 1º de julho de 1994, da URV pelo real,
nova moeda ancorada, mas não igual, ao dólar; tudo isso, além de dezenas de
regulamentações específicas, teria produzido a estabilidade.
Contudo, o Plano Real não foi senão um passo, certamente essencial, na
construção do "princípio de universalidade" que permitiu superar a conjuntura
crítica anterior. Embora tenha sido uma fórmula técnica brilhante para
estabilizar a moeda, cujo sucesso foi essencial também do ponto de vista
eleitoral, o Plano foi apenas uma peça subordinada do "momento maquiaveliano",
cujo elo principal foi a aliança política entre partidos de centro e direita em
torno de um projeto de tomada de poder e de reconstrução do Estado em uma
perspectiva liberal. O próprio papel da liderança, sua virtú, embora crucial
foi limitado, na medida em que deu o acabamento final a um processo de
construção da hegemonia liberal cujos alicerces tinham sido erguidos, no plano
societário, durante a segunda metade da década de 1980.
O extraordinário sucesso do Plano Real, a eleição de Fernando Henrique Cardoso
para a Presidência da República já no primeiro turno, a escolha de um Congresso
Nacional onde o chefe de Estado pode construir uma aliança partidária
amplamente majoritária, a vitória de políticos aliados do presidente em quase
todos os estados - tudo isso já permitia antever que no dia 1º de janeiro
de 1995 os representantes de um novo sistema hegemônico de poder assumiriam o
comando de um Estado ancorado numa moeda provavelmente estável. Nada parecia
faltar para que eles pudessem completar bem a tarefa de moldar a sociedade ao
ideário econômico liberal.
A partir de 1995, os novos governantes trataram de eliminar os resíduos do
Estado varguista e de construir novas formas de regulamentar o mercado,
seguindo um sistema multifacetado de idéias, cujo denominador comum era um
liberalismo econômico moderado. As características centrais desse ideário podem
ser assim resumidas: o Estado deveria transferir quase todas as suas funções
empresariais para a iniciativa privada; teria que expandir suas funções
reguladoras e suas políticas sociais; as finanças públicas deveriam ser
equilibradas e os incentivos diretos às companhias privadas seriam modestos;
haveria também restrição aos privilégios existentes entre os servidores
públicos; e o país deveria intensificar sua articulação com a economia mundial,
embora dando prioridade ao Mercosul e às relações com os demais países sul-
americanos.
Esse conjunto básico de idéias liberais materializou-se em iniciativas que
mudaram drasticamente as relações anteriores entre mercado/Estado e a ordem de
prioridades do Estado em relação aos segmentos socioeconômicos, tanto em termos
patrimoniais como institucionais. O alvo central dessas políticas era solapar
alguns dos fundamentos legais do Estado nacional-desenvolvimentista, em parte
assegurados pela Constituição de 1988, e diminuir a participação do Estado nas
atividades econômicas. Neste ponto, o governo de Cardoso foi bem-sucedido, já
que os projetos de reforma constitucional e infra-constitucional submetidos ao
Congresso foram quase todos aprovados, entre os quais se destacaram a) o fim da
discriminação constitucional ao capital estrangeiro; b) a exploração, o refino
e o transporte de petróleo e gás, monopolizados pela companhia estatal de
petróleo (Petrobrás), foram transferidos para a União e convertidos em
concessão do Estado às empresas, principalmente a estatal, que manteve grandes
vantagens em relação a outras concessionárias privadas; e c) o Estado foi
autorizado a conceder os direitos de exploração dos serviços de telecomunicação
(telefonia fixa e celular, exploração de satélites etc.) a companhias privadas
(anteriormente as empresas públicas tinham o monopólio dos serviços).
Além de promover esse conjunto de reformas constitucionais, o governo Fernando
Henrique Cardoso não só estimulou o Congresso a aprovar a lei complementar que
regulava as concessões de serviços públicos à iniciativa privada, autorizada
pela Constituição (eletricidade, estradas, ferrovias etc.), mas também
conseguiu a aprovação de uma lei de proteção aos direitos de propriedade
industrial e intelectual, tal como recomendado pela OMC e, ainda, efetuou um
enorme programa de privatizações e venda de concessões, preservando o programa
de abertura comercial já implementado. De forma similar, os governos dos
estados realizaram programas de privatização e concessões, mas em menor escala.
Outra área importante atingida por medidas disciplinares foram as finanças
públicas. Fixaram-se limites máximos para todos os pagamentos de pessoal, as
dívidas dos estados e municípios foram renegociadas e foram proibidos, por
muito tempo, novos empréstimos e renegociações junto ao governo Federal.26
Esse conjunto de iniciativas parecia ter materializado o código comum de um
novo bloco hegemônico de dominação, adotado por políticos e burocratas com
comando sobre o poder Executivo, pela grande maioria de parlamentares, por
empresários dos mais variados setores, pela mídia etc. e, gradualmente, dominou
a classe média e parte do sindicalismo urbano e das massas populares. Com
efeito, as medidas legislativas foram facilmente aprovadas pelo Congresso
Nacional, apesar da oposição de uma minoria da esquerda portadora das bandeiras
da "defesa do patrimônio público" e da "economia nacional". As privatizações e
as vendas de concessões também foram bem-sucedidas e tiveram apoio popular,
apesar das disputas forenses e das manifestações de rua promovidas por
organizações de esquerda.
Contudo, nesse novo bloco político hegemônico, vinculado pelo já mencionado
liberalismo econômico moderado, fortes divisões internas geraram conflitos
reiterados sobre a política econômica e acabaram dando um caráter híbrido às
ações do Estado. No se interior havia, de um lado, uma corrente liberal
fundamentalista orientada basicamente para a estabilização monetária e
comprometida com a promoção de uma economia de livre mercado e, de outro, uma
tendência liberal-desenvolvimentista, mais inclinada a equilibrar estabilização
monetária com um crescimento competitivo da economia local mediante a
intervenção moderada do Estado.
Ao longo do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, a primeira versão de
liberalismo predominou, servindo de orientação e dando consistência à ação dos
que dirigiram a política econômica governamental.27 Os fundamentalistas
tentaram obter a estabilização monetária com políticas de câmbio
sobrevalorizado,28 juros altos e ajuste fiscal brando. A segunda corrente
liberal, a desenvolvimentista, não tinha a consistência da primeira, pois não
possuía um texto programático nem orientava sistematicamente a ação
governamental.29 Entretanto, o liberal-desenvolvimentismo inspirou algumas
políticas destinadas a contrabalançar as conseqüências negativas da ortodoxia
liberal para setores específicos da economia ou mesmo promover o crescimento de
algumas atividades produtivas no país. Deve-se salientar que esse tipo de
desenvolvimentismo liberal, em lugar de visar à construção de um sistema
industrial nacionalmente integrado, reivindica que a produção doméstica tenha
uma participação significativa no sistema econômico mundial. Ele só aceita
formas bem definidas de intervenção estatal no sistema produtivo, como
políticas industriais setoriais, desde que limitadas no tempo e no montante de
subsídios. Não deseja substituir importações a qualquer custo, mas aumentar a
competitividade de alguns setores econômicos e, no máximo, reduzir a
dependência externa pelo "adensamento das cadeias produtivas", introduzindo
novos elos no tecido industrial, sem perder de vista, porém, a necessidade de
equiparar sua competitividade aos padrões internacionais.30
Embora durante o primeiro governo Cardoso a sobrevalorização do câmbio e as
altas taxas de juros tenham produzido estabilidade monetária, também conduziram
a economia brasileira a um desequilíbrio externo bastante sério. Para reduzi-lo
o governo limitou um pouco a apreciação cambial e acentuou a elevação dos juros
com dois objetivos complementares: refrear a atividade econômica doméstica e as
importações, diminuindo em conseqüência o déficit comercial, e atrair capitais
do Exterior para financiar o desequilíbrio externo do país, mantendo assim um
nível de reservas alto o bastante para ancorar a nova moeda nacional. Esse
programa de estabilização sustentava-se numa percepção otimista do mercado
financeiro global, que via sua liquidez como permanente e capaz de equilibrar
com empréstimos e investimentos desequilíbrios ocasionais no balanço de
transações correntes do Brasil com o Exterior, caso o desempenho econômico do
país fosse adequado.
A crise financeira do México, em dezembro de 1994, mostrou pela primeira vez os
riscos de adequar a política macroeconômica à orientação liberal
fundamentalista. De fato, tal crise deixou claro que, dependendo das
circunstâncias internacionais, poderia ser difícil obter capital no Exterior
para financiar um desequilíbrio acentuado nos balanços comerciais e de
serviços. Apesar dessa advertência e embora o governo tenha adotado algumas
políticas compensatórias para proteger a economia doméstica, sua orientação
macroeconômica básica foi mantida até a crise cambial de janeiro de 1999.
Essa obstinação contribuiu para aumentar muito a fragilidade financeira externa
da economia brasileira e a debilidade do Estado ante os credores privados, pois
levou ao endividamento crescente para cobrir os desequilíbrios gerados pela
política macroeconômica. Como resultado da dependência financeira, as mudanças
nas condições do mercado internacional afetaram cada vez mais, pela variação do
fluxo de capitais, o equilíbrio das contas externas do país e expuseram a moeda
nacional a ataques especulativos tendentes a desvalorizá-la. Assim, depois da
crise mexicana, a crise financeira asiática de 1997 e a moratória russa de
agosto de 1998 abriram caminho a tais ataques especulativos.
Em todas essas situações críticas o país perdeu uma grande quantidade de
reservas internacionais e o governo agiu de forma semelhante, ou seja, manteve
a estabilidade da moeda elevando drasticamente os juros para preservar as
reservas e refrear tanto a atividade econômica interna como o desequilíbrio
externo. Essas medidas conseguiram preservar o valor da moeda em relação ao
dólar e manter a inflação em nível muito baixo, embora não reduzissem a
fragilidade financeira externa do país, pois aumentavam a dívida pública e não
reduziam o déficit de transações correntes com o Exterior. Além disso, elas
restringiram muito o crescimento do produto nacional bruto e elevaram bastante
as taxas de desemprego.31
A fragilidade financeira do país em relação ao Exterior acabou cobrando um
preço alto demais. A política cambial brasileira teve de ser alterada no início
do segundo mandato de FHC para evitar o esgotamento das reservas em moeda
estrangeira que ancoravam o real. Sublinhe-se ainda que a mudança ocorreu
apesar de o governo ter assinado acordo com o FMI em novembro de 1998 e ter
obtido grande empréstimo dos Estados Unidos para se defender com mais segurança
da fuga de capitais externos.
A substituição do antigo nacional-desenvolvimentismo por uma estratégia liberal
de desenvolvimento redirecionou o Estado em relação a vários setores
socioeconômicos. Ressalte-se a propósito que, desde o lançamento do Plano Real
até janeiro de 1999, a estratégia liberalizante privilegiou nitidamente a
esfera financeira ante as atividades produtivas e comerciais por meio das
políticas de juros altos e câmbio sobrevalorizado. Estas duas políticas
funcionaram o tempo todo como bombas de sucção dos recursos do Estado e das
atividades produtivas e comerciais para os detentores, locais ou estrangeiros,
de capital financeiro. Isso mostra haver nítida afinidade entre o predomínio do
fundamentalismo liberal no bloco político hegemônico e a fase da
"financeirização da riqueza" que caracteriza o capitalismo mundial
contemporâneo.32
Entretanto, a transformação mais distintiva ocorrida na relação Estado/economia
foi terem as empresas estatais deixado de ser os suportes da gestão econômica
governamental. Além de a maioria das estatais ter sido privatizada, algumas
áreas antes atendidas pela administração direta do Estado passaram aos cuidados
de empresas privadas (manutenção de estradas de rodagem, por exemplo). A
diminuição drástica das funções empresariais do Estado não eliminou o
intervencionismo estatal, mas o modificou profundamente. O Estado expandiu suas
funções normativas e de controle por meio de agências reguladoras setoriais
(telecomunicações, eletricidade, petróleo e gás, por exemplo) e manteve grande
parte de sua capacidade de moldar a atividade econômica pelo financiamento de
longo prazo às empresas privadas e pela compra de bens e serviços.
Também as companhias privadas nacionais deixaram de ser o foco privilegiado das
políticas estatais. Não só as companhias estrangeiras foram constitucionalmente
equiparadas às nacionais, mas também a orientação estatal básica foi a de
atrair ao máximo os investimentos externos e a de promover sua associação com
as empresas locais.33 Além dessa orientação geral (tanto da União quanto dos
estados), o governo federal tentou atrair, sistematicamente, as companhias
multinacionais para ramos da indústria como o automotivo, o de telecomunicações
etc., modulando as leis tributárias e o sistema de financiamento e tomando
iniciativas para "vender" a imagem do Brasil como um excelente destino para o
capital estrangeiro. É possível que isso tenha ajudado o Brasil a se tornar um
dos maiores destinos do investimento estrangeiro direto no mundo, embora sempre
ultrapassado, entre os países "emergentes", pela China.34
Outra mudança importante introduzida na relação Estado/economia é que, desde
1995, tendeu a desaparecer a prioridade política antes concedida ao
desenvolvimento das manufaturas industriais. No âmbito de BNDES, principal
agente financeiro da industrialização brasileira, foi notável a diversificação
das atividades econômicas atendidas. Além de manufaturas, foram financiadas
empresas comerciais, agrícolas etc. A agricultura empresarial, sobretudo, foi
diretamente beneficiada pelo governo federal e teve seus interesses de expansão
convertidos em demanda prioritária da política externa brasileira. Desde 1996
- quando ganharam impulso as discussões em torno da assinatura de acordos
de livre-comércio com os Estados Unidos e a União Européia - os assuntos
agrícolas e a luta contra as políticas protecionistas dos países centrais
tornaram-se um ponto central da diplomacia brasileira.
As mudanças na orientação do Estado foram tão profundas que romperam um dos
parâmetros básicos da velha aliança nacional-desenvolvimentista: a propriedade
agrária deixou de ser intocável. A própria estabilização monetária reduziu os
preços da propriedade territorial, antes muito usada como reserva de valor.
Além disso, não só por iniciativa do próprio governo, mas também por pressão
social do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), da Confederação Nacional
dos Trabalhadores Agrícolas (Contag) e da Igreja Católica, durante os dois
mandatos de Cardoso desenvolveu-se um grande programa de reforma agrária. Este
incluiu desapropriações de propriedades improdutivas e o assentamento de
centenas de milhares de famílias de trabalhadores agrícolas sem terra, assim
como um conjunto de reformas institucionais e medidas específicas que elevaram
a taxação sobre terras improdutivas e aumentaram o controle do poder público
sobre a propriedade fundiária, inclusive pela retomada da posse sobre imensas
áreas ilegalmente apropriadas por grileiros.
Liberalismo, desenvolvimentismo e democracia
Embora a reeleição de Fernando Henrique Cardoso em 1998 e a manutenção quase
total de seu suporte político (no Congresso e entre os governadores) tenham
confirmado a aquiescência da maioria em relação ao programa liberal, o governo
perdeu sua força política anterior, pois deixou de ter controle sobre sua
política econômica (foi levado a desvalorizar da moeda em janeiro de 1999 mesmo
depois de recorrer ao apoio do FMI e do governo norte-americano) e foi
constrangido por enormes dificuldades econômicas.
É verdade que o governo teve sucesso na substituição do regime de câmbio semi-
fixo e sobrevalorizado pelo câmbio flutuante e no manejo da política monetária.
A estabilidade da moeda foi mantida e, depois da estagnação de 1999, houve um
crescimento de 4% do PIB em 2000. Entretanto, o apoio do FMI foi dado e
renovado em troca do compromisso de o governo fazer um severo ajuste fiscal,
objetivando produzir um grande superávit anual nas contas públicas (sem
considerar os juros devidos), um superávit grande o bastante para permitir
reduzir a proporção da dívida pública em relação ao PIB.35 Além disso, a
estagnação internacional de 2001 e 2002, a crise da Argentina e o risco
político associado à eleição presidencial de 2002 produziram constrangimentos
adicionais às políticas governamentais. Houve, de fato, uma importante redução
dos fluxos de investimentos externos diretos (IDE) para o Brasil e dificuldades
para rolar as dívidas externa e interna.36
Assim, uma vez mais, revelaram-se a dependência externa e a fragilidade
econômica do Brasil, apesar da nova política de câmbio flutuante. Esta não pode
proteger plenamente a economia da conjuntura internacional negativa e das
incertezas políticas em função das enormes dívidas externa e interna produzidas
pela política de estabilização do primeiro governo Cardoso e do crônico déficit
brasileiro nas suas transações correntes com o exterior. As contramedidas do
Banco Central - aprofundar o ajuste fiscal, aumentar as taxas de juros e
assinar novos acordos com o FMI -, embora protegessem a solvência
financeira do Brasil, reduziram o crescimento do PIB em 2001 e 2002 a menos de
2% anuais.37
A nova gestão macroeconômica surgida a partir da crise cambial de janeiro de
1999 implicou algumas mudanças nas relações Estado/setores econômicos. As
atividades não financeiras tenderam a ganhar mais relevância e o governo
estimulou de diferentes maneiras os segmentos econômicos que podiam ajudar a
produzir superávit no comércio exterior. Durante do segundo governo Cardoso até
foi dada atenção e alguma ajuda às companhias que tinham certa probabilidade de
competir internacionalmente como multinacionais.
Essas mudanças podem ser vistas como sinais de transformação política dentro do
bloco hegemônico. Este se inclinou de forma irregular e hesitante em direção a
seu pólo liberal-desenvolvimentista. Com efeito, desde o começo de 2000 o
Ministério do Desenvolvimento, o da Ciência e Tecnologia, a Secretaria do
Planejamento e até a Presidência da República manifestaram sinais desse tipo de
transformação, mais acentuada ainda com a aproximação das eleições de 2002.
Mesmo assim, os portadores do fundamentalismo liberal mantiveram o controle
sobre as principais alavancas do poder - o Ministério da Fazenda e o Banco
Central - e por meio delas preservaram a prioridade para a estabilização,
embora tenham adotado a política fiscal, em lugar da política cambial, como
instrumento central para conservá-la. Em suma, o bloco hegemônico manteve suas
divisões internas, embora atenuadas, e seus conflitos internos foram deslocados
da questão cambial para assuntos fiscais. Como conseqüência, as decisões
governamentais tenderam a ser lentas e não sistemáticas.
As dificuldades econômicas e políticas mencionadas contribuíram também para
enfraquecer a coalizão política que governava o Estado durante o segundo
governo Cardoso. No seu primeiro mandato, o presidente FHC tinha um alto
prestígio popular, originado principalmente da súbita estabilização monetária,
o que reforçou os poderes presidenciais usuais e o ajudou muito a lidar com a
ampla coalizão de partidos governistas para executar o programa reformista
liberal. Além disso, a estabilidade monetária conseguida pelo Plano Real e a
política de contenção econômica que predominou no primeiro governo de Fernando
Henrique Cardoso restringiu a ação dos movimentos e das organizações das massas
populares. A hegemonia liberal também dificultou a mobilização dos sindicatos
que se mantiveram ideologicamente vinculados a idéias estatistas ou social-
democratas. Ademais, a propagação do apoio popular ao governo facilitou a
adoção de um estilo tecnocrático de exercer o poder e reforçou as dificuldades
de participação política popular fora dos períodos eleitorais. É notável que,
apesar dessas dificuldades, tenha aumentado muito a mobilização dos
trabalhadores agrícolas em favor da reforma agrária, forçando o governo a
desenvolver o amplo programa de reforma agrária antes mencionado.
No segundo governo Cardoso, entretanto, o presidente perdeu muito prestígio,
principalmente porque o governo não manteve as promessas, desvalorizando a
moeda em janeiro de 1999 e desencadeando a desconfiança na sua capacidade de
manter a estabilidade monetária. A crise cambial afastou, ao mesmo tempo, a
possibilidade de o governo realizar em tempo as promessas de retomada do
crescimento econômico. A inflação alta não voltou e as atividades econômicas
começaram a crescer, pouco mais de um ano depois, mas, mesmo assim, o
presidente não recuperou o prestígio político e a liderança que tinha no seu
primeiro mandato. Dessa forma, a coalizão política governamental tornou-se
menos disciplinada e o governo perdeu muito de sua capacidade para aprovar leis
no Congresso e para definir políticas específicas, dando margem ao
fortalecimento dos partidos de oposição. Em contrapartida, tais partidos
passaram por grande metamorfose ao longo dos anos, tornando-se cada vez mais
permeáveis às idéias liberais. A mudança foi até o ponto de a camada dirigente
do principal partido oposicionista, o Partido dos Trabalhadores, não
ultrapassar os limites do que temos denominado liberal-desenvolvimentismo.
A luta eleitoral pela Presidência da República, em 2002, exprimiu muito bem as
mudanças ocorridas no bloco hegemônico, a debilidade da coalizão política
governante e a mudança ideológica dos principais partidos de oposição. Nenhum
candidato à Presidência defendeu o fundamentalismo liberal. Além de advogar
idéias liberal-desenvolvimentistas, o candidato situacionista não conseguiu
manter o apoio de toda a coalizão de sustentação de Cardoso. A ala direita da
coalizão abandonou a candidatura oficial mas não teve condições de lançar o seu
próprio candidato à Presidência. Foi capaz de mostrar apenas alguma força no
plano regional. Por outro lado, os concorrentes de oposição mostraram-se
sintonizados com as idéias liberal-desenvolvimentistas, a despeito da
exacerbada retórica nacionalista de alguns deles. Especialmente o Partido dos
Trabalhadores e seu candidato fizeram grandes esforços para se ajustar ao
establishment, seja comprometendo-se a manter o eixo da gestão econômica de
Cardoso seja aproximando-se do centro do espectro partidário. De fato, além do
PT se compor com alguns partidos de esquerda, aliou-se ao Partido Liberal e fez
de um empresário, senador por este partido, o seu candidato à vice-presidente.
Em suma, nas eleições de 2002, o conjunto das forças políticas tentou
posicionar-se na ala esquerda do establishment. Isto significa que todos eles
advogavam mais controle do Estado sobre o mercado, mais incentivos estatais
para as atividades produtivas e maior proteção do Estado para os mais pobres,
mas tudo isso sem quebrar o molde liberal que conforma a coalizão sociopolítica
no poder.
Assim, embora a vitória do Partido dos Trabalhadores na eleição para a
Presidência presidência da República tenha resultado, evidentemente, em mudança
da coalizão política governamental, ela não tende a produzir qualquer ruptura
na hegemonia liberal estabelecida anos atrás. Mesmo que haja tensão entre a
nova coalizão político-partidária que comanda o Estado e a coalizão
sociopolítica que o vem sustentando, o eixo da agenda do novo governo é
liberal-desenvolvimentista: seu objetivo não é reconstruir o Estado
empresarial, mas reformar o Estado para que possa estimular o desenvolvimento
privado e a igualdade social.38
É certo que os novos governantes vêm afirmando que suas políticas ortodoxas são
apenas "um remédio inevitável mas provisório", a ser utilizado só enquanto a
dívida interna e externa e a estagnação econômica internacional continuarem a
constranger a capacidade de ação do Estado. Embora o novo governo queira
sugerir com isso que há uma diferença qualitativa da política que adota com a
do anterior, não se vislumbra no horizonte nenhuma alternativa de gestão
macroeconômica que, alterados os atuais constrangimentos, não pudesse ser
adotada também pelo governo Cardoso, caso ainda estivesse no poder. O que se
pode esperar, sim, é que o governo Lula no futuro expanda e dê uma maior
consistência às políticas de desenvolvimento e às políticas sociais
empreendidas pelo governo Cardoso. Dada a dependência do Estado em relação ao
capital financeiro, não parece provável a adoção de políticas muito drásticas
de redistribuição do patrimônio e da renda, ainda que haja muita boa vontade
entre as elites em relação a programas de combate à miséria e à pobreza. É
verdade, também, que o novo governo tem advogado uma maior participação
política no desenho e na gestão das políticas estatais, contrariando o estilo
tecnocrático de decisão do governo anterior. E que, em função disso, foram
criados vários conselhos consultivos - compostos por representantes
convidados de organizações sociais e por membros do governo. Embora as
promessas de maior participação política tenham tido, sem dúvida, um alto valor
político para a eleição do atual presidente, especialmente entre os empresários
e a classe média, ainda é muito cedo para avaliar se os mecanismos imaginados
para realizá-las produzirão transformações institucionais significativas que
aprofundem a ordem democrática vigente.
Seja como for, o extraordinário conjunto de reformas liberalizantes efetuadas
nos anos de 1990 definiu o quadro institucional básico que regulará as relações
entre o Estado e o mercado e entre o sistema econômico nacional e o capitalismo
mundial no começo do século XXI. Esse quadro dificilmente será alterado a médio
prazo, pois é a materialização de uma nova perspectiva hegemônica na sociedade.
As mudanças ocorridas na gestão econômica inclinaram-na cada vez mais para o
liberal-desenvolvimentismo, e é razoável supor que o novo governo de esquerda
tenda a reforçar as características centrais dessa inflexão no campo hegemônico
liberal. A dependência externa e o Mercosul são os elos mais frágeis da nova
forma de integração do país no capitalismo mundial. De um lado, a incapacidade
crônica de gerar poupança interna suficiente para sustentar investimentos
ameaça o desenvolvimento econômico contínuo do Brasil. De outro, a fraqueza
econômica e a política dos países membros do Mercosul no plano mundial e a
falta de harmonia entre eles pode complicar a sua consolidação como bloco
regional. Ademais, os Estados Unidos pressionam intensamente para subordinar o
Mercosul a um processo de integração que compreende toda a América sob sua
liderança.
De uma perspectiva mais ampla, foi notável o progresso brasileiro na direção de
uma sociedade mais democrática. Há nítidas manifestações de intolerância
crescente das classes médias e populares diante do comportamento predatório das
elites e também cada vez mais exigências de distribuição mais justa da renda.
Essas demandas de responsabilidade política e social tendem a consolidar as
instituições políticas democráticas e, como a válvula inflacionária -
mecanismo de escape típico daquela elite em face das pressões distributivas
- está razoavelmente bloqueada, parece provável que paralelamente ao
crescimento econômico venha a ocorrer uma maior redução dos índices brasileiros
de desigualdade material e cultural.
Nas últimas décadas do século XX, por maiores que tenham sido as mudanças
ocorridas, o Brasil não escapou de sua condição periférica. A retomada do
crescimento acelerado e a consolidação do Mercosul não serão suficientes para
permitir que isso ocorra. Superar essa condição exige a inclusão social e
econômica dos mais pobres, que ainda permanecem à margem das conquistas
materiais da civilização moderna. Este é o desafio mais difícil e mais
necessário para a sociedade brasileira superar neste século XXI.
NOTAS
1 Sobre o padrão autocrático de dominação na sociedade e no Estado brasileiros
consultar Fernandes (1975). Em relação ao Estado desenvolvimentista brasileiro
ver Draibe (1985). Marçal Brandão (1997) faz uma análise das dificuldades da
população em participar autonomamente da política mesmo durante o período de
democracia populista anterior ao regime militar autoritário instalado em 1964.
2 A moratória brasileira do final de 1982 e a assinatura de acordo com o FMI em
janeiro de 1983 sinalizam o caráter externo da crise. Isso não significa
ausência de desequilíbrio fiscal. Este não dava, porém, especificidade à crise,
ao contrário do que tem sublinhado Bresser Pereira (1993). A diferença é
importante pois, se o desequilíbrio fiscal não decorresse principalmente do
endividamento externo, o Estado teria maior raio de manobra para resolvê-lo de
outra forma. Ver Whitehead (1993, pp.1380 e 1382) para uma análise crítica da
interpretação de Bresser Pereira.
3 Tais mudanças de paradigma e nas políticas econômicas foram estudadas por
Helleiner (1994, caps. 6 e 7).
4 A reforma partidária de 1979 rompeu o sistema bipartidário, instituído pelo
regime autoritário em 1965. O PDS (Partido Social Democrata) tomou o lugar da
Arena como representante do regime e os partidos PMDB, PDT, PTB e PT assumiram
o lugar do MDB (Movimento Democrático Brasileiro) como oposição política. Na
eleição de 1982, o PMDB elegeu nove governadores de estado e o PDT, um.
5 Em relação à liberalização política ver Velasco e Cruz e Martins (1983) e
Lamounier (1985).
6 Sobre o processo de democratização política, adoto a perspectiva de Touraine
(1995). A democratização política tem sido sustentada por processo mais amplo
de democratização da sociedade brasileira, que não será examinado aqui.
7 O ajuste fiscal escolhido foi muito menos drástico do que o realizado pelo
México, em situação similar. Para uma visão comparativa, consultar Kaufman
(1988).
8 Faço um relato detalhado dessa crise em Sallum Jr. ( 1996, cap. 2).
9 A campanha das "Diretas" ultrapassou em parte os próprios valores básicos que
legitimavam o Estado. A partir de então seria insustentável uma hegemonia
fundada na restrição à participação política das classes populares.
10 A Aliança Democrática foi constituída pelo PMDB e pela Frente Liberal,
dissidência do PDS, que depois converteu-se no Partido da Frente Liberal (PFL).
A candidatura de Paulo Maluf foi lançada pelo PDS e apoiada pelo governo
militar.
11 O presidente eleito Tancredo Neves não tomou posse em 15 de março de 1985
porque ficou repentinamente doente, morrendo poucas semanas depois. Em seu
lugar foi empossado o vice-presidente José Sarney que governou até 15 de março
de 1990.
12 A esse respeito, consultar o trabalho de Noronha, Gebrin e Elias Jr. (2003).
13 Durante o governo Sarney, podem ser contadas como tentativa heterodoxas de
superar a instabilidade econômica os planos "Cruzado", lançado em fevereiro de
1986, "Bresser", editado em meados de 1987, e "Verão", cuja vigência foi
iniciada em janeiro de 1989.
14 Biersteker (1995) trata desse processo de difusão.
15 No segundo turno eleitoral 37% votaram em Lula, apenas 4% menos do que no
candidato vencedor, Fernando Collor de Mello.
16 Nesta seção reelaboro parte de análises e informações que constam de Sallum
Jr. (1999, 2000). O primeiro texto faz parte, com outros artigos, do "Dossiê
FHC - 1º Governo", publicado na revista Tempo Social (Revista de Sociologia
da USP). Mais recentemente, Lamounier e Figueiredo (2002) organizaram uma
coletânea de trabalhos sobre o governo FHC, redigidos por jornalistas com base
em pesquisas acadêmicas. Este trabalho contém análises de ótima qualidade, mas
seus resultados não alteram substancialmente a interpretação aqui desenvolvida.
17 As tarifas médias eram 31,6% em 1989. Foram reduzidas para 30% em 1990, para
23,3% em 1991, para 19,2% em janeiro de 1992, para 15% em outubro de 1992 até
19,2% em Julho de 1993.
18 A primeira equipe econômica de Collor foi substituída em maio de 1991. A
negociação da dívida externa, durante seu governo, foi analisada com exatidão
em Candia Veiga (1993).
19 Collor renunciou em outubro de 1992.
20 Emprego o termo cesarismo em sentido metafórico. Ver em Bobbio et al.(1994)
um texto curto, mas rico sobre o assunto.
21 Sobre o Plano Brady, ver Cline (1989). Um texto sintético sobre os novos
fluxos de capital e reformas que caracterizaram a passagem doa anos de 1980
para a década de 1990, consultar Naím (1995).
22 O fluxo voluntário de capital externo começou a voltar ao Brasil em 1991.
Suas reservas de câmbio atingiram 42 bilhões de dólares na metade de 1994,
quando o Plano Real foi lançado.
23 Há um bom estudo sobre as condições políticas e econômicas na época do Plano
Real em Sola e Kugelmas (1996).
24 Malloy e Connaghan (1996) e Mettenhein e Malloy (1998) analisaram algumas
experiências políticas latino-americanas sob à luz do que Pocock entende por "
momento maquiaveliano". Sola e Kugelmas(1996) estudaram a eleição e o Plano
Real de Cardoso sob a mesma ótica.
25 Durante o período de Revisão Constitucional as reformas podiam ser aprovadas
por maioria simples.
26 No segundo governo de Fernando Henrique Cardoso foram aprovadas normas
estritas de "responsabilidade fiscal" para os governantes e penalidades para os
transgressores.
27 Os principais representantes dessa corrente ideológica no governo foram o
primeiro presidente do Banco Central, Gustavo Franco, e o Ministro da Fazenda,
Pedro Malan. Fora do governo suas principais expressões intelectuais foram os
economistas da PUC-Rio de Janeiro.
28 Apesar da retórica política da oposição política, a sobrevalorização do
câmbio não se vincula ao ideário neoliberal, que recomenda, ao contrário, um
market exchange. A versão brasileira radical de liberalismo adotou a
sobrevalorização para forçar as empresas brasileiras a se enquadrarem
rapidamente, sob pena de desaparecimento, aos padrões do mercado, isto é, aos
níveis internacionais de preços e produtividade. Eis porque denomino
fundamentalista esse tipo de liberalismo.
29 Representavam esse ponto de vista, no primeiro governo FHC, principalmente
José Serra, ministro do Planejamento, Luiz Carlos Mendonça de Barros,
presidente do BNDES, e José Roberto Mendonça de Barros, secretário de Política
Econômica. Fora do governo o nome mais relevante era o do deputado federal
Delfim Neto, figura importante do regime autoritário, em que ocupou diversos
ministérios da área econômica.
30 Em Sallum Jr. (2000) tratei dessas medidas compensatórias. Sobre o conceito
de política industrial referido, consultar Mendonça de Barros e Goldenstein
(1997).
31 As taxas médias anuais de desemprego evoluíram da seguinte maneira: 4,85%
(de julho de 1994 a junho de 1995); 5,75% (1995-1996); 5,77% (1996-1997); 7,37%
(1997-1998); e 8,32% (1998-1999).
32 Tomo o conceito de Braga (1997). Além do texto citado podem ser consultadas
os trabalhos de Chesnais (1996, 1998) que, embora de forma um pouco diversa,
vão na mesma direção.
33 A própria política de estabilização no primeiro governo de FHC contribuiu
para dar vantagens às empresas estrangeiras em relação às nacionais.
34 Em 1996 o IDE atingiu apenas US$ 9,6 bilhões; em 1997 subiu para US$ 17,9
bilhões e depois para US$ 26,8 bilhões em 1998, e finalmente para US$ 31,2
bilhões em 1999.
35 O compromisso de produzir superávit primário anual de 3,5% do PIB (elevado
em 2002 para 3,75%) implicou uma grande contenção de gastos. Ainda mais que os
números foram de fato superados. Sublinhe-se que, durante o primeiro mandato de
FHC, embora o governo defendesse a necessidade de ajustar as contas públicas,
apenas as manteve equilibradas (não contando os juros pagos).
36 Os fluxos de IDE foram de US$ 33,3 bilhões em 2000, caíram para US$ 20
bilhões em 2001 e para US$ 16,6 bilhões em 2002. As dificuldades de rolagem da
dívida interna manifestaram-se apenas em termos de custo monetário mais alto.
Em relação à dívida externa, houve redução dos montantes disponíveis para
renovar linhas de crédito às exportações, algo que não ocorrera sequer na crise
dos anos de 1980.
37 Apesar do considerável ajuste fiscal, o Brasil não conseguiu reduzir a
proporção de sua dívida pública em relação ao PIB. Em compensação, a enorme
desvalorização cambial relacionada à incerteza eleitoral de 2002 ajudou o
Brasil a gerar um superávit comercial de US$ 13,1 bilhões, o que reduziu o
déficit externo corrente a 1,7% do PIB (entre 1998 e 2001 o déficit anual tinha
atingido mais de 4% do PIB).
38 É importante sublinhar que no Brasil e em outros países latino-americanos os
adeptos do liberalismo econômico não costumam se opor ao Estado de Bem-Estar,
mas ao Estado Empresário (nacional-desenvolvimentista), manifestando-se a favor
de políticas sociais.