As escritas de Deus e as profanas: notas para uma história das idéias no Brasil
[...] não podemos ser entendidos sem esta consciência intensa do momento em que
fomos concebidos, filhos de uma mãe anônima, nós próprios desprovidos de nome,
mas com inteira consciência do nome dos nossos pais.
Carlos Fuentes, O espelho enterrado
Em um belo livro sobre a formação cultural dos Estados Unidos, o historiador
Daniel Boorstin diz que os norte-americanos sempre andaram pela história com a
consciência de que estavam no caminho certo. A história americana teria
começado com os "peregrinos" e com a segurança de que implantavam no Novo Mundo
um espaço para a liberdade humana. "A Nova Inglaterra puritana", diz Boorstin,
"foi um nobre experimento em teologia aplicada". Mais do que em uma doutrina, a
história norte-americana teria sido antecipada em uma ortodoxia. Como nestas
palavras de Francis Higginson: "O nosso maior conforto [...] é que temos aqui a
verdadeira Religião e os santos Mandamentos de Deus Todo Poderoso, e se Deus
está conosco, quem pode estar contra nós?"1
Registrando os ecos de uma visão do valor da fé para a salvação, no espírito da
Reforma protestante, até hoje dominante na cultura norte-americana, essas
frases recolhidas por Boorstin me surpreenderam quando as li e, creio,
surpreendem a qualquer leitor ibero-americano.2 Escrevendo sobre as origens do
seu país, o historiador anglo-americano oferece-nos o esboço de uma compreensão
muito diversa daquela a que estaríamos obrigados em relação a nós mesmos. Se eu
tivesse que buscar, numa só frase, uma imagem da cultura brasileira,
acompanharia o dito popular "Deus escreve direito por linhas tortas",
registrado por Oliveira Martins sobre a cultura lusa.
Pode-se reconhecer na cultura brasileira este traço da cultura portuguesa que,
nas palavras de Oliveira Martins, está em sua capacidade de reconhecer que as
ações dos homens obedecem a "leis idealmente sublimes" embora eventualmente
"maculadas de defeitos e vícios". Vale para ambas o exemplo de Camões que
"sente e exprime a grandeza histórica do império das Índias, que na própria
opinião particular do poeta são uma Babilônia, um poço de ignomínias" (Oliveira
Martins, 1991, p. 9). É da mesma tradição luso-brasileira o reconhecimento de
que a grandeza das ações históricas convive com o da fragilidade dos homens e
com a precariedade das circunstâncias em que devem atuar. É uma tradição
cultural capaz de reconhecer-se a si própria como uma complexa mescla do bem e
do mal, do certo e do errado, assim como de uma grande insegurança quanto à
correção das suas escolhas nos caminhos do mundo. Com todos os problemas que
acarreta esta especial permeabilidade (adaptabilidade ou porosidade) para as
circunstâncias da vida, registre-se, pelo lado positivo, que esta é uma
tradição cultural avessa à ortodoxia, como se dispensasse o sentimento da
certeza de estar sempre no caminho certo. Como disse um poeta espanhol,
expressando essa mesma disponibilidade para o que venha do mundo: não há
caminho, o que faz o caminho é o caminhar. Uma expressão evidentemente radical
do mesmo sentimento, como os espanhóis fazem quase sempre e a propósito de
quase tudo.
Já que vamos continuar falando, em bloco, de países e povos ibero-americanos,
uma distinção se impõe, desde logo, entre a herança lusa e a castelhana. O
espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936), acompanhando o português Antero de
Quental, para quem a cultura lusa se distinguiria pela preeminência do
sentimento sobre a razão, diz que, de fato, os portugueses sempre se
distinguiram por "cierta pedantería sentimental." Um "pedantismo sentimental"
de que o filósofo espanhol não excluiria os seus compatriotas, pois suas
baterias se voltam não contra Portugal mas contra a Inglaterra. Provavelmente
como muitos portugueses da sua época, Unamuno se vê como um homem de "alma
medieval". Mas carrega nas cores muito mais do que os portugueses fariam. É que
diferente da imagem que atribui aos lusos mais do que sobrepor o sentimento à
razão, Unamuno não aceita conciliar a razão e a fé. Define a Espanha com um
país de raiz medieval que "caminhou, à força, pelo Renascimento, pela Reforma e
pela Revolução, aprendendo, sim, delas, mas sem deixar que lhe tocassem a alma
[...]". É daí que vem o que chama de "sentimento trágico da vida", "a expressão
de uma luta entre o que o mundo é, segundo nos mostra a razão e a ciência, e o
que queremos que seja, segundo nos diz a fé de nossa religião". Daí também, diz
o filósofo, que Quixote tenha sido um desesperado, como Pizarro e como Loyola,
porque "é do desespero e só dele que nasce a esperança heróica, a esperança
absurda, a esperança louca. Spero quia absurdum" (Unamuno, 1983, pp. 343, 348 e
350).
As imagens lindas e poderosas de Unamuno são, com efeito, demasiado extremadas
para servir à interpretação das culturas portuguesa e brasileira. Difícil saber
o quanto nos aproximam da cultura espanhola e de suas descendentes hispano-
americanas. Em todo caso, não há de ser por acaso que nenhum pensador
brasileiro ou português de fins do século XIX e das primeiras décadas do XX,
que constituem o tempo de Unamuno, tenha chegado a tais extremos, não pelo
menos com a influência que alcançou o pensador espanhol. O que me parece razão
suficiente para que se reconheçam diferenças entre as duas culturas ibéricas,
assim como entre as culturas ibero-americanas, embora participem todas da mesma
matriz religiosa e de um conjunto semelhante de circunstâncias históricas.
Alguns historiadores sugerem que as diferenças acentuadas por Unamuno nas
relações entre a razão e a fé, também se revelariam nas doses variáveis de
pragmatismo e de idealismo ' mais português, o primeiro, mais espanhol, o
segundo ' que se transmitiram, em graus também variáveis, aos países ibero-
americanos.
Depois deste parêntese, voltemos à comparação, aliás, clássica, entre ibéricos
e anglo-saxões. Se a história norte-americana nasceu da Reforma, da viagem dos
peregrinos que formaram as colônias da Nova Inglaterra um século depois que
Lutero pregou sua mensagem na porta da Igreja de Wirtemberg, a história
brasileira e a dos países hispano-americanos começaram dez ou vinte anos antes
do protesto luterano, e se inspiraram na mentalidade e nos motivos medievais
que impulsionavam os Descobrimentos. Tendo nascido antes da Reforma, a história
ibero-americana haveria que tomar algumas décadas até que chegassem aqui os
ideais da Contra-Reforma, no caso do Brasil principalmente por intermédio da
ação dos jesuítas. No caso de países ibero-americanos, como o México, esta
presença católica é mesmo anterior ao Concílio de Trento, por intermédio dos
franciscanos e dos dominicanos, chegando os jesuítas quase ao fim do século
XVI.
No princípio das colônias da Nova Inglaterra estava a idéia da predestinação e
da solidão do homem diante de Deus. No princípio das colônias ibero-americanas
estava a crença no Filho de Deus que se fez homem, uma crença cristã, como a
dos puritanos, mas com a diferença de que entendida por espanhóis e portugueses
em termos de uma intimidade de Deus com a matéria e com o mundo. De acordo com
a tradição católica da última Idade Média, que seguia os ensinamentos de Tomás
de Aquino (1225-1274), "Deus não é o Ato puro de pensamento", que nos chegou
por meio do platonismo de Santo Agostinho, mas "o Ato puro de existir que criou
do nada o mundo cristão dos indivíduos realmente existentes" (Étienne, 1952, p.
540). Uma tradição filosófica tomista que, convertida a partir do século XIII
em tradição cultural por meio da escolástica e das ordens mendicantes, e do
ativismo dos jesuítas a partir do século XVI, tornou-se parte essencial das
heranças culturais ibero-americanas. Deus está conosco no cipoal dos caminhos
(e descaminhos) do mundo, cabendo a nós encontrar a Sua verdade.
Fique claro, desde logo, que não se trata aqui, nesta introdução e no livro que
que deve segui-la, de questionar as convicções religiosas (ou não-religiosas)
de quem quer que seja, mas de recolher na história imagens da cultura. E já que
de história se trata, acrescente-se que, especialmente para as épocas que nos
ocuparão mais adiante neste ensaio, a história não se pode descrever e menos
ainda explicar em termos de uma só dimensão. Por isso que, nem só as opções
religiosas, por importantes que sejam, fazem a cultura de um país. Se as tomo
como ponto de partida não é porque as considere as únicas possíveis, mas as
mais seguras para dar início a um estudo da história das idéias no Brasil. Uma
história que deve começar também reconhecendo que aos motivos religiosos se
juntam motivos materiais, mudanças de mentalidade, ambições de riqueza e poder
na surpreendente e explosiva mistura com a qual se abriram as portas do Novo
Mundo e do mundo moderno.
Opções da modernidade
O historiador norte-americano Richard Morse, importante "brazilianista" dos
anos de 1960, disse, certa vez, que o Novo Mundo são dois. O pequeno livro onde
aparece essa idéia óbvia tem um título carregado de sugestões, O espelho de
Próspero. Começando com uma idéia aparentemente evidente, Morse conduz-nos a
uma hipótese surpreendente: as colônias anglo-saxônicas e as ibéricas foram, em
seu tempo, duas "opções" de entrada no caminho da modernidade. A partir das
interpretações do mexicano Leopoldo Zea e do norte-americano Louis Hartz, Morse
afirma que as tradições ibérica e anglo-saxônica surgiram "de uma matriz moral,
intelectual e espiritual comum", formada num longo período que se estende do
século XII ao XVII. É a esta matriz que devemos o que chamamos de "civilização
ocidental" (Morse, 1988, pp. 22ss.).3
Em suas raízes religiosas, assim como em suas linhas culturais mais gerais, o
historiador anglo-americano convertido em estudioso da história brasileira
sugere que as duas faces do Ocidente poderiam ser entendidas a partir das
relevantes diferenças históricas assinaladas por Max Weber. No mundo ibérico,
católico, os atos humanos deviam ser julgados em um "tribunal da consciência",
onde, porém, o confessor é o juiz do "foro íntimo". Um "tribunal" que,
poderíamos acrescentar, depende não apenas do reconhecimento da existência de
Deus por parte do fiel, mas também da Igreja, uma instituição terrena com a sua
hierarquia. No mundo protestante, desapareceu o "tribunal" e com ele o
julgamento exterior da consciência, conduzindo a mudanças radicais na imagem do
indivíduo. Enquanto o católico fala com Deus no âmbito da Igreja, o protestante
se acha só diante de Deus, sem intermediários. Eis, segundo Max Weber, o
sentido do individualismo dos anglo-saxões, em particular dos calvinistas. Na
angústia dessa solidão estaria a raiz para o poderoso impulso psicológico da
ação no mundo, base de uma ética protestante que se acharia nas origens do
capitalismo. Desnecessário insistir nessa conhecida divergência entre
protestantes e católicos que, contudo, segundo Morse, não seria, porém, o
bastante para significar um divórcio (Morse, 1988, p. 45).
Segundo o historiador norte-americano, seria ingenuidade indagar qual a mais
adiantada e qual a mais atrasada dentre estas duas opções que se ofereceram,
quase ao mesmo tempo, ao mundo europeu da última Idade Média. A questão
relevante não seria essa, mas a de saber como influenciaram países e povos nos
novos tempos que se abriam a um mundo medieval em crise e em transição. Em todo
caso, diz Morse, se a pesquisa tivesse que ser feita talvez levasse à conclusão
de que a opção ibérica foi a primeira. Espanha e Portugal saíram para o Novo
Mundo na dianteira da Holanda e da Inglaterra, assim como as colônias ibéricas
antes das inglesas.
Ao contrário do que muitos pensam à luz de critérios de uma modernidade mais
recente (e de um certo anacronismo no exame da história), a vitalidade da
revivescência do tomismo na "escolástica tardia" nos países da península
ibérica dos séculos XV e XVI, não responderia a uma situação de atraso, mas a
uma situação de relativa modernidade. Responderia a circunstâncias peculiares
que prepararam o caminho para os Descobrimentos, das quais não são menos
relevantes a guerra (e a convivência) com os mouros e uma certa antecipação na
formação dos Estados nacionais. Mais do que os outros povos da Europa, viveram
por muito tempo Portugal e Espanha a necessidade de adaptar os requisitos da
vida cristã à tarefa de "incorporar" povos não-cristãos à civilização européia.
A Summa contra gentiles de S. Tomás, que cumpriu a função de guia à conversão
dos mouros, expunha amplamente o caso de sociedades "pagãs" ordenadas pela
filosofia natural, segundo uma visão para a qual os seres humanos podiam ser
considerados dentro de uma perspectiva ao mesmo tempo cristã e "natural". Se a
Igreja, para Tomás, era um "corpo místico", o Estado era a mais perfeita das
associações humanas, um "corpo político e moral". E também os pagãos e os
infiéis eram capazes de associações políticas (Idem, p. 42).
Pragmatismo e comércio
Como já assinalamos, nem tudo é religião nas origens dos países ibero-
americanos. Fundamentais como tenham sido, as convicções religiosas não tiveram
influência exclusiva na abertura dos novos tempos e na formação das novas
individualidades históricas que neles emergiram. A esse respeito, são
necessárias duas observações, das quais a primeira é a de uma necessária
distinção entre religião e cultura. Se os países da península ibérica merecem
ser considerados países católicos em razão de sua proximidade ao Papado e ao
clero desde o século XIII em diante, merecem-no mais ainda por razões
culturais. É que neles, a presença católica se expandiu, extravasando o campo
de ação da Igreja e atingindo segmentos não-católicos e mesmo atividades de
caráter não-religioso da sociedade. Desde a Reconquista, os "países católicos"
tiveram a experiência de uma longa convivência (e muitos conflitos) com
muçulmanos e judeus. Antes que se soubesse da existência do Novo Mundo, já
havia na península ibérica a mestiçagem que depois se tornou tão característica
dos países ibero-americanos, e que nestes haveria de ampliar-se no contato com
os índios e negros. Desse modo, não obstante os momentos de obscurantismo, que
não são poucos, especialmente nos séculos XVI e XVII, Espanha e Portugal nunca
foram exclusivamente católicos. Se são chamados, corretamente, ainda hoje, de
"países católicos" é porque a religião católica foi neles forte o bastante para
deixar nas suas culturas nacionais marcas indeléveis, tanto nas metrópoles como
nas suas ex-colônias americanas.
Uma segunda observação impõe-se. E esta diz respeito a uma disposição cultural
que, embora formulada inicialmente, como tudo o que concernia ao pensamento na
Idade Média, por religiosos, independe, em princípio, de qualquer conotação
religiosa. Trata-se de um experimentalismo ' uma "revolução da experiência",
dizem alguns historiadores portugueses ' que se reconhece mais nitidamente na
cultura lusa, mas que, em grau menor, caracterizaria também a cultura hispânica
dos séculos XIV, XV e da primeira metade do século XVI. Tanto quanto os
ingleses, os ibéricos também acolheram a reflexão de Roger Bacon (1214-1292),
um monge franciscano inglês do século XIII, que distinguia como fontes do saber
entre a autoridade, a razão e a experiência, entendendo esta última como a
fonte mais sólida da certeza. Considerava as matemáticas "a porta e a chave
para as ciências" e dizia que "a verdade é filha do tempo, e não da autoridade"
(Saraiva, 1962, p. 372). Embora no século XIII, e ainda à margem do pensamento
medieval predominante, a valorização da experiência (que em Bacon incluía
também a experiência mística) era uma tendência que crescia também como fruto
das mudanças sociais e econômicas da última Idade Média européia. E que, nos
países ibéricos, em especial no caso de Portugal, crescia com as exigências
práticas dos processos de centralização do poder.
Em Portugal, a partir do século XIV, a "revolução da experiência" vinculou-se à
arte de navegar. Foi emergindo, em contraste, mas também lado a lado, com a
tradição e com os ensinamentos dos clássicos, numa espécie de "duplo
pensamento" que caracterizou boa parte dos séculos das navegações (cf. Oliveira
Marques, 1972, p. 284). Na segunda metade do século XVI, o navegador Duarte
Pacheco Pereira, autor do Esmeraldo de situ orbis, consagrou o experimentalismo
português em palavras célebres: "a experiência, que é madre das cousas nos
desengana e de toda dúvida nos tira" (Couto, 1997, p. 151). Sabe-se que esse
experimentalismo ibérico, em especial português, não foi forte o bastante para
estabelecer, como na Inglaterra, as premissas de um desenvolvimento científico
mais amplo. Mas houve exceções e não foram irrelevantes no campo da geografia,
da astronomia, da matemática e demais ciências ligadas à navegação, que nos
permitem reconhecer nos séculos dos Descobrimentos um Renascimento português
nos campos da ciência e da técnica, sem o qual os próprios descobrimentos não
seriam possíveis. Uma disposição cultural que se misturou com a religiosidade
e, mesmo, com o misticismo, e que se transmitiu aos conquistadores dos séculos
seguintes.
De mistura com isso tudo, não há como ignorar nesse alvorecer ibérico dos
tempos modernos, uma cobiça por riqueza e poder, que de há muito se reconhecia
nas ações guerreiras da nobreza medieval que se espraiou na península da
Reconquista e em toda a Europa das Cruzadas. Esses motivos levaram ao comércio,
no sentido que tomou essa atividade desde o século XIII e que se distinguia
disso que, depois, se chamaria de capitalismo comercial. Nas Cruzadas, na
Reconquista e nos Descobrimentos, essas ambições de riqueza e poder misturavam-
se a uma antiga noção medieval de honra que incluía o botim e o saque, como
direitos legítimos do vencedor tanto quanto a escravização do vencido na
batalha. O capitalismo comercial virá depois, como uma das conseqüências das
aventuras ibéricas, a partir da Holanda do século XVII.
Caminhos tortos?
O fato de termos nascidos vinculados à crença ' religiosa e por extensão,
cultural ' da humanização de um Deus que permanece conosco nos caminhos (e
descaminhos) do mundo gerou idéias e convicções que acompanham a história dos
países ibero-americanos ao longo dos tempos. Raízes religiosas certamente
poderosas, mas às quais sempre faltou a segurança intrínseca, a rigidez de
princípios própria das ortodoxias. Assim como na América anglo-saxônica, algo
dessas peculiaridades de origem permanece até hoje na América ibérica. Enquanto
as colônias da Nova Inglaterra andaram por trilhas de um fundamentalismo até
hoje perceptível na moderna sociedade norte-americana, as colônias ibéricas,
que passaram por influências de momentos diversos e às vezes contraditórios,
perderam, na diversidade e nos conflitos de origem, a possibilidade de um
fundamentalismo, desde o início contestado.
No caso do Brasil, além da religião e das ambições de riqueza e poder, nascemos
também de uma Renascença portuguesa de vida curta, frágil, mas, no seu tempo,
de uma prodigiosa eficiência. Mais do que na literatura e nas artes, a opera
magna do Renascimento português foi a de superar os limites do Mediterrâneo,
conquistar o Atlântico e o Índico. A grande obra da Renascença portuguesa
estava no mar e sua glória nas conquistas de além mar. Se do que se fala é do
Renascimento, digamos que os Descobrimentos não foram pouca coisa. Os
portugueses realizaram, com os espanhóis, a descoberta do mundo como o
conhecemos hoje. Mas no modo como a realizaram estava também o começo da sua
perdição.
Os momentos supremos dos séculos XV e XVI deveriam fechar-se, no caso de
Portugal, na "apagada e vil tristeza" de uma prolongada decadência que se
iniciou bem antes do desaparecimento de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, em
1578. Os Lusíadas, publicados em 1572, e que ainda hoje nos comovem, são uma
obra tardia do Renascimento português, que pôde ser lida, já no seu tempo, como
o epitáfio de um século e meio de glórias. A Espanha viverá ainda o seu "siglo
de oro", que, aliás, foi também um século de decadência, não obstante o
excepcional brilho de sua literatura e pintura. De Dom Quixote, publicado em
1595, diz o mexicano Carlos Fuentes que
[...] é o livro exemplar da decadência espanhola. [...] A era épica
da Espanha terminara. [...] O sonho da utopia havia fracassado no
Novo Mundo. A ilusão da monarquia universal havia se dissipado. [...]
depois de El Cid e Isabel, a Católica, depois de Colombo e Cortés, de
santa Tereza e Loyola, de Lepanto e a Armada, a festa havia terminado
(Fuentes, 1992, p. 202).4
Que as imagens da decadência não nos levem, porém, a esquecer a época gloriosa
em que surgiram para a história moderna os países ibero-americanos. Entre estes
o Brasil, nascido da mesma mistura histórica e cultural que inspirou D.
Henrique e a nobreza portuguesa reunida em torno da dinastia de Avis, assim
como as lutas de séculos contra os mouros. O ano de 1492, do descobrimento da
América, foi também o da retomada de Granada, último baluarte dos mouros na
península, aliás, tomado com a ajuda portuguesa. O ano de 1497 foi o da viagem
de Vasco da Gama para as Índias, seguindo trilha aberta por Bartolomeu Dias em
1488 ao cruzar o cabo das Tormentas, ou da Boa Esperança, como queria o rei e
como ficou na memória histórica. Décadas depois, já em pleno século XVI,
começava a decadência, embora ainda permanecessem muitos dos impulsos culturais
da expansão. Já passado o breve clarão humanista português e espanhol,
permanecia a mesma mistura de misticismo e de espírito aventureiro medieval, de
pragmatismo e de centralização de poder, embora na submissão às regras do
Concílio de Trento (1546), impulsionadas, no caso do Brasil e de Portugal, pela
influência dos jesuítas, duradoura de dois séculos.
Admitidas as distinções de ênfase entre portugueses e espanhóis, a entrada dos
países ibéricos nos tempos modernos não teve, portanto, o rigor ortodoxo dos
puritanos nem, depois deles, a clareza e a distinção que pedia a lógica
cartesiana. Para torná-la mais complexa teve ainda a circunstância de que não
obstante as aparências de regressão, as orientações da Contra-Reforma foram
também uma forma de adaptação da Igreja aos tempos da Reforma. Daí que embora
se possa considerar que os jesuítas eram inspirados numa ética medievalista,
não há exagero em se reconhecer que, pelo menos no caso do Brasil, foram também
agentes da nossa primeira modernidade, na educação e em algumas das propostas
econômicas de Antonio Vieira. Em todo caso, parece certo que a entrada no mundo
dos países nascidos das aventuras ibéricas, as que abriram a época moderna da
história do Ocidente, deu-se a contrapelo daquilo que se veio a consagrar como
a modernidade. Dir-se-ia que entramos no mundo por caminhos tortos?
Comércio, religião e poder
Excepcional entre as grandes aventuras humanas, a época dos Descobrimentos foi
também um dos períodos mais brilhantes e complexos da história, nessa última
Idade Média, que mudava em todos os campos da atividade humana. Já a partir do
século XII, assistia-se em geral na Europa a um ressurgimento das cidades e do
comércio. Fechada a saída ao Oriente pelo monopólio das cidades italianas sobre
o Mediterrâneo, os ibéricos estavam obrigados a buscar outros caminhos. Desde
meados do século XIII, os portugueses buscavam comércio ao norte da Europa '
Flandres, Normandia, Inglaterra, Bretanha e, até, a Noruega ' por meio da
navegação de cabotagem (Saraiva, 1962, p. 391). Nesse quadro de mudanças
européias, Espanha e Portugal tiveram de peculiar as lutas da Reconquista, que
aproximaram os ibéricos da Igreja muito mais do que era usual na época.
Quaisquer tenham sido as suas complexas combinações na marcha do tempo, os
motivos religiosos, econômicos e políticos estavam todos presentes não obstante
os vícios e os momentos de paroxismo, dos quais esteve repleta a tentativa
frustrada de Portugal nas Índias e as violências dos conquistadores espanhóis
no México e no Peru. Um exemplo desses vícios e paroxismos está nas
conveniências das famílias reais da Ibéria ' conveniências religiosas,
econômicas e políticas ' que obrigaram os judeus, na passagem do século XV para
o XVI, a sair da Espanha e a adotar à força, em Portugal, o catolicismo. Num
dos momentos mais brilhantes de abertura da Idade Moderna, quando Colombo
negociava com Isabel seus planos de viagem para a América, havia autos-de-fé
queimando seres humanos em ruas e praças de Espanha. Quanto a Portugal, quase
no mesmo momento, a Coroa aplicava contra os judeus a fórmula absurda do "crê
ou morre", que os cristãos sempre criticaram nos mouros.
Foi assim que surgiu em Portugal, a figura do "cristão-novo", como efeito de
uma técnica de poder, por meio da qual a Coroa portuguesa visava a manter os
judeus e suas riquezas no país, ao mesmo tempo em que lhes negava o direito de
praticar sua religião. Conciliava seus interesses de poder e dinheiro enquanto
tentava apaziguar o anti-semitismo dos reis da Espanha, que pressionava sobre a
Coroa portuguesa, bem como o da plebe das ruas de Lisboa. Embora de graves
conseqüências para a cultura (e a economia) de Portugal, a manobra não impediu
a participação de capitalistas judeus nas incursões lusas ao mar. Os judeus
estarão presentes na criação do Brasil, como financiadores de viagens, técnicos
ou povoadores (degredados), do mesmo modo que, em época anterior, e sem que
deles se exigisse uma falsa escolha religiosa, já haviam estado com D. Henrique
em suas empreitadas navegadoras. Não serviu, porém, a farsa da criação dos
"cristãos-novos" para impedir as perseguições, pois os judeus, depois de
obrigados a renegar sua religião em público, foram acusados de praticá-la às
escondidas. Em uma trágica manhã de abril de 1506 foram chacinados mais de
quinhentos judeus, nas praças e vielas de Lisboa.
Por esta e outras razões, em Portugal, a figura do empresário, sobre a qual
podiam sempre pesar suspeitas de heresia como "cristão-novo", e, embora
participante, acabou enfraquecida e subordinada à Coroa, que detinha o controle
dos Descobrimentos. Além da intolerância religiosa, havia também a ganância
aventureira de riquezas e poder por parte da nobreza e uma mentalidade medieval
incapaz de entender a iniciativa que visa ao lucro. Junte-se a isso que, nas
Índias e também no Brasil, "o desdém pelo trabalho manual [constituiu] o ideal
até dos vilãos, com os quais, aliás, se confundiam pela miséria econômica os
fidalgos pobres, reduzidos a ínfimos patrimônios ou a uma vida de expedientes".
Desse modo, as atividades capitalistas e artesanais tendiam a ser monopolizadas
por grupos relativamente fechados ' além dos "cristãos-novos", os estrangeiros,
sobretudo ingleses, franceses e holandeses ' que legal ou ilegalmente faziam de
Lisboa ou de Sevilha boa parte do comércio externo peninsular (Idem, p. 11).
Foram colocados sob suspeição os indivíduos e as atividades que em Portugal
poderiam constituir o germe de uma verdadeira burguesia comercial. Boa parte
desses indivíduos, especialmente os judeus, transferiu-se para a Holanda, onde
havia liberdade para que pudessem atuar. Só nos séculos XVII e XVIII, a Coroa
portuguesa buscou atraí-los, primeiro por meio de iniciativas de Antonio
Vieira, e depois do Marquês de Pombal, arquiinimigo dos jesuítas. Mas já era
tarde. Portugal, como depois a Espanha, que haviam inaugurado o Novo Mundo,
estavam condenados a permanecer à margem, países menores, entrepostos da nova
etapa comercial do desenvolvimento europeu.
A grandeza ibérica vinha, pois, acompanhada dos vícios que haveriam de perdê-
la. E nos países ibero-americanos algo desses vícios de origem permaneceriam
por muito tempo como um entrave cultural para o desenvolvimento, mesmo depois
de desaparecido, ou bastante atenuado, o motivo religioso inicial. Mas foi essa
mescla de cobiça, espírito guerreiro, misticismo e impulsos de centralização do
poder que impulsionou os Descobrimentos e a colonização da América ibérica.
Para o bem e para o mal, foi essa mistura explosiva e contraditória que levou
Portugal e Espanha a uma fase de ressonância universal e, com seus vícios e
virtudes, impulsionou a construção dos países ibéricos como individualidades
culturais e, séculos depois, como nações.
Olhares de fora: o religioso e o profano
Os europeus chegaram, portanto, ao Novo Mundo com uma mistura de visões
religiosas e profanas. Chegaram com o olhar dividido entre o deslumbramento com
as novas gentes e as novas terras e a preparação da conquista. Desde o primeiro
momento, um olhar dividido entre a conquista do mundo para Deus e a das terras
e das gentes para o comércio e para o poder. Enquanto, por religião, buscavam a
conquista das gentes, traziam projetos que, em sentido lato, se poderiam dizer
de "incorporação social" (Morse, 1988), os quais, aliás, permanecerão, ao longo
dos séculos vindouros, como base dos temas formadores da cultura dos países que
serão capazes de formar. Não é surpreendente, portanto, que estivessem desde o
inicio preocupados em compreender, bem ou mal, as sociedades que encontravam.
Em alguns casos mais mal do que bem, porque muitas das sociedades que
encontraram foram simplesmente destruídas, como ocorreu com algumas populações
indígenas do Caribe e, em ampla medida, com os astecas e os incas.
Já que com este olhar, religioso e profano, dividido e distante, não podiam
reconhecer como tais os povos que encontravam pelo caminho, preocuparam-se
também em criar povos, como no caso do Brasil. A imagem de tanta voga no século
XIX de que o Brasil era "um país sem povo" vinha dos primeiros tempos da
colônia. Algo dessa imagem permaneceu na história das idéias brasileiras mesmo
no século XX, na idéia da sociedade "criada" pelo Estado, ou, posteriormente,
na idéia do "país amorfo", cuja sociedade caberia ao Estado organizar.
Religioso e profano, o olhar europeu dos primeiros tempos era o de homens que
chegavam para a conquista, e que se preparavam também para uma violência, sem a
qual, no fim das contas, nenhuma conquista seria possível. Algo deste olhar,
cada vez mais profano, permanece até hoje nos seus herdeiros ibero-americanos
em face de uma obra que se pretendia civilizadora e que, em alguns países, como
no caso do Brasil, ainda não se completou. Uma destruição em relação às
culturas indígenas dos primeiros tempos, no Brasil e em outros países ibero-
americanos, a história tomou o caráter de uma permanente construção, em muitos
aspectos inacabada.
Algumas das idéias que inspiraram esta construção, ou pelo menos algumas das
disposições de espírito que haveriam de lhes dar origem, foram antecipadas
nesta espécie de certidão de nascimento do Brasil que é a Carta de Pero Vaz de
Caminha (1500). Nada de surpreendente, porque vêm essas idéias de antes do
Descobrimento, da colonização das Ilhas do Atlântico ' a Madeira e os Açores '
nas quais, por sua vez, os portugueses copiavam e adaptavam experiências das
cidades italianas em suas saídas ao mar. As experiências nas Ilhas do Atlântico
envolviam, como no Brasil, as capitanias hereditárias, o trabalho escravo e a
produção de açúcar. Funcionaram então como uma espécie de ensaio do que se
haveria de realizar no Brasil: a colonização das Ilhas antecipa até mesmo a
atração inicial exercida pela extração da madeira. Aliás, no tocante à divisão
da terra, o Brasil repete, além da Madeira e demais ilhas do Atlântico, também
experiências de séculos antes, no Algarve, em terras retomadas pelos
portugueses aos mouros.
A Carta é o nosso primeiro documento sobre o encontro, e também o choque, das
culturas. Em Pero Vaz de Caminha e, depois dele, em Américo Vespuccio, na
Relação a Lourenço di Pierfrancesco de Médici (1503), e depois na Lettera a
Solderini, temos as primeiras anotações de um fascínio europeu pelos antigos
habitantes da terra,5 que alimentou a Utopiade Thomas Morus e um célebre
capítulo dos Ensaios de Montaigne, e a partir desses toda uma poderosa linhagem
do pensamento europeu.6 Um fascínio que foi também levado ao ridículo nas
críticas de Rabelais, em 1567, debochando das histórias, algumas delas
aumentadas e outras simplesmente inventadas, que os aventureiros contavam na
Europa, em suas viagens de volta ao Novo Mundo.
No fenômeno da formação dos países ibéricos, da qual o Brasil é parte, os casos
do México e do Peru são extremos. Por isso mesmo, suas origens ajudam a
entender as origens do Brasil. A perspectiva espanhola da pronta localização da
prata e do ouro antecipou o choque das culturas.7 Expressivas desse choque no
México são duas figuras do século XVI, nítidas e, cada qual em seu campo,
exemplares: Hernán Cortez, o conquistador, e Bartolomé de las Casas, o
dominicano, que defendeu os astecas que o outro fizera por dominar a qualquer
preço. No Peru, o conquistador Pizarro, que derrotou Atahualpa e destruiu
Cuzco, a capital Inca, e construiu Lima, a "cidade dos reis". E pouco depois
dele, no tempo, mas contemporâneo nos temas, Garcilazo de la Vega, filho de um
conquistador com uma princesa inca, talvez o primeiro intelectual latino-
americano a descobrir o sentido da mestiçagem. Nesses países da América
espanhola, os choques da cultura européia com as populações indígenas foram
mais nítidos, se não de maiores proporções do que os da América portuguesa.
Nesta, um tempo histórico dilatado e mais lento estendeu a conquista em meio à
colonização já iniciada, e prosseguiu, para além da faixa litorânea, pelo
interior adentro.
No Brasil, ao longo de um período de dois séculos, teremos a plêiade (ou a
turba, se quiserem) dos bandeirantes Fernão Dias, Raposos Tavares, Domingos
Jorge Velho, entre muitos outros. E, em conflito com estes, desde o início, os
jesuítas, entre os quais Manoel da Nóbrega e José de Anchieta, nem sempre
fascinados com as bondades dos índios, mas sempre preocupados com a sua
evangelização. Os conflitos iniciais antecipam o que serão, um século depois,
aqueles entre os quais se destaca a figura extraordinária do Padre Antonio
Vieira. Os sacerdotes empenhados em conquistar almas, mas acusados pelos
povoadores de explorar os índios em beneficio próprio, e os bandeirantes
empenhados em apresar índios, conquistar terras e descobrir as fontes dos
metais preciosos ' os dois grupos foram, de algum modo, apoiados por facções do
poder instalado na metrópole e na colônia.
Em meio a essas turbulências que denunciam as ambigüidades (e debilidades) da
Coroa portuguesa se formou, na colônia dos séculos XVI e XVII, o que chamamos
hoje de território nacional. Um território que Pombal haveria de consolidar no
século XVIII e que os diplomatas do Império e da Primeira República haveriam de
formalizar um século depois. Foi também neste longo período que deitou raízes a
cultura brasileira, a começar pela época de ouro do barroco, primeiramente sob
a influência dos jesuítas, suas igrejas e conventos, que aos poucos se adaptou
às circunstâncias do país e se estendeu até o século XIX. Um barroco de formas
exuberantes e, em muitos casos, de toques mestiços, que, desde o início do
século XX, foi reconhecido pelos intelectuais do país independente como uma das
formas preferenciais de expressão da cultura nacional.
História como construção
Os olhares religiosos e profanos mesclam-se também em outro ponto fundamental.
Com as ex-colônias da Inglaterra, as da Ibéria têm em comum não apenas uma
origem religiosa, mas também o fato de serem "países novos". Todas, em
conjunto, foram no século XVI a novidade da história do mundo, um aspecto de
novidade que as polêmicas religiosas ajudaram a acentuar por meio do tema
fundamental da conquista da humanidade para Deus. Esse aspecto religioso
acentua ainda outro, este no mais das vezes profano, o de que os "países novos"
teriam de peculiar o terem nascido de uma intenção. Ou seja, seriam países que
não estão aí "desde sempre", como se pretendem alguns países do Velho Mundo,
nasceram de uma intenção, ou de intenções.
Anoto, desde logo, à margem, que se tem dado demasiada importância no caso do
Brasil a diferentes formas de se diminuir o sentido dessas intenções iniciais.
Por exemplo, a questão, hoje pouco lembrada entre os historiadores, mas ainda
em voga nos compêndios escolares, de saber se o Brasil foi descoberto "por
acaso". Se os portugueses buscavam o caminho das Índias, no Oriente, como
entender, senão por força dos acasos criados pelos ventos e pelas calmarias,
que tenham chegado por aqui? E, contudo, os historiadores modernos sabem que os
cuidados da velha historiografia com os "acasos" têm menos a ver com as
realidades dos Descobrimentos do que com as habilidades da Coroa portuguesa,
que inflavam mitos que dificultassem a percepção européia dos seus tesouros ou
daquilo que acreditavam serem os seus tesouros. Hoje se sabe que a viagem de
Cabral em 1500 foi, como a chamam os historiadores portugueses modernos, a do
"achamento oficial do Brasil", que já havia sido descoberto, e visitado, em
momentos diferentes por Vicente Pinzon e Duarte Pacheco Pereira.8 Os debates em
torno do "acaso" nasceram dos truques diplomáticos de um pequeno país, que
tomou muito tempo para assegurar em Roma seus direitos de conquista, em
especial diante do forte vizinho espanhol e de seus questionamentos sobre a
linha das Tordesilhas.9
Assim como as colônias inglesas, as ibéricas nasceram, em qualquer hipótese, de
um olhar europeu que se equivocou muitas vezes, a começar por Colombo que
imaginava haver chegado às Índias. Nos muitos equívocos desse olhar, sobram
motivos de deslumbramento com a natureza e com os índios, tanto quanto os
excessos de violência contra a mesma natureza e os mesmos índios. Mas, pelo
menos quando se fala de Portugal e Espanha, nunca foram equívocos bastantes,
pelo menos a partir de meados do XVI, para impedir os países da península de
tentar construir novos países nesta parte do mundo. Com mais rapidez do que se
pensa, Portugal e Espanha passaram rapidamente pela fase das feitorias na
América, e adotaram a estratégia da colonização. No caso de Portugal, uma
estratégia que se tornou obrigatória em face das dúvidas com a Espanha em torno
das Tordesilhas. Diante também da cobiça da França e, depois da Holanda, e dos
corsários de variada origem.
Assim, se a história é sempre uma construção, nos países novos o é mais do que
em qualquer parte. Esses países devem sua existência a um projeto ' algum
projeto ' que tanto pode vir do Estado como da Igreja, no caso do Brasil
especialmente a Companhia de Jesus. Ou que, no caso dos Estados Unidos, pode
vir de movimentos religiosos dissidentes que buscavam novos territórios para
pregar a sua fé. Quaisquer que tenham sido ' e devemos tratar de alguns deles
mais adiante ' esses projetos servem para testemunhar que esses países nasceram
com a história moderna, da qual são parte essencial. O que significa que sua
construção, por caminhos "certos" ou "tortos", tem um compromisso permanente
com a modernidade.
Temas formadores da cultura
Tomou muito tempo para que o olhar de fora, dividido e arrogante, religioso e
guerreiro, se enraizasse nas novas terras. No caso do Brasil, se ao longo de
trezentos anos de colônia e de cem anos de Império, adotamos projetos, no mais
das vezes fomos adotados por eles. Sabemos todos que os conquistadores e os
bandeirantes não eram os "peregrinos". Embora haja muito exagero quando se fala
do desinteresse dos conquistadores e bandeirantes pelas questões religiosas,
assim como quando se fala do desinteresse dos "peregrinos" pelos aspectos
materiais da vida, é certo que aqueles eram, sobretudo, guerreiros que abriram
espaço para os povoadores, assim tornando a colonização possível. Quanto aos
jesuítas que os combatiam, o ensinamento religioso era uma convicção dos
discípulos de Inácio de Loyola, ele próprio um guerreiro dirigindo um exército
de combatentes da fé. Em todo caso, o certo é que os índios eram objeto de uma
evangelização da qual, evidentemente, não podiam ser sujeito.
Os dois grupos de combatentes dos dois primeiros séculos ' de um lado os
jesuítas, de outro os bandeirantes ' tinham algo de comum no ideal da
conquista. "Dilatar a fé e o império" ' o projeto, embora sempre suscetível de
conflitos internos, enfim, era o mesmo. Os jesuítas, diz João Lúcio de Azevedo,
"eram colonizadores; a obra que haviam empreendido tinha caráter temporal, e,
nessa qualidade, somente com os meios temporais se poderia realizar". O que é
confirmado pelo Padre Serafim Leite: "Os jesuítas, pelas condições particulares
da América, não puderam ser o que eram na Ásia, apenas missionários: foram
também colonizadores" (Azevedo, 1922, p. 105).
Tomou muito tempo para que este olhar de fora se tornasse, com as modificações
impostas pelas circunstâncias, um olhar de dentro. Embora subestimado pela
historiografia, e em grande parte esquecido pelas elites, o debate que se
estendeu por dois séculos sobre a questão indígena, e só concluído por decisão
de Pombal na segunda metade do século XVIII, teve para a formação da cultura
brasileira uma importância que será dificilmente exagerada. Quase tão antiga
quanto o debate português sobre a questão dos judeus, a questão indígena
alinha-se entre os temas formadores da cultura do país. Mais lembrado e também
de enorme relevância, o tema do negro atravessa o período colonial e se estende
por todo o século XIX.
Veremos mais adiante que em face desses temas fundamentais se buscou, em mais
de uma circunstância, a orientação dos Evangelhos. Assim como os "peregrinos",
nas colônias americanas, também nos países ibéricos, os missionários ' no
Brasil, em especial os jesuítas ' buscaram sobre eles a palavra de Deus. Mas
esses temas formadores, além das escritas de Deus, dependerão cada vez mais das
escritas profanas.
Os conflitos políticos e ideológicos em torno do índio, do judeu e do negro
acham-se entre os primeiros temas formadores da cultura do Brasil. Ao dizer que
aqueles grupos humanos se ligam aos primeiros temas formadores da cultura
brasileira, não pretendo afirmar que apenas eles tenham presença cultural entre
nós. Pretendo sustentar, porém, que foi em torno desses grupos ' mais
precisamente em torno de sua incorporação cultural ' que surgiram os conflitos
maiores ' sociais, culturais, religiosos e econômicos ' do país em formação. E
que foi em torno das soluções encontradas pela história para a sua integração
que surgiram os perfis culturais conhecidos hoje na cultura brasileira, com sua
capacidade de abrangência e tolerância e também de sua característica
ambigüidade.
Pode-se afirmar que essa dialética de conflito e integração tem amplos e
profundos precedentes na península ibérica, sobretudo em relação aos judeus e
aos árabes, ambos os grupos de enorme influência cultural em Portugal e Espanha
do período da Reconquista. Gilberto Freyre chega a dizer que as populações
moçárabes, as populações cristãs da Ibéria que viveram sob domínio muçulmano e
que sofreram forte influência cultural árabe, "se constituíram no fundo e no
nervo da nacionalidade portuguesa" (Freyre, 2002, p. 231), sobretudo no meio
popular mas também, como os judeus, misturadas em meio aos fidalgos e à
nobreza. Mantidas, porém, por razões religiosas e econômicas, as restrições aos
judeus, predominaram o sangue e as tradições árabes na formação nacional
portuguesa, por meio de uma miscigenação racial e cultural remanescente de
séculos de conflitos e relações de integração. Quando os portugueses começaram
a colonizar o Brasil, achavam-se já diluídos muitos desses velhos conflitos da
Reconquista; muitos descendentes dos mouros encontravam-se amplamente
integrados à nação portuguesa. É assim que a presença dos árabes, que vem desde
a colônia e se estende ao longo da história brasileira, jamais alcançou o
caráter conflituoso que assumiram em momentos diversos as questões em torno de
índios, negros e judeus. Encontrando no Brasil o terreno preparado por uma
antiga miscigenação e pelas tradições lusas de antigas misturas mouriscas, as
influências culturais árabes cresceram a partir das imigrações dos séculos mais
recentes, cujos descendentes são hoje estimados em cerca de dez milhões de
brasileiros. Os árabes de imigração moderna foram absorvidos na cultura
brasileira, com poucos choques, ao modo de outras imigrações recentes, como a
dos italianos, alemães, russos, poloneses etc., ou recentíssimas, como a dos
japoneses e coreanos. Além da presença mais antiga e de suas influências
peninsulares, encontraram, como esses grupos mais recentes, uma cultura
brasileira mais aberta. E pelo menos parte dessa abertura se deve às soluções
(ou meias-soluções) criadas em torno dos conflitos, estes especificamente
brasileiros, criados à volta do índio, do negro e do judeu.
É de fins do século XIX o tema da pobreza, também de caráter conflituoso, até
hoje presente na cultura e na política brasileiras. Assim como me refiro
àqueles temas ' do índio, do negro, do judeu ' haveria que falar aqui também do
tema do pobre. Com o acréscimo de que me refiro sempre ao tema, ou seja, à
tomada de consciência de uma realidade por parte das elites, pois a realidade
da pobreza como tal, e possivelmente a sua consciência por parte dos pobres,
existem desde o início, desde as origens do país. Emergindo no meio das elites
em fins do século XIX e tornando-se dominante no Brasil do século XX, o tema do
pobre, mais modernamente o tema da desigualdade social, tornou-se obrigatório
neste país de extremas desigualdades.
Costuma-se pensar que esses temas formadores se sucedem de modo cronológico,
como são habitualmente apresentados nos livros didáticos de história. Somos
levados a pensar que se apresentam na história real um em seguida ao outro, e
que seriam resolvidos na seqüência linear da formação do país e da cultura
nacional. Na verdade da história real, porém, nem se apresentam em sucessão,
nem se resolvem da maneira linear. Estão aí desde os primeiros tempos e se
entrelaçam como os grandes temas da nossa construção nacional. A única
seqüência da qual se pode legitimamente falar é a da referência a este ou
àquele tema como dominante no cenário político deste ou daquele período. O dos
judeus, na passagem do século XV para o XVI. O dos índios, no século XVI até o
XVII. O dos negros no século XIX. O da desigualdade, dominante a partir das
primeiras décadas do século XX.
Além disso, a passagem do debate de um tema ao seguinte não significa que este
seja realmente novo nem que o anterior tenha sido inteiramente resolvido. Não é
demais acrescentar que, em face das questões de como incorporar (ou excluir) o
judeu, o índio e o negro, a cultura lusa dos primeiros séculos nos legou uma
ambigüidade em torno do tema da legitimidade da iniciativa que visa ao lucro
(ou também ao êxito), como em torno do valor do trabalhofísico, prejudicando a
valorização do trabalho em geral, até hoje persistentes na cultura
brasileira.Não obstante a tremenda capacidade de trabalho físico evidenciada
pelos negros no decorrer dos séculos, a valorização do trabalho só encontrará
lugar em nossa cultura depois das migrações européias de fins do século XIX.
A questão do tráfico e da escravização dos negros é, se nos prendermos aos
limites de uma história cujas preliminares estão no século XIV, quase tão
antiga quanto a dos judeus. Começa antes do tema indígena, antes mesmo que se
soubesse da existência deste Novo Mundo, antes que se soubesse que havia índios
nesta parte do mundo. A desigualdade, se é um tema da passagem do século XIX ao
século XX, nesse sentido o mais "moderno", remete também a um passado distante.
Se o assunto referente aos pobres é recente, os pobres são muito antigos. Não
se pode deixar de mencionar, embora tenha que ser feito de passagem, a "questão
protestante", ausente na Espanha e em Portugal como em suas colônias,
diferentemente da França e da Inglaterra e suas colônias. É que nos países
ibéricos, os protestantes nunca foram numericamente significativos. Nos países
ibero-americanos, apenas nas últimas décadas do século XX adquiriram
importância, com o crescimento das diversas denominações evangélicas.
Como são de certo modo coetâneos, os temas formadores que mencionei se tornaram
decisivos para esclarecer os horizontes culturais que contribuíram para definir
a cultura ibero-americana. Daí a necessidade de mencioná-los nessas páginas.
Por exemplo, é motivo de espanto para o leitor atual, saber que a Igreja, que
tanto se empenhou pela libertação dos índios, tenha aceitado a escravização dos
negros. Um espanto que cresce quando nos lembramos que acompanharam o
pensamento dominante na época mesmo figuras notavelmente combativas como
Bartolomé de las Casas e, um século depois, Antonio Vieira. Não diminui em
muito a surpresa saber que Las Casas fixou, ao fim da vida, uma posição contra
a escravidão dos negros e que Vieira tenha registrado seu protesto contra os
excessos de violência contra os escravos, pois permanece em ambos a aceitação
dos critérios da época, que, aliás, são os mesmos dos humanistas. Empenhados
como estavam em restabelecer a memória dos clássicos da Antigüidade, poderiam
os humanistas ignorar que Aristóteles considerava a escravidão um fenômeno
natural? O certo é que a primeira imagem da modernidade, tanto a da Igreja como
a dos humanistas, não incluía os negros. Mesmo a Utopia, de Thomas Morus, que
criticava duramente as desigualdades da sociedade européia de seu tempo,
permitia a escravidão.
Na Lisboa dos séculos XIV e XV, já havia negros submetidos à escravidão, uma
prática que, com referência aos negros, era admitida nos usos da Europa
medieval, portanto de longas raízes até assumir a forma da escravidão moderna,
nos Estados Unidos, Brasil, Cuba etc. À parte os argumentos da Antigüidade
resgatados pelo Renascimento, a prática de conquistar e fazer escravos era
contemporânea dos navegadores. E antes mesmo destes já se achava nos usos das
guerras da Reconquista, neste caso, porém, limitada aos mouros. Como sabemos,
um dos motivos das guerras medievais era uma noção de honra, que não excluía
nem o saque nem a escravização dos vencidos. Assim, o tráfico com escravos
negros surgiu muito cedo, quase ao mesmo tempo em que os portugueses começaram
a abrir nos mares os caminhos para a África, e cedo se percebeu que era dos
mais lucrativos. Como diz um historiador português, D. Henrique foi o "primeiro
dos nossos negreiros".
Desigualdade natural
Foi assim que, inspirada nas interpretações da Antigüidade e dos Evangelhos, e
também nos usos e costumes da última Idade Média, a cultura brasileira nasceu
apoiada na premissa de uma desigualdade que se entendia como natural. O
raciocínio, apoiado no caso do Brasil, pode se estender a países ibero-
americanos, como Cuba, de grande importação de negros, sem excluir mesmo países
como o México e o Peru, com a consideração particular de que são países de
grandes populações indígenas. Por razões diversas a desigualdade, herdada do
medievalismo ibérico, encontrou nos ambientes da vida ibero-americana suas
razões para ser reconhecida como natural, intrínseca ao padrão de sociedade
hierárquica que os países ibero-americanos chegaram a ser. O caso do Brasil tem
nisso, porém, algo de específico e, talvez, mais definido.
Em termos gerais, quando falamos de "desigualdade" não queremos apenas dizer
"diferença", mas uma diferença situada em alguma hierarquia, de riqueza, de
prestigio, ou de poder. Fazemos referência a uma relação de domínio (ou de
autoridade), relação de "superior" a "inferior" (ou vice-versa), qualquer que
seja o sentido social que lhe atribua. Assim, a igualdade não significa
necessariamente uniformidade, pode comportar diferenças. É o que ocorre nas
sociedades pluralistas, modernas e democráticas, onde se reconhecem diferenças
entre indivíduos e cidadãos que são, em princípio, iguais. De acordo com as
mesmas premissas, pode haver também uma igualdade de pessoas socialmente
desiguais, por exemplo, nas sociedades medievais, a igualdade dos cristãos. Ou
ainda uma igualdade diante de Deus ' "a César o que é de César, a Deus o que é
de Deus" ' que, na decadência do império romano, permitiu reconhecer que os
homens têm alma, e que são iguais diante de Deus.
Era fundamental às doutrinas da Igreja na época dos Descobrimentos reconhecer
que os índios, embora pagãos, tinham alma, devendo por isso ser conquistados
para Deus. Do mesmo modo os negros. A diferença de tratamento nesses dois
casos, lutando a Igreja contra a escravização dos índios ao mesmo tempo em que
aceitava a dos negros, não vinha das interpretações teológicas, mas dos usos e
das tradições medievais que consideravam normal a escravidão dos negros,
imposta pela cobiça e pela violência com que o mundo entrava na era moderna.
"Os usos do reino, a tradição da Antigüidade consentiam na escravidão"
(Azevedo, 1922, p. 129).
No impasse entre as doutrinas da Igreja e as tradições da sociedade, os
caminhos tornaram-se sinuosos e propensos ao sofisma. Não faltou em Portugal
dos séculos XIV e XV, como no Brasil dos séculos seguintes, quem dissesse que a
captura dos negros na África para transportá-los à Europa ou à América era um
modo de salvar a sua alma. Argumento semelhante ocorreu também, em alguns
casos, diante do problema da escravização do índio. Na mesma época em que Las
Casas combatia no México, Nóbrega e Anchieta, no Brasil, embora também críticos
dos povoadores, admitiam que a evangelização dos indígenas só seria possível no
quadro da expansão da colonização. E sabiam que naquele momento a colonização
dependia do apresamento dos índios. Foi assim, por formas e caminhos diversos,
que a desigualdade herdada da cultura medieval ibérica encontrou na experiência
ibero-americana suas próprias razões para se consolidar como algo natural.
Na cultura anglo-americana, o mesmo problema da relação entre igualdade e
desigualdade aparece pela outra ponta. Nos Estados Unidos, desde a partida,
assumiu-se a igualdade como natural. Se for assim, como entender a escravidão?
Como entender, depois da escravidão, a virulência do racismo norte-americano?
Gunnar Myrdal (1944), em estudo clássico The negro problem and modern
democracy, diz que o igualitarismo (limitado aos brancos) é uma premissa do
racismo norte-americano. Assim, ao contrário dos ibéricos que, admitindo a
desigualdade como natural, entendiam que os negros tinham alma embora
continuassem escravos, os brancos anglo-americanos só podiam admitir a
escravidão se admitissem, ao mesmo tempo, que o negro se achava fora da
humanidade. Os negros podiam tornar-se escravos não porque assim se salvaria a
sua alma, mas, precisamente ao contrário, porque não teriam alma e, portanto,
não poderiam ser salvos. Podiam tornar-se escravos porque não eram homens. Se o
caráter virulento do racismo anglo-americano tem uma premissa igualitária, as
ambigüidades do racismo ibero-americano ' em especial, o brasileiro ' se apóiam
na premissa de uma desigualdade que a nossa cultura admite como natural.
Para uma tradição como a nossa, de raiz medieval, todos os homens têm alma,
pertencem à mesma humanidade criada por Deus e são reconhecidos como Seus
filhos. Mas cumprem funções diferentes na "sociedade cristã". São iguais diante
de Deus, mas desiguais no mundo dos homens, no qual Deus lhes conferiu funções
desiguais, não apenas diferentes, em face dos brancos. Daí que a escravidão dos
negros não apenas seria possível, mas até justificável: de outro modo,
continuariam como pagãos, nas selvas africanas, perdidos para Deus. Trazê-los
para a América, mesmo à custa de fazê-los escravos, seria um modo de incorporá-
los ao povo de Deus. Uma diferença de concepção que repercute sobre a natureza
do racismo: porque são também filhos de Deus não devem os escravos ser tratados
com brutalidade, um ponto de honra do combate dos jesuítas. Embora possam ser
vistos como "coisa" no campo do direito, não devem ser tratados como "coisa" no
campo das relações humanas. Esta ambigüidade inibiu, no Império, a elaboração
do Código Civil, que como tal exigiria o reconhecimento da universalidade dos
direitos, o que não era possível, pois havia escravos. De outra parte, não se
quis elaborar um Código Negro, como nos Estados Unidos, uma legislação à parte
para os escravos (Alonso, 2002, p. 58).
Numa sociedade que assim interioriza a desigualdade, o reconhecimento da
igualdade não poderia vir da própria sociedade. Teria que vir de fora ' do
Estado, da religião, ou da influência de outros países. É assim que num
primeiro momento, o reconhecimento da igualdade dos índios (no sentido de que
não poderiam ser escravizados), veio em primeiro lugar da Igreja e da
evangelização. A seguir, nos momentos mais decisivos da história de Portugal e
do Brasil, tais influências de sentido igualitário vieram do Estado. Não por
acaso um Estado em crescimento, como ocorreu com Pombal e, tempos depois, no
Brasil, com Pedro II, e, ainda mais tarde, com Getúlio Vargas. Sempre em
momentos em que o Estado que se destacou da espontaneidade da vida social e a
ela se opôs, mesmo que por um curto período.
No estilo do despotismo ilustrado, Pombal impôs a liberdade dos índios aos
povoadores que os escravizavam, e também aos jesuítas, que os defendiam, mas
que ofereciam uma face de insubmissão ao Estado, com o apoio da velha nobreza
portuguesa. Pombal incluiu a liberdade dos índios na primeira grande tentativa
de reforma intelectual e cultural ocorrida nos tempos modernos em Portugal, com
conseqüências sobre a unidade territorial do Brasil e sua independência. A
abolição da escravatura, no Brasil, teve que esperar mais de um século para que
outras decisões começassem a criar, lentamente, as premissas de uma sociedade
de trabalho livre. Nos dois casos, a iniciativa coube ao Estado, que embora
influenciado pela mentalidade cultural dominante conseguiu agir como se
estivesse fora da sociedade, introduzindo novos vetores que, no longo prazo,
haveriam de modificá-la.
As idéias e as circunstâncias
Assim como as escritas de Deus se combinaram (e, às vezes, se chocaram) com as
escritas profanas da tradição, também as idéias que orientaram a construção do
país não tinham como evitar as circunstâncias nas quais deveriam atuar. Falar
de uma história das idéias não supõe uma onipotência das idéias. Assim como
Ortega y Gasset ao falar do homem, também no caso das idéias há que falar das
suas circunstâncias. As idéias formam a cultura de um país no mesmo movimento
em que se deixam surpreender pelas peculiaridades e imprevistos da sociedade em
formação, buscando modos de se adaptar às realidades que encontram no caminho
de sua própria intervenção.
Por exemplo, em alguns dos textos de Anchieta e Nóbrega pode-se perceber a
surpresa em face de uma realidade dos índios que a cultura medieval (e
eclesiástica) desconhecia. Pode-se admitir que os jesuítas conhecessem os
povoadores. Mas ainda assim não deixaram de se surpreender diante de
comportamentos novos, às vezes esdrúxulos ("Não existe pecado abaixo do
Equador", registrou Barleus), impostos por circunstâncias novas para todos. É
neste movimento que se multiplica, se amplia e se aprofunda ao longo da
história, que o olhar de fora que está na origem dos novos países vai se
tornando parte da sua realidade.
O que se diz das idéias e dos homens, se diz da própria sociedade. A eficácia
das idéias que vêm do olhar de fora tem limites, que aparecem mais claramente
na medida em que elas se realizam, contribuindo assim para a formação de uma
sociedade nova. Aliás, quase sempre de um modo surpreendente. Assim como o
peruano Garcilazo de la Vega descobriu, num certo momento, que não era espanhol
nem índio, mas um mestiço, também os portugueses João Ramalho ou Diogo Álvares
(o Caramuru), que foram deixados nas praias da recém-descoberta Terra de Santa
Cruz e aqui formaram família, devem ter tido os seus momentos de surpresa
diante dos seus filhos mestiços, que não eram nem portugueses nem índios, mas
iniciavam linhagens brasileiras. Do mesmo modo, e agora diretamente no campo
dos projetos de colonização, deve ter havido um momento em que, diante do êxito
da economia açucareira de Pernambuco nos séculos XVI e XVII, o antigo modelo
colonial da Madeira tornou-se mera reminiscência. A propósito, no Brasil,
começaram bem cedo, na primeira metade do século XVII, em Pernambuco, nas
circunstâncias da guerra contra os holandeses, os sinais de que uma nova nação
começava a nascer.
Um pensamento nacional
Nas revelações surpreendentes da história, foi aos poucos empalidecendo a
imagem da cópia vinda de fora, embora o novo país houvesse que preservar nas
suas raízes mais profundas algumas das intenções e dos projetos externos que o
tornaram possível. O pensamento nacional surgiu, paradoxalmente, de uma
reflexão sobre aquelas situações e aqueles momentos históricos em que menos
tínhamos de propriamente nacionais. Os exemplos são muitos, como no título do
livro emblemático da Caio Prado Jr., Formação do Brasil contemporâneo '
colônia. Ou, muito antes disso e em chave romântica, na mítica mistura do
português e do índio no Guarani, de José de Alencar. Ou ainda no barroco do
período colonial introduzido pelos jesuítas em suas igrejas e que depois, no
século XX, passa a ser entendido como uma das formas preferenciais da cultura
nacional. É que em todos esses exemplos se há de buscar o elemento de surpresa
que as circunstâncias reservam no Novo Mundo para o conquistador e para o
colonizador.
No Brasil de após a Independência, esse elemento de surpresa apareceu de modo
mais nítido nos choques (e às vezes nos desencantos) enfrentados por uma
mentalidade moderna que haveria de alcançar no Segundo Império (1842-1889) e na
Primeira República (1889-1930) os seus momentos de maior enraizamento no "país
novo". São exemplos, no plano do pensamento e da ação, nomes como os de José
Bonifácio, Joaquim Nabuco e Euclides da Cunha. Também, embora com ênfase que
assumiu no plano da explicação histórica (embora não necessariamente na ação),
uma conotação mais conservadora, os nomes de José de Alencar e, já na
República, Gilberto Freyre e Oliveira Vianna. Todos tiveram em comum a
preocupação em compreender as origens, a mesma preocupação dos historiadores
como Caio Prado Junior, quando escreveu sobre a colônia, e Sérgio Buarque de
Holanda, em especial em Raízes do Brasile Visão do paraíso. É a partir dessa
linhagem de pensadores que se pode, com segurança, afirmar que o olhar de fora
se naturalizou num olhar de dentro, reproduzindo, de maneira nova, os temas
formadores de que falei antes. Maneiras inovadoras de se conceber o país, que
inauguraram novos Descobrimentos do Brasil, embora continue este a carregar as
imagens do passado no qual se formou.
Tanto a renovação como a tradição são partes, sempre presentes, da realidade do
país e do pensamento que busca interpretá-lo. O brilho e a generosidade da obra
política e intelectual de Joaquim Nabuco em fins do século XIX levam-nos às
vezes a esquecer o passado das batalhas da Igreja contra a escravização do
índio e de seu mal-estar em face da escravidão do negro. Levam-nos a esquecer
ainda que a abolição da escravidão do negro, que só se tornou tema nacional nas
últimas décadas do século XIX, já fora proposta, no início daquele século, por
José Bonifácio, um cientista pombalino que as circunstâncias permitiram viesse
a ser o patriarca da Independência do Brasil. Herdeiras da Ilustração e
repercutindo a nova atmosfera criada no mundo pela Revolução Francesa, que ele,
contudo, abominava, as idéias de José Bonifácio levaram oito décadas para se
realizar. Uma lentidão que nos obriga a voltar ainda mais atrás na história, às
raízes da cultura (e da sociedade) brasileira remanescentes dos critérios
sociais e morais da última Idade Média.
Que dizer da cultura e da sociedade do Império, sob um regime político liberal
que durou quase um século e que, contudo, não conseguiu estabelecer, com a
libertação dos negros, alguns dos pressupostos básicos de uma sociedade de
trabalho livre? Ou talvez, em vez de sociedade e cultura, se deveria falar da
férrea necessidade econômica que fazia ver na libertação dos negros a crise da
grande propriedade territorial? Contudo, sabemos que a pressão política maior,
no início contra o tráfico e a seguir contra a escravidão, vinha da Inglaterra,
a grande potência econômica da época. De um modo ou de outro, o fato é que a
abolição da escravatura só chegou depois de um prolongado processo de reformas
graduais. E, como se sabe, não caiu o regime da propriedade da terra, como se
temia. Em vez disso, caiu o Império liberal que, ao promover a abolição, dera
seu último passo de separação da sociedade. Sabe-se, além disso, que depois da
abolição o Brasil continuaria tão senhorial quanto antes, indicação segura de
que algo havia de mais profundo na realidade que se pretendia mudar.
Assim como a resistência da Igreja à escravização dos índios e a decisão de
Pombal, no século XVIII, tornando-os livres, ao mesmo tempo em que acabava com
a distinção entre "cristãos-novos" e "cristãos-velhos", também as decisões do
Império determinando o fim do tráfico de escravos em 1850, e a abolição da
escravatura em 1888, teriam conseqüências na história da cultura e da sociedade
brasileiras. Em nenhum desses casos houve maiores conseqüências econômicas, mas
eles servirão para alargar os horizontes da tolerância racial e cultural. Os
vícios que vêm dos Descobrimentos e da colonização tendentes a reconhecer como
vil o trabalho manual haviam sido reforçados durante quase três séculos pelo
regime escravista. Pelas mesmas razões, os burgueses que se formaram na colônia
e no Império foram incapazes de impor um novo estilo de vida, absorvidos que
foram pelo estilo dominante que associava o poder e a riqueza à nobreza e aos
fidalgos. Foi assim que, na falta de uma nobreza brasileira, criou-se uma por
meio de ampla distribuição de títulos no Império, especialmente no II Reinado.
E, como já disse, a valorização do trabalho livre só virá como conseqüência das
migrações em massa de italianos e alemães, em fins do século XIX. Com
referência aos valores, e como não podia deixar de ser tratando-se de valores,
são mudanças extremamente lentas, num processo que permanece em aberto até nos
dias de hoje.
Na passagem do Império para a República, o mundo, que no dizer de Gilberto
Freyre "o português criou", guardava surpresas maiores. Expressão trágica
destas ' quase sempre em face de realidades muito antigas, mas, ao que parece,
esquecidas ' se pode contemplar na guerra de Canudos, que encontrou em Euclides
da Cunha o seu melhor intérprete. Autêntico representante do positivismo
cientificista e do republicanismo da hora, Euclides da Cunha surpreendeu-se ao
ver que os mestiços, que no sertão guerreavam o poder da República, não eram,
ao contrário do que se supunha, monarquistas que reagiam ao novo regime
republicano, nem tinham qualquer orientação política que se pudesse enquadrar
em critérios contemporâneos. Eram apenas um povo pobre que Euclides e os chefes
militares presentes aos sucessivos combates aprenderam a admirar pela invulgar
capacidade de resistência e de luta. Com Euclides da Cunha, a inteligência
brasileira e as cidades civilizadas mais ou menos civilizadas do litoral
começavam a descobrir um Brasil mais profundo do que podiam imaginar, com
raízes que pareciam perdidas no passado. Eram os pobres do campo, dotados de
uma religiosidade primitiva e embrutecida, que a colonização e a mestiçagem
haviam criado. Inspirada nos ideais modernos, a inteligência brasileira
começava a descobrir, separado dela, um país que não se podia compreender sem a
história de um passado que ainda vive.
É difícil exagerar a importância de Euclides e d'Os sertões, nesta descoberta.
Na falta de um escritor de igual fôlego, uma outra grande guerra popular de
inícios da Primeira República, a do Contestado (1912-1916), envolvendo massas
pobres do sul do país, de escala comparável à de Canudos, só nos últimos anos
vem saindo do esquecimento onde permaneceu durante décadas. E, contudo, nos
dois casos, além da miséria do povo do interior, o que nos surpreende é
encontrar de volta o misticismo que parecia perdido nos Descobrimentos e nos
confrontos dos primeiros séculos. Esmaecido talvez nas elites influenciadas ao
longo do tempo pela Ilustração pombalina, pelo romantismo e pelo positivismo, o
misticismo das origens parecia retornar nas primeiras décadas do século XX.
Agora, porém, no meio das massas pobres.
Identidade como desafio
Se o novo olhar, agora de dentro, passou a redescobrir um velho Brasil, com as
suas antigas antinomias, revelou também a novidade de se constituir numa
indagação sobre a nossa identidade, de modo mais definido do que teria sido
possível no passado, em especial na colônia. Teríamos na tragédia de Canudos o
velho contraste entre civilização e barbárie de que falou Sarmiento para a
Argentina das primeiras décadas do século XIX? Creio que Euclides seria um
Sarmiento quando partiu para o sertão, um intelectual representando a
modernidade republicana contra o "atraso", um convicto antagonista da
"barbárie" sertaneja. O choque com os sertões mudou, porém, seus pontos de
vista. Diferente do Facundo, Os sertões são a comovida descrição da grande
tragédia brasileira da passagem do século XIX para o XX: um país dividido entre
o litoral e o interior, entre uns poucos ricos de umas poucas grandes cidades e
a inumerável e anônima pobreza do interior. No campo do pensamento social,
Euclides transmite ao leitor o sentimento nacional da busca de uma síntese,
como antes dele José Bonifácio, José de Alencar e Joaquim Nabuco.
Teríamos, então, com este emergente pensamento nacional a reposição do velho
tema da desigualdade natural? Sim, mas debaixo de olhos profundamente críticos.
O Brasil ' a começar com os temas dos judeus, dos índios e dos negros ' esteve,
desde sempre, às voltas com problemas de "incorporação social", para uma vez
mais tomar as sugestões de Richard Morse. A partir de Canudos, suas elites
passaram a assumir a incorporação do povo, isto é dos pobres, como o novo
desafio da sua própria construção nacional. Em que pese às muitas formas de
manipulação das massas rurais no "coronelismo" da Primeira República (1889-
1930), como em todo o populismo da Segunda República (1930-1964), a questão de
como entender o povo pobre do interior e das cidades passou a tomar lugar
fundamental no pensamento nacional, ao lado do tema da construção do próprio
Estado nacional.
Sem poder resolver o tema da desigualdade em termos práticos, o pensamento
nacional foi ao menos capaz de começar a dissolver a legitimidade da
desigualdade "natural"; pelo menos no plano político, em que, como vimos, a
emergência dos pobres é fenômeno recentíssimo. A libertação dos escravos, ainda
no Império, ocorreu alguns anos antes do episódio de Canudos. Embora haja
experiências de imigração de trabalhadores europeus já no Primeiro Reinado
(1822-1842), são de fins do século XIX as migrações em massa de trabalhadores
europeus importadas para substituir nas fazendas a mão-de-obra escrava. Embora
anunciada de muitos antes, foi só no inicio do Império que se começou a tomar
consciência de que o Brasil era, para repetir a fórmula consagrada, um "pais
sem povo", passando-se a buscar os caminhos para criá-lo.10 Mais adiante, onde
se apresentava o caso, reconhecia-se dramaticamente a sua existência. Criação e
reconhecimento do povo que, como sempre, viriam dos intelectuais e do Estado,
em qualquer caso de iniciativas de fora da própria sociedade.
A era de Vargas, talvez o último desabrochar das influências pombalinas em
nossa história, foi também o último fruto desta grande seqüência histórica no
decorrer da qual o Brasil conquistou sua problemática identidade. Sob formas
políticas diversas, o que chamamos de era Vargas transcorreu por decênios,
desde os anos de 1930 até os de 1960, incluindo o esforço democratizante e
modernizador de Juscelino Kubitschek (1955-1960) e a grande transição do Brasil
rural para o país urbano e industrial que conhecemos hoje. Um longo período
histórico cujas fases iniciais envolveram, entre seus muitos intérpretes,
figuras como Gilberto Freyre, com sua imagem da sociedade patriarcal e da
mestiçagem, e Oliveira Vianna, que com a sua teoria do amorfismo da sociedade
oferecia ao Estado a justificativa para uma ação organizadora e autoritária,
embora fosse o "autoritarismo instrumental" (ou seja, instrumental para uma
democracia futura), de que fala Wanderley Guilherme. Na mesma linha de
indagações sobre a identidade do país, tivemos na última etapa da era Vargas,
com Juscelino Kubitschek, na virada da década de 1950 para os anos de 1960, as
concepções desenvolvimentistas de autores que se projetam a partir do Instituto
de Estudos Superiores (Iseb), em especial Helio Jaguaribe e Celso Furtado.
As promessas
Trazendo essas anotações até o século XX, observa-se que, não obstante as
diferenças de cultura e de trajetória histórica, o Brasil tem em comum com os
Estados Unidos o fato de serem países de dimensões quase-continentais, uma
grande heterogeneidade racial e cultural e um passado de sociedades
escravistas. Tendo em comum com os países ibero-americanos as origens
culturais, distingue-se deles por haver alcançado, em que pese à
heterogeneidade, aliás, comum a todos, uma unidade cultural de alcance nacional
que fez do Brasil o único país de origem lusa da América. É unido por uma
formação cultural que, além de uma religião dominante e um idioma comum, esteve
sempre vinculada a um processo de crescimento do Estado que, como já assinalado
por Raimundo Faoro em Donos do poder, vem de séculos na história portuguesa. No
que se refere especificamente ao Brasil, essa unidade cultural e estatal tem a
sua história desde que, em meados do século XVII, o pequeno Portugal começou a
se dar conta de que sua grande riqueza era a colônia americana. Depois disso,
resolvidas as últimas pendências em torno da linha das Tordesilhas, Pombal
tratou de unificá-la em meados do século XVIII. No século seguinte, a
preservação da unidade do país, agora independente, passou às mãos de Pedro I e
Pedro II.
As razões culturais e estatais cooperaram para tal unidade em mais de uma
dimensão. A conquista do território não teria sido possível sem a ação dos
bandeirantes e sua preservação teria sido ilusória sem sua ocupação e defesa
pelos povoadores, de que as guerras holandesas são o exemplo mais eloqüente. Já
na colônia, a partir de meados do século XVII e especialmente no século XVIII,
os colonos reconheciam-se como brasileiros; em parte como resultado do que
aprenderam dos jesuítas, em parte por causa das iniciativas de Pombal. Tudo
isso levou a que a unidade cultural do país se antecipasse à sua independência
política. O que significa dizer que os brasileiros chegaram a se reconhecer
como tais antes mesmo de poderem se reconhecer como súditos (ou cidadãos) de um
país independente.
Assim como somente a história do passado permite compreender como este país,
tão grande e diverso, se manteve unido, só a história do presente permitirá
resolver as questões herdadas de seu processo de formação, as quais, em muitos
aspectos, continuam em aberto. Assim como a história permite compreender como a
cultura nacional de um país tão espantosamente desigual favoreceu, no correr do
tempo, a formação de uma cultura aberta, com uma visão bastante tolerante das
diferenças raciais e culturais, caberá à história, que continua em aberto,
diminuir as tremendas desigualdades herdadas. É a mesma história à qual se
juntam idéias e projetos que se sucedem e se superpõem uns aos outros no correr
do tempo, acabando por se enraizarem na terra brasileira, no encontro (e no
choque) com as circunstâncias sobre as quais deveriam atuar. Os temas da origem
continuam presentes: a miscigenação, a tolerância (ou intolerância) racial, a
dialética da desigualdade e da igualdade, a "incorporação social" à qual se
acrescentou nas primeiras décadas do século XX o tema da democracia. Na
verdade, todos esses temas estão nas promessas da origem, nem completamente
realizadas e nem completamente esquecidas. São os compromissos, ainda em curso,
da formação nacional.
Notas
1 "Nunca houve um povo mais seguro de que estava no caminho certo" (cf.
Boorstin, 1958, p. 5).
2 Evidentemente, a referência aos "americanos" em Boorstin é cultural, não
geográfica. Assim também neste ensaio, onde as referências a "americanos",
"anglo-americanos" e "norte-americanos" são intercambiáveis. Para os povos
habitualmente chamados "latino-americanos", prefiro usar a expressão "ibero-
americano", o que evidentemente inclui todos os americanos de origem lusa e
espanhola. E, portanto, também o México, geograficamente norte-americano, assim
como as populações "hispânicas" residindo nos Estados Unidos. A expressão
"latino-americano" seria demasiado abrangente para os fins deste trabalho, por
incluir povos americanos de origem francesa que, contudo, não são aqui
estudados.
3 Não é demais enfatizar a importância do pequeno livro de Morse, tão
descuidado nos Estados Unidos, onde não chegou a ser publicado, não obstante a
nacionalidade norte-americana do autor. Merecidamente festejado no Brasil, as
hipóteses de Morse têm tido entre nós fecunda aplicação em estudos sobre a
história das idéias e da cultura, como por exemplo no brilhante ensaio de Luiz
Jorge Werneck Vianna, "Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Vianna
com Tavares Bastos", 1993.
4 Fuentes, nesta passagem, acompanha Ramiro de Maeztu.
5 Publicada em italiano em 1503, no ano seguinte a Relação saiu na versão
latina com o título Mundus Novus (Veneza, 1504). Cf. Couto, Jorge, 1997, p.
193. A Lettera (1504), dirigida a Pedro Soderini, foi traduzida em latim pelo
cosmógrafo Martim Waldseemuller, originando em 1597 o neologismo América,
criado pelo alemão. Tomas Moro informou-se da primeira feitoria portuguesa em
Vespucio, mencionada na Utopia(Louvain, 1516).
6 Há uma vasta literatura sobre o tema. Quanto aos autores brasileiros, são
obrigatórios Melo Franco (1976) e Buarque de Holanda (1969). O magnífico livro
de Sergio Buarque trata, sobretudo, dos motivos edênicos que acompanharam os
navegadores e os conquistadores em suas empreitadas.
7 A história dos conflitos entre os missionários, em especial Las Casas, e os
conquistadores encontra uma bela descrição em Brading (1991).
8 Diz-se "achamento" daquilo que se sabe existir, mas cuja localização se
desconhece. Depois da viagem de Colombo, já se sabia de terras que os
portugueses imaginavam estivessem a leste da linha das Tordesilhas. Além disso,
antes de Cabral essas terras já teriam sido visitadas por Duarte Pacheco e
Pinzón. Cf. Jorge Couto (1997, p. 182).
9 "A investigação desenvolvida nas últimas décadas pelo comandante Max Justo
Guedes no sentido de interpretar os textos quinhentistas à luz dos
condicionalismos físicos do Atlântico Sul [...], bem como por outros
pesquisadores sobre a topografia e a hidrografia do litoral cabralino, conferiu
bases significativamente mais sólidas à tese da intencionalidade do
descobrimento do Brasil". Cf. Jorge Couto (1997, p. 182). Jaime Cortesão (1940)
tece argumentos em favor de uma "teoria do segredo" do Estado português já na
época de D. Henrique.
10 Um ano antes da Independência, em 1821, saía pela Imprensa da Universidade
de Coimbra a Memória de João Severiano Maciel da Costa, futuro Marquês de
Queluz, sobre a necessidade de abolir a introdução dos escravos africanos no
Brasil: "No Brasil, por efeito do maldito sistema de trabalho por escravos, a
população é composta de maneira que não há uma classe que constitua
verdadeiramente o que se chama povo". Esta observação seria repetida "por Louis
Couty sessenta anos depois, com a mesma verdade, mas sucesso consideravelmente
maior entre os leitores brasileiros". Cf. W. Martins (1992, p. 105).