Gilberto Freyre e a articulação dos níveis micro e macro na sociologia
Introdução
Gilberto Freyre é um dos intérpretes do Brasil mais analisados na ciência
social nacional. É também um dos autores brasileiros mais lidos e debatidos no
exterior. Sobre sua obra, no Brasil, debruçaram-se pesquisadores de renome,
tais como Araújo (1994, 2000 e 2003), Bastos (1995, 1999a, 1999b, 2000, 2002 e
2003), Vianna (2000), Larreta (2003), Giucci (2003), Souza (2001 e 2003) e Vila
Nova (1995a, 1995b, 1995c e 1999), entre outros. Vários aspectos de sua
produção têm sido objeto de investigação. Bastos, por exemplo, tem se destacado
por investigar as raízes ibéricas do pensamento de Freyre, enquanto Vila Nova
procurou mostrar a influência do pensamento norte-americano sobre a obra do
referido autor.
No entanto, mesmo considerando a enorme contribuição desses autores, que, em
inúmeros momentos, chamam a atenção para o papel das biografias na obra de
Freyre, sua concepção sociológica a respeito dos atores sociais, bem como a
articulação do nível da microagência com os processos macrossociais mais amplos
não têm sido tomadas como objeto de pesquisa. Nem também têm sido objeto de
pesquisa os problemas teóricos e metodológicos envolvidos nessa operação de
redução dos processos macrossociais ao nível microssocial, assim como não há
trabalhos, tanto quanto sabemos, acerca do problema reverso que é o da
agregação de biografias diversas para efeito de um fenômeno macrossociológico.1
Dessa forma, como em mais de uma obra Freyre lança mão de exemplos extraídos de
trajetórias individuais para ilustrar a configuração e o desenrolar de um
determinado fenômeno social, podemos delinear o foco deste trabalho: investigar
a construção dos tipos e das trajetórias de vida individuais, sua relação com
os processos macrossociológicos e os problemas de redução e agregação na obra
de Gilberto Freyre.
O problema agência-estrutura, as ligações micro-macro e a obra de Gilberto
Freyre
Pode-se afirmar que o tema da relação agência-estrutura é um problema central
das ciências sociais, especialmente da sociologia. Com efeito, a forma de
entender a relação entre esses dois pólos tem preocupado várias gerações de
pensadores na sociologia. Na literatura clássica, as respostas a essa questão
assumiram perspectivas diferentes nas obras de Émile Durkheim e Karl Marx, de
um lado, e de Max Weber, de outro.
Enquanto os dois primeiros pensadores têm sido identificados, grosso modo, com
o coletivismo metodológico, Weber é vinculado ao individualismo metodológico.
No primeiro caso, apesar de os indivíduos serem os "portadores" da ação, a eles
se atribui pouca importância analítica, uma vez que grupos, classes e
instituições representam a concretude dos fenômenos sociais, estes sim
merecedores da atenção dos sociólogos. Em contrapartida, no caso do
individualismo metodológico, sem que isto signifique abraçar uma visão
atomista, há a crença de que todos os fenômenos sociais, em princípio, podem
ser reduzidos analiticamente ao nível dos indivíduos. O exemplo mais clássico
desse tipo de trabalho é a própria análise desenvolvida por Weber em A ética
protestante e o espírito do capitalismo. Não é preciso aqui detalhar o
argumento weberiano, basta lembrar que esse autor mostra a ligação entre dois
macrofenômenos (a ética protestante e o espírito do capitalismo) pelo exercício
de redução ao nível dos indivíduos, isto é, à experiência psicológica ' sem que
aqui, nunca é demais lembrar, se caia em qualquer psicologismo ' vivida por
indivíduos concretos.
No caso de Gilberto Freyre, muitos argumentam que, por estar interessado no
"homem concreto, de carne e osso",2 sua análise sociológica mostraria uma
"face" mais compreensiva, por dar atenção ao detalhe e à especificidade das
vidas, das culturas, dos espaços geográficos etc. Há, neste tipo de argumento,
a sugestão de que a sociologia de Freyre faria pouco uso de tipologias e
classificações tendo em vista esse "lado mais humano" (cf. Albuquerque, 2000).
Porém, é também nosso objetivo neste trabalho chamar a atenção para o fato de
que a análise que Gilberto Freyre faz dos atores sociais não está desprovida de
categorizações e do uso de tipologias.3
É quase consenso apontar a família como a unidade analítica que percorre a obra
de Gilberto Freyre, o que, aliás, o próprio autor afirma em muitos momentos,
pois, nas palavras de Souza (2003, p. 70), "a família é a unidade básica, dada
a distância do Estado português e de suas instituições, da formação social
brasileira". Isto está admiravelmente posto em Casa-grande & senzala e em
Sobrados e mucambos (cf. Albuquerque, 2000, p. 46; Samara, 2003; Skidmore,
2003, p. 48). Por outro lado, é também igualmente claro que os processos de
institucionalização se dão por intermédio dos indivíduos, vistos por Freyre não
somente como conformados por tal processo, mas também como portadores, no
sentido de serem agentes ativos, dos costumes e dos valores, já que
A pessoa humana, o homem social ou o socius se afirma não só
conservador da herança cultural que lhe é comunicada pela geração
anterior, como assimilador de culturas de outros grupos que entrem em
contato com o seu, e, ainda ' sendo maior sua potencialidade ' um
criador, pelo que acrescente, sozinho ou com poucos outros, à herança
do seu grupo ou à cultura de seu tempo (Freyre, 1957, p. 121; cf.
também pp. 114, 119, 120, 122, 526, 631, 635 e 636, entre outras).
Por isso, qualquer estudioso familiarizado com a obra de Gilberto Freyre sabe
que a análise que ele faz da "história da sociedade patriarcal no Brasil" é
fartamente ilustrada por trajetórias de vida de indivíduos, por assim dizer,
concretos. Skidmore afirma "que Casa-grande & senzala não possuía uma
história ou acontecimentos dramáticos, heróis ou vilões. Na verdade, havia
poucos indivíduos identificáveis em suas seiscentas páginas" (2003, pp. 56-57).
Contudo, se a sociologia histórica de Freyre não é uma narrativa de heróis e
grandes feitos, um processo de exercício teórico-metodológico se inicia
claramente em Sobrados e mucambos e continua, de forma marcante, em Ordem e
progresso (cf. Oliveira, 2003), no qual as trajetórias de vida individuais
ganham relevo na explicação de processos macrossociais. No dizer de um
comentador, Freyre
Articula o homem a sua situação e procura compreendê-lo a partir de
suas vivências [...]. Capta nessas vivências inter-relações,
interações, interferências, complementaridades, oposições,
antagonismos, conflitos que escapam por entre os dedos de tantas
disciplinas encarceradas (Albuquerque, 2000, p. 48).
Com efeito, na descrição e na análise da "decadência do patriarcado rural e
desenvolvimento urbano" ' subtítulo de Sobrados e mucambos, Freyre procura
constantemente, quando considera os fenômenos sociais e os diversos fatores ou
variáveis envolvidos, ilustrá-los por recorrência à vida de indivíduos que ele
conheceu ou que tiveram uma vida intensa e publicamente ligada ao fenômeno
analisado.
Nesta obra, ele levanta a questão em termos puramente teórico-metodológicos:
Para acompanharmos a degradação dos valores menos visíveis,
característicos da poderosa instituição, é que necessitamos de
estudá-la nas suas intimidades mais sutis e esquivas [...]. Elas
precisam de ser estudadas em nós mesmos ou nos nossos avós ' produtos
e reflexos, ao mesmo tempo que animadores, e não apenas portadores,
da instituição. Nas pessoas, e não apenas nas formas impessoais em
que histórica e sociologicamente se objetivou ou materializou o
patriarcado no Brasil (1951b, p. 46).
É nesse sentido que as trajetórias de vida, por exemplo, do Padre Ibiapina, do
"velho" Félix Cavalcanti de Albuquerque Mello, de Joaquim Nabuco, de Oliveira
Lima, entre outros, aparecem constante e recorrentemente para ilustrar
processos macrossociais impessoais, evidenciando a metodologia esboçada por
Freyre na introdução à segunda edição de Sobrados e mucambos. A utilização de
biografias aparece também na análise que Freyre faz, nesta mesma obra, da
relação entre o pai e o filho.
Em relação ao livro Ordem e progresso, esse processo torna-se mais evidente
pela metodologia de "depoimentos pessoais" empregada por Freyre (1959a, pp.
XIX-CLXIX, mais especialmente, pp. LXXXVI-CXVII; 1959b, p. XLIV).
É importante destacar que esse tipo de "história oral" (cf. Faria, 1998, p.
145; Oliveira, 2003, p. 141) não se refere somente a percepções dos atores
sociais entrevistados acerca dos processos sociais por eles vividos, mas também
' ou, talvez, principalmente ' a suas trajetórias de vida, à moda de uma
autobiografia, dado o nível de detalhamento do questionário proposto por
Freyre. Tanto isso é verdade que alguns se recusaram delicadamente a responder
ao questionário com o argumento de que, se o preenchessem, estariam antecipando
as memórias que pretendiam publicar (cf. Freyre, 1959a, p. XLIII). Para Freyre,
a personalidade tem um componente coletivo, ou seja, o agente social expressa,
além de suas características irredutivelmente individuais, a cultura, os
costumes, os valores e a história da sociedade em que viveu. Nesse sentido, o
autor afirma, por exemplo, que seus "apontamentos autobiográficos [são] menos
referentes a Félix, indivíduo isolado..., [e mais] ao Cavalcanti, chefe de
família patriarcal" (1959b, p. CVI, cf. também, 1968b, pp. 51 ss.). A análise
dos processos históricos de mudança social, segundo Freyre, passa
necessariamente pela ação dos agentes sociais, e esta ação só pode ser
capturada pelo método que ele denominou de empático,4 o qual pode ser
sintetizado, nas palavras do autor:
Daí, para a interpretação de uma época, não ser suficiente o analista
dela, desdobrado em intérprete, familiarizar-se com o que no seu
decorrer foram fatos; ou apenas valores-coisas. É preciso que ele se
torne quanto possível íntimo das relações entre essas pessoas e esses
valores; entre as pessoas e os valores imateriais; entre as pessoas e
os símbolos mais característicos da época [...]. Daí ser-lhe
necessário buscar penetrar a realidade social através do estudo
direto de pessoas tomadas isoladamente (biografias) ou em interação
com outras (biografias sociológicas) [...] (1959a, p. XXXII).
Esta interpretação encontra apoio em Vilanova (1999, p. 128) quando afirma que
[...] nisso reside seu [de Freyre] gosto pelo biográfico, sublinhando
na personagem individual o ponto de intersecção das correntes de
pensamento social, político, literário, ressaltando, dialeticamente,
no indivíduo o social, e na dessubjetividade do social o indivíduo
historicamente relevante.
Assim, longe de ser um mero exercício de admiração pelo biografado, Freyre
dedicou parte razoável de sua obra intelectual à reconstrução das vidas de
pessoas por ele consideradas chaves para a compreensão de certos processos
sociais pelos quais o Brasil passou ou cujas autobiografias ou meras anotações
lhe pareceram de extrema importância para compreender os processos
macrossociais.5 Vale lembrar as obras, na verdade poderíamos chamá-las de
extensas introduções, referentes a Vauthier (1960), Oliveira Lima (1968c),
Félix Cavalcanti (1959b), Euclydes da Cunha (1944), entre outros,6 no contexto
de sua postura metodológica:
A pessoa social, ou humana, ou simplesmente pessoa, é o resultado de
processos sociais e de cultura anteriores ao aparecimento do
indivíduo e sobreviventes ao seu desenvolvimento individual ou
puramente físico-químico e biológico no espaço e no tempo (Freyre,
1957, p. 120).
Isto porque, em obra de cunho mais teórico, Freyre, seguindo Hadley Cantril,
aceita a regra teórico-metodológica de que
Não será um simples esforço de empatia projetar-se um indivíduo de
hoje nos motivos de ação e de comportamento de um indivíduo de área e
época diversas da sua, mas um esforço em que a empatia precisará de
ser acompanhada o mais possível de conhecimento dos antecedentes e
valores de cultura que, na pessoa remota ou distante que se procure
estudar sociologicamente ' um Antônio Conselheiro, por exemplo '
tenham se interiorizado se não no seu eu ' o que tenderia a
particularizar todo esforço de compreensão de tal pessoa em
biografias ' no seu "nós" psicocultural e histórico-regional [...].
Seriam considerados, portanto, ao mesmo tempo, "instintos", valores
suscetíveis de interiorização e variação individual e normas do grupo
ou da época inteira. Que todos formam o "nós" de um grupo ou figura
de uma geração que não se avalie a si próprio ' e aja dentro dessa
auto-avaliação ' tendo por ponto de referência as normas de sua
sociedade particular ou de seu tempo (Idem, pp. 514-515).7
No entanto, talvez seja em uma obra relativamente desconhecida no Brasil,
intitulada Contribuição para uma sociologia da biografia (1968b),8 que Freyre
leva a cabo, a nosso ver, uma análise magistral, em meio aos floreios verbais
de que tanto gostava, da interação entre biografia individual e processos
macrossociais.9 Neste trabalho, o autor analisa a vida do capitão-general Luiz
de Albuquerque, governador da província de Mato Grosso no fim do século XVII.
Luiz de Albuquerque, um nobre português, que, tendo se destacado na luta contra
os espanhóis, foi enviado ao Brasil para administrar aquela inóspita província,
que estava ameaçada pelas incursões dos espanhóis. Durante o seu governo, Luiz
de Albuquerque, além de obras notáveis de engenharia (por exemplo, a construção
de fortes com materiais trazidos da Europa em barcas através de rios parcamente
navegáveis), também promoveu festas e saraus e recolheu vasto material sobre a
fauna e a flora do Novo Mundo.
Pois bem: para Freyre, este capitão-general representa um tipo sociológico por
excelência do que ele chama homem luso-tropical. Freyre, então, vasculha as
anotações ' uma espécie de diário ' deixadas por Luiz de Albuquerque. E o
interessante é que antes de empreender a análise, Freyre abre o livro com uma
epígrafe retirada de A imaginação sociológica, de C. Wright Mills: "a
imaginação sociológica [...] nos permite compreender a história e a biografia,
e as relações entre as duas dentro da sociedade".10
No entender de Freyre,
Com esse material [as anotações de Albuquerque], além de
autobiográfico, histórico, supõe o Autor [Freyre] ter reunido, não só
dessa fonte como de arquivos públicos [...], um conjunto de informes
sociològicamente significativos que concorram para uma "autobiografia
colectiva", de tipo como que weberianamente "ideal"..., do homem
português e, neste caso, transformado ' ou em fase aguda de
transformação, como foi a aventura de Luiz de Albuquerque em Mato
Grosso ' em homem luso-tropical (1968b, p. 29; cf. também p. 97).
No entanto, Freyre, além de falar em "tipo como que weberianamente 'ideal'",
refere-se também a Luiz de Albuquerque como um tipo
[...] simbólico e, por conseguinte, como indivíduo que, pelos seus
característicos de personalidade e pelos seus actos e seu
comportamento durante o período de sua existência mais històricamente
significativo [...], contribuiu para a ampliação de uma autobiografia
colectiva antes dele já em desenvolvimento: a da transformação, no
espaço e no tempo, do homem apenas português em homem luso-tropical
(Idem, p. 49; cf. também pp. 53, 72-73).
Nesse sentido, Freyre considera ser Luiz de Albuquerque um tipo sociológico
privilegiado para a análise do fenômeno macrossocial do luso-tropicalismo, pois
que o capitão-general representava, ao mesmo tempo, um Albuquerque; um hispano
ou ibérico; um português fidalgo, católico e ' contradição ' pombalino; um
oficial-engenheiro do Exército português etc. (Idem, p. 54). No que ele
acrescenta que o seu estudo deste oficial português
[...] pretende sugerir de Luiz que ele teria sido parte de um
processo històricamente sociológico ou sociològicamente histórico, em
que a sua personalidade teria funcionado, repetindo outras do mesmo
tipo: a de português fidalgo em acção construtiva no trópico (Idem,
p. 99).
Ou, ainda, quando ele reafirma, de forma mais clara, adiante:
É talvez o que mais se deva distinguir na personalidade e na acção
que Luiz desenvolveria [...]: o facto de nessa personalidade e nessa
acção terem-se juntado a constantes de português velho assimilações
de técnicas e saberes norte-europeus, novos e até novíssimos, por ele
postos a serviço de vasta empresa luso-tropical, iniciada sob a mesma
congregação de actividades: a militar, completada pela técnica; a
religiosa, completada pela científica; a intuitiva, pela racional
(Idem, p. 127).
Micro e macro na sociologia: individualismo metodológico, redução e
superveniência
A discussão que vimos empreendendo permite, agora, fazer uma relação com um
tema aparentemente distante das preocupações freyrianas: a articulação entre os
níveis micro e macro da explicação social. Em que medida podemos supor que
existe, em Gilberto Freyre, um tipo de explicação dos fenômenos sociais que
está relacionado a esse problema metodológico?
Podemos partir da perspectiva de um posicionamento metodologicamente
individualista. O individualismo metodológico deve ser compreendido aqui em sua
vertente explicativa, ou seja, uma forma de reducionismo, uma injunção para
explicar fenômenos sociais complexos em termos de seus componentes individuais,
tanto quanto a biologia tenta explicar os fenômenos celulares em termos dos
seus componentes moleculares (Elster, 1983).
Este tipo de reducionismo levar-nos-ia a explicar fenômenos complexos de forma
simples. O reducionismo, portanto, seria a mais importante estratégia da
ciência, tendo levado ao surgimento de disciplinas como a biologia molecular e
a físico-química. No entanto, no âmbito das ciências sociais, é preciso
concordar com Jon Elster e admitir que estamos longe de uma psicologia social
ou de uma sociologia psicológica que tenha conseguido efetuar uma redução
completa. Não haveria objeções a essa redução, mesmo que, contemporaneamente,
ela só possa ser parcial (idem).11 Ressalte-se que esse projeto reducionista
está em consonância com a posição de Donald Davidson (1980), qual seja, de que
não devemos buscar a tradução de estados mentais dos indivíduos em termos de
seus estados cerebrais. O que consideramos possível nas ciências sociais é a
redução dos fenômenos sociais aos seus componentes individuais e/ou
psicológicos. Mas, de acordo com Little (1991), pelo menos duas objeções podem
ser levantadas contra projetos radicais de redução:
* A filosofia da ciência contemporânea reconhece que em várias áreas da
ciência o reducionismo não é uma exigência factível, pois existem
dificuldades para a obtenção de leis no nível exigido pela estratégia
reducionista.
* Argumentos pragmáticos asseveram que as explicações nos níveis mais altos
da "organização" podem ser, muitas vezes, melhores do que aquelas dos
níveis inferiores, quando as explicações dos níveis superiores estão em
correspondência com regularidades empíricas nesse nível (e não nos
inferiores) ou quando a explicação nos níveis mais baixos implica
dificuldades e custos computacionais tão elevados que se tornam
obstáculos tanto à explicação como à predição.
Nessa mesma linha, Garfinkel e Papineau (apud Bhargava, 1992) argumentam que os
objetos da explicação macro e micro são diferentes. O princípio da
microrredução ' para cada objeto existem duas explicações, uma reduzida à outra
' não é possível porque resultaria em explicações não do mesmo objeto, mas de
dois objetos completamente separados. Teríamos, portanto, duas explicações
irredutíveis, e a microrredução falharia. Esses autores não negam que os
objetos têm microexplicações ou microfundamentos, mas defendem que as
explicações no nível micro constroem seus objetos de forma diferente, não
competindo assim com as explicações no nível macro. As microexplicações seriam
incapazes, portanto, de ameaçar a autonomia das macroexplicações.
Bhargava (1992) chega a afirmar que uma visão pragmática nos mostra que uma
explicação que postula uma relação entre fatos existentes completamente
independentes dos indivíduos que os analisam não existe. A explicação tem um
componente do qual não se pode escapar: é construída com propósitos epistêmicos
específicos.
O argumento pragmático afirma que tanto o não individualista quanto o
individualista têm razão ao afirmar que as explicações causais são
indispensáveis.
Um outro tópico de especial relevância no debate sobre o Individualismo
Metodológico, como projeto de redução, é a questão posta por Bhargava a
respeito de indivíduos típicos ou efetivos (particulares) como unidades de
redução de fenômenos sociais típicos ou efetivos.
Esse autor defende a idéia de que reduções devem envolver indivíduos típicos,
não qualquer conjunto de indivíduos que, em um momento qualquer, participam da
construção de uma entidade social em questão. Todas as microrreduções envolvem
entidades típicas em diferentes níveis de generalidade e poderiam não só
envolver quaisquer entidades particulares que, em um determinado momento,
acabam constituindo a macroentidade. Uma explicação em termos de tais entidades
particulares, chamada de microexplicação, pode ser válida, mas não é uma
microrredução.
Segundo Bhargava, a microrredução deve encerrar uma explicação em termos de
indivíduos que tipicamente conformam um fenômeno social típico e não envolve a
explicação de entidades sociais particulares.
Tomemos um exemplo no campo das ciências naturais: a relação água-H2O. Parte-se
do suposto de que existem diferenças entre amostras específicas e amostras
típicas de água. Qualquer amostra particular de água contém um grande número de
impurezas. Então, uma amostra particular de água nunca poderá ser identificada
com os constituintes "originais" da água. Se, analogamente, imaginamos todos os
atributos contingentes dos indivíduos, um grande número de "impurezas" também
ocorrerá. Então, a redução da entidade social para esses indivíduos efetivos
poderá não funcionar nem ser desejável.
Uma objeção plausível à discussão realizada logo acima é que, no mundo social,
não existem dois indivíduos iguais, o que tornaria a redução, através de
elementos típicos, aparentemente, problemática. Em outros termos, os
componentes psicológicos dos indivíduos podem variar de uma forma que não seria
captada pela atribuição de elementos psicológicos típicos (os microcomponentes)
a eles. Assim, nas ciências sociais, esta diferença pode ser significativa,
pois a substituição dos atributos "encontrados" pelos típicos pode mudar a
identidade de um indivíduo humano. Haveria diferenças até entre um conjunto de
propriedades típicas e todas as propriedades, as quais apenas de modo
contingente pertencem a indivíduos.
Finalmente, há uma questão que pode ser derivada da obra de Alan Ryan (1977).
De acordo com este autor, não podemos sustentar a idéia de que a verdade dos
enunciados sociológicos depende da verdade dos enunciados psicológicos. Segundo
Ryan, "o fato de que certas espécies de generalização sociológica não seriam
verdadeiras caso não houvesse várias verdades correspondentes da psicologia,
simplesmente não pode mostrar que o significado de uma determinada proposição é
idêntico ao de outra" (1977, p. 242). Suponha-se que um enunciado sociológico
holístico tenha o propósito de que um sistema capitalista necessite de uma
estrutura normativa adequadamente imposta de atitudes universalistas orientadas
para o empreendimento econômico, e que a existência do capitalismo nos Estados
Unidos possa ser explicada em termos dessa necessidade do sistema satisfazer-
se. As generalizações psicológicas correspondentes a tal explicação não fariam
menção a coisas tais como as necessidades do sistema, mas presumivelmente
referir-se-iam à impossibilidade do indivíduo ter a disposição de fazer coisas,
essenciais ao comportamento capitalista, a menos que ele tenha também as várias
finalidades e objetivos em que se resumem seus valores universais orientados
para o empreendimento. Segundo Ryan, "a verdade sociológica, se é que existe,
reside nas verdades psicológicas, se é que existem, sem lhes ser idêntica"
(Idem, ibidem).
A posição defendida por Ryan parece aproximar-se do conceito de
"superveniência", proposto por Little (1991). A idéia deste autor é que
fenômenos sociais têm superveniência sobre as ações e as crenças individuais,
permitindo-nos absorver a exigência de que os fenômenos sociais são
completamente dependentes dos conjuntos de indivíduos, sem os perigos da
redução radical. Ao contrário da tese radical, podemos conviver com o fato de
que os fenômenos sociais têm superveniência sobre os fenômenos individuais, mas
isto não implica que os conceitos e as explicações sociais necessitem de
redução a conceitos e explicações no nível individual, que transformem em
exigência metodológica a redução, que é uma estratégia analítica, mas não
exclusiva.
Essa breve discussão sobre o individualismo metodológico ' a redução, suas
possibilidades e seus inconvenientes ' deve ser conectada com a obra de
Gilberto Freyre. É certo que sua obra é pródiga em utilizar as trajetórias de
indivíduos concretos para ilustrar processos de mudança social: políticos,
proprietários rurais, médicos, advogados, padres, donas de casa etc. são
elementos constituintes da narrativa analítica freyriana. Assim, a questão
central que se anuncia é: Em que medida a utilização de biografias e de
trajetórias de vida individuais insinua uma posição metodologicamente
individualista ou mesmo um projeto de redução? Ou haverá, meramente, a
descrição de processos sociais "ilustrados" por trajetórias individuais, o que
configuraria a aproximação com a idéia de superveniência proposta por Little? A
utilização de indivíduos históricos concretos permite a afirmação de que a obra
de Freyre tem a preocupação de fundamentar, no nível da ação individual,
processos sociais mais amplos?
Tais questões servirão como referência para o desenvolvimento da análise que
faremos de parte da obra de Gilberto Freyre.
Os fenômenos macrossociais nas biografias em Gilberto Freyre
A análise sociológica de Freyre é pautada por uma recorrente operação
metodológica, qual seja, a articulação dos processos sociais mais gerais com a
vida concreta de alguns personagens da história brasileira. Ora ele invoca a
vida de Joaquim Nabuco, ora a do Pe. Ibiapina, ora a de personagens diversos.
Um dos fenômenos macrossociais analisados por Freyre em Sobrados e mucambos ' e
que se anuncia no subtítulo da obra ' é o da decadência do patriarcado rural.
Com o crescente processo de diferenciação social da sociedade brasileira,
Freyre mostra como lentamente o patriarcado rural brasileiro vai se
desmoronando, ao mesmo tempo em que ocorre a emergência da sociedade urbana.
Muitos dos patriarcas rurais se mudam do campo para a cidade e, simbolicamente,
há a crescente substituição da casa-grande pelo sobrado urbano. Esse processo
ocorre seja pelas possibilidades de consumo e pelos acontecimentos mundanos
existentes nas cidades, em contraposição à vida monótona no campo, seja pela
decadência econômica desta classe social. Embora longa, vale a pena reproduzir
a seguinte passagem:
Já o pai de Ibiapina rebelara-se contra a decisão da família de fazê-
lo padre, fugindo com uma moça [...] nas vésperas de partir de Sobral
para o seminário de Olinda. Desintegração do patriarcado.
Enfraquecimento do poder dos patriarcas. Rebelião dos filhos contra
os pais, ao mesmo tempo que das mulheres contra os homens, dos
indivíduos contra as famílias, dos súditos contra os reis. O que
indica que, na história de uma família ou de uma personalidade
característica, se resume muitas vezes a história de uma sociedade se
procurarmos considerá-la e interpretá-la não só econômica como
cultural e psicologicamente [...]. Foi, aliás, o que o sr. Diogo de
Melo Meneses e eu esboçamos na seleção de material [...] que
constitui o livro de memórias do velho Félix Cavalcanti de
Albuquerque [...]. Valendo-nos principalmente de relíquias e
apontamentos de família, procuramos resumir a vida de um indivíduo
nascido menino de engenho, opulento engenho Jundiá ' mas que as
circunstâncias degradaram em morador de casa de sítio e de sobrado de
aluguel; e em patriarca decadente, forçado, para conservar o
prestígio do nome de família, a empregar os filhos bacharéis na
Alfândega e a tolerar filhas, professoras de meninos (Freyre, 1951b,
pp. 95-96, grifos nossos).
Freyre trata de um processo macrossociológico extremamente complexo dado o
número ' inferimos ' de variáveis envolvidas. Note-se que é o próprio Freyre
que, teórica e metodologicamente, aumenta a complexidade do problema ao chamar
a atenção do leitor para os aspectos culturais e psicológicos, além dos fatores
econômicos, envolvidos. Mesmo assim, sua análise vai no sentido de passar
direta e imediatamente desse nível mais geral para a esfera da vida concreta: a
do velho Félix Cavalcanti. Nesse sentido, parece haver a crença de que
indivíduos concretos ' não abstratos ou típicos ' são portadores dos processos
sociais. Em outras palavras, o processo social mais geral e, de certa forma,
abstrato, que é a decadência do patriarcado rural, revela-se em sua inteireza
na vida do patriarca decadente que foi o velho Félix. A transposição do nível
macro para o nível micro é direta, sem intermediações. Porém, há de se atentar
para o fato de que Freyre faz uma análise à parte de outros fenômenos sociais
que, na realidade, estão subordinados ao processo macrossocial. Afirma nosso
autor que:
O regime de economia privada dos sobrados, em que se prolongou quanto
pôde a antiga economia autônoma, patriarcal das casas-grandes, fez do
problema do abastecimento de víveres e de alimentação das famílias
ricas, um problema de solução doméstica ou particular [...] [: foi] o
caso de Félix Cavalcanti de Albuquerque (Idem, p. 363).
Embora formalmente subordinada ao processo de decadência da economia baseada no
patriarcalismo rural, a questão do abastecimento de víveres é tratada como um
fenômeno em si. Se pensarmos no esquema
Processo Macrossocial ® Processo Mesossocial ® Processo Microssocial
veremos que Freyre não trabalha dentro dessa lógica, mas de forma que os dois
níveis de maior abrangência analítica, independentes entre si, são conectados
às biografias de personagens concretos. A vida do velho Félix ilustra
simultaneamente os processos meso e macrossociais sem que façam parte de uma
operação teórico-metodológica, como ilustrado no fluxo macro-meso-micro
aludido.
A mesma operação teórico-metodológica é feita por Freyre na análise de certos
fenômenos sociais em que utiliza o exemplo da vida de Joaquim Nabuco para
"provar" sua tese.
Lembremos aqui uma das mais interessantes hipóteses de Freyre com relação à
formação da família brasileira: a de que, no contexto do patriarcalismo rural,
o patriarca se posicionava em franca oposição à sua mulher e aos seus filhos.
Em outras palavras, o menino estava mais próximo de sua mãe, porque, assim como
ela, era um oprimido. Além disso, muitas crianças, neste contexto, foram
educadas em casa ' e não em uma escola ', muitas vezes por suas madrinhas, numa
extensão do fenômeno social a que Freyre denominou maternalismo. Observe-se, de
passagem, que esse fenômeno está, analiticamente, subordinado ao processo
social mais geral do patriarcalismo rural.
Pois bem: para dar evidências empíricas que provem o seu ponto de vista, Freyre
aponta para o exemplo de Joaquim Nabuco, que teria, segundo ele, vivenciado
todo esse processo (Idem, pp. 82, 319, 535). Freyre ainda utiliza o exemplo da
trajetória de vida de Joaquim Nabuco para demonstrar que a estratificação
social brasileira no século XIX era resultado de múltiplas variáveis. Em suas
próprias palavras:
Mais forte que a condição de raça, como condição ou base de
prestígio, eram evidentemente a condição de classe e a própria
condição de região de origem ou residência do indivíduo. Não nos
esqueçamos de que, em Pernambuco, quem fosse proprietário de largas
terras de cana na chamada zona da mata era como quem fosse grande
senhor de engenho na zona baiana do recôncavo ou grande estancieiro
no Rio Grande do Sul: um privilegiado pela região física e pelo
espaço social de sua propriedade ou de sua fazenda. Vantagens que,
ligada à de raça branca, à de classe superior e à de sexo chamado
forte, favorecia o indivíduo com as condições ideais de bem-nascido e
de bem-situado na sociedade [...] o caso de Joaquim Nabuco, bem
nascido como ninguém no Brasil de há cem anos e desde pequeno bem-
situado como ninguém, cultural e socialmente, na sociedade brasileira
do Segundo Reinado e do começo da República (Idem, p. 687).
Um outro fenômeno interessante analisado por Freyre é o cenário cultural nesse
período de transição tratado em Sobrados e mucambos. No processo de decadência
do patriarcalismo rural brasileiro, Freyre atribui um peso considerável ao fato
de que os valores dessa estrutura social começam a se desagregar graças ao
surgimento de novos valores culturais, eminentemente urbanos, cultivados pelos
novos bacharéis de formação cosmopolita, isto é, européia. Com efeito, Freyre
acentua que a decadência do patriarcado rural não se deve somente à decadência
de um tipo de economia baseada na escravidão, mas também ao crescimento dos
centros urbanos e ao surgimento de uma classe burguesa, de novas profissões e
da ascensão dos bacharéis, muitos deles mulatos. Como muitos desses novos
personagens tiveram formação acadêmica em importantes universidades européias
(Montpellier e Coimbra, principalmente), trouxeram consigo valores
socioculturais correntes no cenário cultural europeu de então.
Assim é que muitos dos nossos literatos abraçaram os ideais românticos não
apenas como valores estéticos, mas também como modo de vida ' diz Freyre que o
Pe. Gama se alarmava com a aparência doentia dos jovens do seu tempo. Vários
são os exemplos de escritores que morreram antes dos 25 anos ' Álvares de
Azevedo, Casimiro de Abreu, Junqueira Freire, entre outros, que tinham como
ideal de vida uma certa morbidez por morrer jovem.
Concomitante a essa mudança de valores, pode-se observar outros dois processos
sociais em evidência: a ascensão do jovem bacharel, por um lado, e a do mulato,
por outro. Muitas vezes esses dois processos foram vividos pelo mesmo sujeito '
jovem bacharel e mulato, que começava a ocupar o lugar dos mais velhos.
Gradativamente, os novos bacharéis foram assumindo cargos importantes no
aparato estatal (Idem, p. 240) ou mesmo o comando dos negócios dos patriarcas
através do casamento com as filhas desses senhores. Esses fenômenos sociais
estão todos ligados e nada se fez sem atritos. Por mais longo e imperceptível
que seja um processo de mudança social, na concepção de Freyre, este não se dá
de forma suave e sem impacto na vida das pessoas envolvidas. Assim é que emerge
da análise freyriana a idéia de que havia um certo desconforto psíquico, quase
físico, por parte dos bacharéis, sobretudo dos bacharéis mulatos, alguns dos
quais terminaram por aderir, explica Freyre, a movimentos revolucionários.
Em suma, temos aqui três fenômenos macrossociológicos: ascensão dos jovens
bacharéis, ascensão do mulato (processos de mobilidade social) e surgimento de
um conjunto de valores culturais urbanos baseado nos ideais românticos
(processo de mudança cultural). Freyre os exemplifica fartamente com a
descrição de diversas histórias de vida, mas, para alguns dos aspectos desses
fenômenos, seu exemplo mais caro é o poeta Gonçalves Dias.
Com efeito, a vida ímpar de Gonçalves Dias serviu para que Freyre pudesse
ilustrar, a um só tempo, esses fenômenos que, na sua avaliação, ocorreram
concomitantemente ao processo de decadência do patriarcalismo rural. Gonçalves
Dias era ' Freyre enfatiza várias vezes (Idem, pp. 240, 284, 975-976) ' um
bacharel mulato e poeta romântico que morreu aos 40 anos. Em outras palavras,
Freyre opera mais uma vez o artifício teórico-metodológico que vimos anunciando
neste trabalho: a ligação direta entre um ou mais fenômenos macrossociológicos
e a trajetória singular de um determinado indivíduo.
Considerações finais
Afinal, podemos dizer que a redução é um procedimento metodológico utilizado na
obra de Gilberto Freyre? Em outras palavras, os processos sociais complexos são
explicados em termos dos seus componentes individuais? Mesmo se considerarmos
as objeções de Little e Elster, de que não se pode encontrar leis nas ciências
sociais, e ficarmos apenas com mecanismos como substitutos das leis, em Freyre,
haveria uma conexão dos mecanismos no nível macro com mecanismos no nível
micro? E, finalmente, se, em Freyre, os indivíduos que "exemplificam" os
processos sociais não são indivíduos típicos, mas concretos, inviabilizando a
idéia de que a explicação em Freyre se assemelha à redução, podemos falar então
de superveniência na obra deste autor?
Os argumentos desenvolvidos na parte 4 deste trabalho revelam como Freyre
conecta processos macrossociais, como a decadência do patriarcado rural, a
estratificação social em Pernambuco no século XIX e a ascensão social dos
bacharéis e dos mulatos, com figuras históricas ' Félix Cavalcanti de
Albuquerque, Joaquim Nabuco e Gonçalves Dias, respectivamente. Junto a estes e
outros protagonistas da história, dezenas de tipos sociais coadjuvantes,
típicos ou concretos, aparecem com freqüência na explicação freyriana, seja em
Casa-grande & senzala, Sobrados e mocambos, seja n'O velho Félix e suas
"Memórias de um Cavalcanti".
Freyre parece utilizar, de forma combinada, na tentativa de articular o nível
mais abrangente de sua explicação a trajetórias de vida dos indivíduos tomados
como exemplo, princípios que lembram ora um processo de redução mais rigoroso
(fenômeno macrossingular ' indivíduos típicos), ora uma articulação mais
superficial das trajetórias particulares com fenômenos macrossociais aludidos
(fenômenos sociais macroparticulares ' indivíduos particulares). Contudo,
certamente a inclinação freyriana por uma sociologia da biografia, aliada a uma
despreocupação metodológica em termos dos cânones explicativos, parece indicar
princípios que mais se aproximam de uma microexplicação de certa forma
enfraquecida ' em que os indivíduos típicos são apenas coadjuvantes,
predominando as figuras históricas exemplares, quase que portadoras típicas dos
processos sociais que o autor quer entender e explicar ', do que propriamente
de uma microrredução, se seguirmos as distinções propostas por Rajeev Bhargava
e apresentadas na parte 2 deste artigo.
Se, por um lado, a opção metodológica do autor perde em rigor analítico, por
outro, as objeções que levantamos quanto à factibilidade de um projeto de
redução radical como estratégia válida para as ciências sociais parecem
legitimar, em algum grau, a escolha de Freyre por uma modalidade de associação
entre processos sociais e indivíduos não-típicos, ou, em outros termos,
biografias individuais. Essa posição daria conta das sutilezas e das nuanças
que a variação individual comporta, evitando a padronização que uma opção por
indivíduos típicos carregaria. Ademais, em Freyre, a explicação sociológica é
também histórica, contingencial. Nesse caso, nem os processos macrossociais
seriam típicos.
Se o que dissemos acima é verdadeiro, e não temos efetivamente redução ao nível
micro em Freyre, a idéia de superveniência, aqui proposta a partir de algumas
das idéias de Little e Ryan, parece deixar um campo mais aberto para o
enquadramento da explicação freyriana. Pois os microprocessos psicossociais
específicos identificados nos inúmeros biografados de Gilberto Freyre podem
articular-se, com menos problemas, aos mecanismos sociais mais amplos propostos
pelo autor sem que, necessariamente, sejam os exemplares por excelência
daqueles processos. A explicação dos "casos", portanto, ilustra e exemplifica
os "processos", sem contudo esgotá-los. Menos do que redução, a explicação em
Freyre se configura como uma forma não-intencional de superveniência que,
articulando os níveis macro e micro de uma forma relativamente frouxa, aponta,
ainda que de maneira incipiente, para os temas da agência e da estrutura.
NOTAS
1 A maior parte dos trabalhos sobre a obra de Freyre concentra a atenção nos
processos sociais empíricos em si, mais do que na problematização acerca da
construção de um modelo teórico-metodológico para a explicação freyriana.
2 O termo "homem de carne e osso", correlato ao de "homem concreto", sem
qualquer conotação biológica, é largamente usado por vários comentadores de
Freyre (ver, por exemplo, Cláudio Aguiar, 1999) para acentuar o fato de que a
concepção freyriana de homem não se reduz a tipologias sociologizantes.
3 Estamos atentos para as complexas relações que se estabelecem entre a
perspectiva sociológica e a perspectiva histórica nas ciências sociais e na
relevância que esse tópico tem na obra de Gilberto Freyre, em especial. No
entanto, o foco analítico deste trabalho é outro, a saber, as relações entre
processos sociais e seus componentes microssociológicos na obra de Gilberto
Freyre.
4 Cf. Freyre (1968b, p. 101), em que se pode observar claramente sua tese. Ver
também a esse respeito, C. Aguiar (1999, p. 73); R. Aguiar (1999, p. 115);
Bastos (1995, p. 71; 1999a, p. 320; 1999b, pp. 328, 335, 336-337, 345); Ribeiro
(2001, pp. 34-35); Saldanha (1999, pp. 34, 36-37); Sevcenko (2001, pp. 49, 53).
5 Vale lembrar que Freyre também dedicou páginas a pessoas que ele admirava e
que nada tinham a ver com o Brasil. Nesse caso, inclui-se o opúsculo sobre Walt
Whitman, poeta que ele tanto admirava, e os capítulos sobre Amy Lowell e H.L.
Mencken, entre outros.
6 Freyre também incentivou o trabalho de associados e conhecidos. Entre eles, o
bonito e bucólico livro de Bello (1985), testemunho de alguém que vivenciou o
tipo de transição social que intelectualmente sempre preocupou Freyre.
7 É nítida a proximidade entre o procedimento empático proposto por Freyre e
aquilo que se convencionou chamar de Verstehen nas ciências sociais.
8 A única edição brasileira, segundo dados da home-page da Fundação Gilberto
Freyre, foi publicada em 1978 pela Fundação Cultural de Mato Grosso. A edição
usada aqui é a portuguesa publicada em 1968. Este livro, tal como Um engenheiro
francês no Brasil, em sua segunda edição, é dividido em dois volumes, sendo o
primeiro dedicado à análise do material por Freyre, e o segundo, às notas de um
diário deixado por Luiz de Albuquerque.
9 O livro Mozart: sociologia de um gênio, de Norbert Elias (1995), é um exemplo
de tratamento sociológico de uma biografia individual.
10 A tradução deste e de outros trechos, quando não expressamente indicado, é
de nossa autoria.
11 Há, curiosamente, uma aproximação aparentemente estranha entre as idéias de
Elster e as percepções gerais de Gilberto Freyre acerca da necessária
introdução de elementos psicológicos na explicação sociológica. No entanto,
Freyre busca evitar a subordinação da sociologia à psicologia, propondo uma
fundamentação antropológica e histórica da primeira, dada sua natureza de
ciência da cultura. É possível também identificar uma clara afinidade '
consciente ou não ' de tais idéias com elementos da metodologia weberiana (cf.
Freyre, 1951b, pp. 49-51; 1957, pp. 234-235).