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BrBRHUHu0102-69092006000100002

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variedadeBr
ano2006
fonteScielo

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Redes sociais e poder no Estado brasileiro: aprendizados a partir de políticas urbanas

O Estado brasileiro é um dos principais atores políticos no cenário do país e cumpriu historicamente papéis importantíssimos na economia e na política nacionais. Inúmeras facetas do Estado e de suas políticas foram objeto de análise ao longo das últimas décadas. Entretanto, em uma situação contraditória, conhecemos muito pouco dos detalhes do seu funcionamento. Em especial temos apenas escassa compreensão sobre os processos que organizam a sua heterogeneidade e as suas dinâmicas internas.

Um dos caminhos para a solução desse problema é o desenvolvimento de análises detalhadas sobre os processos que estruturam internamente as organizações estatais, assim como as inserem no ambiente político mais amplo. Em período recente, estudos sobre políticas do Estado utilizando análise de redes têm contribuído nesta direção, ao propor a existência de estruturas de médio alcance constituídas por redes entre atores no interior de instituições específicas. Essas estruturas constituem um denso e complexo tecido relacional interno ao Estado que emoldura a dinâmica política e influencia fortemente a formulação e a implementação das políticas públicas.

A análise de redes sociais é um campo de estudo amplo e recente, embora pouco desenvolvido no Brasil até o momento. Os raros estudos existentes, entretanto, têm explorado de forma analiticamente inovadora certos fenômenos, em especial as dinâmicas internas ao Estado e as relações entre ele e a sociedade mais ampla, no interior de comunidades de política pública específicas. O presente artigo parte dos resultados obtidos em estudos desenvolvidos por mim sobre políticas urbanas em duas distintas metrópoles brasileiras (Marques, 2000, 2003).

O artigo está estruturado em três partes, além dessa introdução e da conclusão.

Na próxima seção, discuto os principais elementos conceituais mobilizados no trabalho a partir das literaturas pertinentes. Em seguida, apresento os principais achados no que diz respeito à estrutura interna ao Estado que denomino "tecido" do Estado. Na terceira parte, discuto os avanços trazidos pela perspectiva para a compreensão dos padrões de intermediação de interesses e das relações entre público e privado no Brasil. Ao final, analiso o impacto dos resultados para a compreensão da relação entre política e políticas públicas no Brasil, assim como para a complexa interação entre duas das principais estruturas sociais ' redes sociais e instituições políticas.

Visões sobre o Estado e a contribuição das redes A literatura sobre o Estado no Brasil é ampla e extensa. Apesar disso, pouco sabemos sobre o seu funcionamento concreto, ou sobre os detalhes das dinâmicas que o cercam. Até o início dos anos de 1980, a literatura brasileira ateve-se à análise das macro-características do Estado brasileiro e ao seu papel no desenvolvimento da nação, de uma ordem política moderna e de um certo capitalismo de natureza periférica e dependente, em estudos que vão desde os trabalhos clássicos de Oliveira Viana e Raimundo Faoro, até os trabalhos de Luciano Martins, Bresser Pereira e Fernando Henrique Cardoso, nos anos de 1970, como por exemplo Cardoso (1970, 1975) e Martins (1985). Essa ênfase em interpretações mais gerais era compreensível no campo intelectual no qual os autores se inseriam, assim como no contexto político que os cercava. Este corpo de literatura legou-nos um conhecimento significativo sobre macro-processos, que excelentes trabalhos posteriores como Nunes (1997) vieram aprofundar.

Por outro lado, o estudo do funcionamento do aparelho estatal e de suas relações com o sistema político em termos mais amplos, assim como a influência desse sobre as políticas desenvolvidas pelo Estado brasileiro, permaneceram analisados de longe e de forma indireta.

Os anos de 1980 marcaram o início efetivo dos estudos de políticas públicas entre nós. Também inseridos em seu contexto social e político, inúmeros trabalhos esquadrinharam criticamente as políticas públicas e analisaram o legado histórico, em especial do Estado Novo e dos governos militares, nas mais variadas áreas, como o sistema de proteção social, saúde, previdência, habitação etc., como Santos (1979), Draibe (1989), Oliveira e Teixeira (1985), Maricato (1987), Azevedo e Andrade (1981) e Melo (1989), por exemplo. Nesse momento, realizaram-se análises que trouxeram à luz características, interesses e processos presentes em cada política, apontando para o desenvolvimento de um substancial conhecimento sobre o padrão brasileiro de produção de políticas estatais, em especial sociais. Mesmo neste conjunto de trabalhos, entretanto, raros foram os casos em que as dinâmicas internas ao Estado e associadas diretamente à constituição e ao processamento das políticas foram analisadas.

Em contrapartida, os anos de 1990 viram proliferar uma literatura marcada por uma intensa fragmentação temática, disciplinar e analítica. Isto se deveu em parte ao desdobramento dos estudos da década anterior, associados à especialização nos diversos setores de política. De uma maneira mais ampla, entretanto, isso ocorreu em virtude da ausência de diálogo com perspectivas teóricas mais amplas que lhe fornecessem balizamentos sobre o funcionamento do Estado, resultando em uma baixa capacidade de abstração e uma excessiva fragmentação empírica, como destacado por Melo (1999). O problema foi agravado pelo fato de as políticas públicas representarem um local de encontro temático de tradições disciplinares muito distintas, e mesmo externas às ciências sociais, associadas a áreas específicas de pesquisa. O resultado de toda essa trajetória é que o campo de estudos sobre o Estado no Brasil se encontra esgarçado entre uma produção ampla com preocupações teóricas e macro- sociológicas e uma miríade de estudos de caso muito detalhados e específicos, oriundos em grande parte de áreas concretas de política.1 Acredito que uma das principais tarefas para superarmos tal problema está na construção de pontes entre os modelos de interpretação do Estado e a análise concreta de políticas específicas. Caminhos possíveis para a execução dessa tarefa dizem respeito à exploração sistemática das dinâmicas, dos mecanismos ou das estruturas de médio alcance que cercam a produção das políticas, como estratégias, instituições e padrões de relação entre atores. Discuto aqui os avanços que nos traz a última destas dimensões, relativa ao conjunto de relações entre atores estatais, e entre esses e agentes externos ao Estado, mas a ele ligados de inúmeras formas. Essa estratégia analítica explora o conhecimento detalhado dos padrões de organização no interior do Estado e da sua inserção no ambiente político e econômico que o cerca.

O destaque das relações, entretanto, não tem por objetivo sobrepujar a importância de outras dimensões e elementos bastante discutidos pelas literaturas internacional e nacional, embora no caso brasileiro esses tenham sido mais discutidos do que aplicados. Trata-se apenas de chamar atenção para a presença das estruturas relacionais na política, integrando-as aos elementos presentes no debate. Mais especificamente, avançaremos se conseguirmos reinserir os atores em seus contextos institucionais e relacionais, ou associar as estruturas de poder aos contextos institucionais em suas estruturas relacionais. Considerando a importância desse ponto para os argumentos desenvolvidos ao longo deste artigo, defino cada um desses elementos a seguir a partir das literaturas pertinentes.

Atores Cada situação social conta com um conjunto de atores dotados de instrumentos de poder que disputam os resultados do processo político em termos da distribuição de benefícios escassos, assim como de poder político, que em última análise explica a possibilidade diferenciada de captura daqueles benefícios. As várias perspectivas sobre o Estado e o poder diferem na maneira como tais elementos são combinados, assim como sobre o que deve ser o centro de nossas preocupações analíticas. Do meu ponto de vista, essas perspectivas diferem principalmente com respeito à ênfase e aos processos que conseguem iluminar, dadas as suas embocaduras teóricas, encerrando instrumentos analíticos cujo uso pode ser mais ou menos apropriado (Santos, 1990).

Para os pluralistas, o conjunto de atores presente na política é muito dinâmico, e seus instrumentos de poder e interesses são instáveis (Dahl, 1961).

Neste contexto, a própria idéia de permanência política implícita no destaque ao Estado, para além dos governos, é objeto de estranheza, sendo a ação dos grupos de interesse e as decisões concretas os centros de toda análise política. Os resultados das lutas políticas seriam em grande parte contigentes, embora a literatura tenha aceitado crescentemente a existência de grandes disparidades de poder entre os principais atores presentes em sociedades marcadas pela desigualdade econômica (Dahl, 2001). No bojo dessas lutas, a ocupação do governo via processo eleitoral explicaria a maior parte das ações governamentais, marcadas pela alternância de poder nas democracias representativas. Evidentemente, a ênfase neste caso está na dinâmica e na mudança, sendo as eventuais "coalizões políticas dominantes" efêmeras e contingentes (Mollenkopf, 1992).

Para os adeptos da teoria das elites, ao contrário, os atores políticos vencedores seriam quase sempre os mesmos, e a política seria marcada por grandes desproporções de poder oriundas das desigualdades de riqueza, conhecimento e status presentes na própria sociedade. Essa situação levaria à ocorrência dos mesmos resultados em quase todas as situações sociais (Hunter, 1953). No que diz respeito ao Estado, essa desproporção de poder se incrustaria nas instituições, levando à perenização dos interesses da elite, mesmo que de forma indireta e implícita (Domhnoff, 1979). O foco não estaria apenas na análise de decisões, mas no estudo do processo político mais amplo, onde ocorreria a influência, como em Useem (1983). Para a teoria das elites, portanto, a ênfase no estudo do poder envolveria não apenas o conflito aberto (como gostariam os pluralistas), mas também a falta de decisões, em um sentido similar ao construído na crítica de Bachrach e Baratz (1963) ao pluralismo expresso na categoria "mobilização de viés". Em um sentido amplo, uma parte importante da explicação da dinâmica da política estaria nas mudanças que poderiam vir a ocorrer na estrutura econômica que fornece instrumentos de poder, assim como na composição dos atores presentes na cena, como nas "linhas de poder" de Davis (1992).

Sob o meu ponto de vista, parece ser imprescindível considerar tanto as estratégias dos atores e a contingência dos resultados da política, como as desproporções de poder ancoradas nos instrumentos (mesmo que imateriais) de poder que introduzem fortes tendências à estabilidade. O resultado parece ser a criação de situações que, embora sejam contingentes, apresentam certos resultados como muito mais prováveis do que outros (Przeworski, 1990). Sem abusarmos da previsibilidade, portanto, podemos chamar de estrutura de poder a este conjunto articulado de atores, posições relativas de poder e instrumentos para exercê-lo. Embora todas essas três dimensões sejam dinâmicas e mutantes, apresentam inércia e permanência substanciais.

Instituições, organizações e políticas públicas Como a literatura neo-institucionalista nos ensinou no início dos anos de 1980, os atores não atuam em um vácuo, onde contam apenas as suas posições de poder. Os atores situam-se em contextos institucionais específicos compostos por regras de funcionamento da política estabelecidas em normas informais, no direito positivo e em formatos organizacionais específicos (Skocpol, 1985). O efeito desses três conjuntos de elementos opera de forma similar, alterando resultados, influenciando estratégias e alianças e modificando até mesmo o comportamento e as preferências dos agentes (Steinmo et al., 1992; Immergut, 1998). No caso específico do desenvolvimento de políticas públicas, a importância das normas legais e dos formatos institucionais e organizacionais é fundamental (Skocpol, 1992). Esse conjunto de regras legais e desenhos organizacionais compõem o contexto institucional em que ocorre uma determinada dinâmica política. Essa mesma literatura também nos chamou atenção para a importância das organizações estatais como atores políticos potenciais. Esses são dotados de interesses próprios e instrumentos de poder específicos. Na verdade, como esses agentes sempre se situam na cadeia de produção das políticas do Estado, ocupam uma posição de destaque em potencial, e devem ser trabalhados como os demais atores destacados anteriormente.

Ao longo das últimas cinco décadas desenvolveu-se uma tradição analítica associada mais diretamente ao estudo das políticas públicas, conformando o que alguns autores chamam de policy analysis (Ham e Hill, 1993). Não pretendo de maneira alguma reproduzir aqui o longo e profícuo debate realizado sobre o tema nas últimas décadas, mas pontuar alguns elementos que nos ajudam a localizar o avanço que a análise de redes permite com relação aos estudos mais tradicionais de políticas públicas. Remetemos os leitores interessados em uma revisão mais sistemática a obras como Parsons (1995) e Ham e Hill (1993).

O desenvolvimento da policy analysis ocorreu paralelamente e em diálogo com as várias teorias do Estado, mas sempre apresentou grande proximidade com o pluralismo. Em termos gerais, inclui estudos mais acadêmicos e outros com preocupações muito orientadas para as políticas, o que por vezes produziu algumas confusões entre os aspectos normativos e analíticos das pesquisas (Minogue, 1983). Desde as suas primeiras formulações, o processo de produção de políticas foi pensando como composto por etapas subseqüentes de um ciclo, como em Easton (1970), embora os nomes e os conteúdos das etapas tenham variado significativamente ao longo do tempo.2 A formulação mais disseminada do ciclo o descreve como incluindo formação de agenda, formulação de alternativas, decisão, implementação, avaliação e finalização, além da possibilidade de retroalimentação (Parsons, 1995). Até os anos de 1970, a maior parte dos autores considerava o processo de decisão o momento-chave do ciclo para a explicação das políticas. Neste, os agentes públicos delimitariam os problemas a resolver, listariam as alternativas existentes e decidiriam racionalmente a melhor alternativa (Lindblom, 1979). Críticas subseqüentes levaram à elaboração de modelos alternativos de análise mais sofisticados (Kingdon, 1984; Sabatier e Jenkins-Smith, 1993), assim como à problematização de vários elementos presentes nos modelos tradicionais. Entre esses merecem destaque o papel da racionalidade e/ou do incrementalismo nas decisões (Lindblom, 1979; Smith e May, 1980; Gregory, 1989), a interpenetração das fases do ciclo (Sabatier e Jenkins-Smith, 1993), os processos (intrinsecamente políticos) que influenciam a formação da agenda (Kingdon, 1984), assim como das idéias (Sabatier e Jenkins-Smith, 1993; Hall, 1993) e o caráter não automático e extremamente complexo da implementação de políticas (Hjern e Porter, 1981; Hogwood e Gun, 1984; Lipszky, 1980). Embora não possamos discutir neste artigo os enormes avanços ocorridos no interior dessa tradição ao longo das duas últimas décadas, vale destacar a crescente consideração da heterogeneidade interna ao Estado, assim como a reafirmação constante do aspecto político dos processos envolvidos na produção das políticas públicas.

Para o que nos interessa centralmente aqui, essa literatura destacou cada vez mais a importância do contexto e da interação entre agentes, não apenas na formulação, mas também na implementação de políticas. Para Hjern e Porter (1981), por exemplo, a implementação não seria realizada por uma "organização focal" isoladamente, mas por um agrupamento de atores, conformando o que os autores denominam estruturas de implementação ' conjuntos de organizações que atuariam sobre um mesmo problema, participariam do processo por auto-seleção e interviriam todas ao mesmo tempo sobre um certo conjunto de objetos. Esses autores, entretanto, não especificaram como seriam essas estruturas de implementação, como funcionariam e como influenciariam a política (e as políticas). Esse tema começou a ser tratado quando uma parte da policy analysis incorporou a análise de redes sociais (Heclo, 1978), introduzindo matizes da teoria das elites nas cores predominantemente pluralistas da tradição.

Redes O ponto de partida da análise de redes é a consideração de que as redes sociais estruturam os campos de diversas dimensões do social. A partir dos anos de 1960 e com mais vigor desde a década de 1980, uma ampla literatura mostrou que os vínculos entre indivíduos, entidades e organizações estruturam as mais variadas situações sociais, influenciando o fluxo de bens materiais, idéias, informação e poder (Scott, 1992; Freeman, 2002). Para alguns autores, construiu-se a partir de então uma "sociologia relacional", concentrada nas relações sociais e não em atributos de decisores individuais ou em estruturas concebidas previamente (Emirbayer, 1997). Essa perspectiva estaria situada em um plano de análise intermediário, avançando na solução das dificuldades analíticas do tratamento simultâneo da ação e da estrutura sociais. O sentido de estrutura para a análise de redes, portanto, não é o mesmo das análises estruturalistas anteriores, pois no caso das redes o formato e o conteúdo são levantados dedutivamente pelo trabalho empírico, no que Tilly (1992b) denominou estruturalismo a posteriori.

No caso das dinâmicas políticas, a natureza intrinsecamente relacional do poder sugere as potencialidades trazidas pela perspectiva em estudos sobre movimentos sociais, políticas públicas, partidos políticos, organizações, esfera dos negócios e elites políticas, entre outros temas (Knoke, 1990). As relações e as posições nas redes constituem estruturas relacionais que constrangem escolhas, dão acesso diferenciado a bens e instrumentos de poder, tornam certas alianças ou conflitos mais ou menos prováveis e influenciam os resultados da política. O estudo das redes permite integrar os atores em seus contextos relacionais específicos sem necessariamente abandonar os pressupostos ligados à sua racionalidade, embora esta ganhe contornos bastante distintos dos considerados comumente pelas literaturas de ciência política e economia (Granovetter, 2000). É interessante observar que essa formulação aproxima a análise de redes em termos teóricos da compreensão de formulações do neo- institucionalismo, como é o caso de Immergut (1998).

A ciência política incorporou a análise de redes principalmente em duas distintas linhas de trabalho, de inspiração das teorias das elites e pluralista. Na primeira, foram tematizadas as relações no interior das elites, discutindo a interpenetração no mundo das empresas e as suas conexões com a esfera política. Embora as preocupações se centrassem na "estrutura do mundo dos negócios", as análises apresentaram evidentes contribuições para o entendimento do poder em nossas sociedades, dialogando explícita e implicitamente com as explicações marxista e elitista para os processos de reprodução social. Nessa tradição inscrevem-se desde o clássico Mintz e Schwartz (1981) até Mizruchi (1996) e Carroll e Fennema (2002), por exemplo. As elites políticas também foram estudadas em si, embora por trabalhos de menor fôlego como, por exemplo, Gil-Mendieta e Schmidt (1996) e Del Alcázar (2002).

Uma segunda linha de trabalhos estudou diretamente as políticas públicas.

Embora trabalhos anteriores tivessem explorado a relação entre políticas e redes, o marco para o estudo das policy networks foi o livro The organizational state, de Laumman e Knoke (1987). O estudo partia, em especial, de elementos presentes no pluralismo, mas pretendia "desenvolver uma abordagem mais informada sociologicamente sobre a comportamento dos grupos de interesse" (Laumman e Knoke, 1987, p.7). Nesse sentido, para além do destaque às interelações entre interesses privados, burocracias e classe política, enfocadas pelo pluralismo por meio da idéia dos "triângulos de ferro" (Fiorina, 1977), os estudos das policy networks propõem que essas vinculações sejam consideradas mais permanentes e menos orientadas a resultados específicos, na conformação do que Heinz et al. (1997, p. 8) chamam de "atributos estruturais da influência". Os canais dessa influência, entretanto, seriam baseados em relações entre organizações e não entre indivíduos (Knoke et al., 1996).

Cada área de política seria tematizada como um policy domain ' domínio de política ', subsistema definido pelo reconhecimento mútuo dos atores envolvidos com a formulação e a defesa da implementação de certas alternativas de política relativas a um determinado problema (Knoke, 2003). Esses atores seriam tanto internos ao Estado, como originários de fora dele, mas envolvidos com as políticas pela ação de lobby e busca de influência (Heinz et al. 1997), pela conexão entre os mundos da política e dos negócios (Laumann et al., 1992), associados ao funcionamento de arenas de representação como conselhos de políticas (Schneider et al., 2003), ou envolvidos com experiências de privatização (Jordana e Sancho, 2003). Essa literatura não discorda da natureza racional dos cálculos individuais, mas destaca a pequena capacidade explicativa dessa concepção, dado o contexto de grande interdependência, optando por entender os processos de decisão como ambíguos e incrementais (Laumann e Knoke, 1987).3 A utilização da análise de redes trouxe diversas contribuições importantes para o estudo das políticas. Em primeiro lugar, permitiu que se discutissem os efeitos da complexa interdependência presente na produção de políticas sobre a ação social, considerando não apenas as ligações em torno dos atores (ou as suas interações individuais), mas também a estrutura dos vínculos e os padrões gerais em que esses estão inseridos. Tais elementos exercem fortes efeitos sobre a ação individual e estratégica, influenciando a maneira pela qual a racionalidade é limitada (Padget e Ansell, 1993). Em um sentido mais geral, o uso das redes permitiu a incorporação do contexto em que se o desenvolvimento de uma determinada política, levando à produção de interpretações mais sociológicas do comportamento dos atores, como destacaram Laumman e Knoke (1987).

Em segundo lugar, o estudo das redes permitiu incorporar fenômenos e relações informais às análises (Heclo, 1978), elemento central para a compreensão do padrão difuso e pouco institucionalizado que caracteriza não apenas a influência (Heinz et al., 1997), como também a própria coesão do Estado em muitas circunstâncias (Schneider, 1991). As relações informais, nesse sentido, produzem tanto permeabilidade, como coesão estatal, como veremos ao longo das próximas seções.

Por fim e de alcance mais amplo, a análise de redes abriu novos horizontes para o estudo do poder no Estado, indicando a existência de constrangimentos e de permanência nos contextos que cercam os atores. Como os padrões de vínculo e as posições nas redes tornam mais ou menos prováveis alianças e coalizões estratégicas, e dão acesso diferenciado a informações e recursos, as estruturas das redes de políticas influenciam de maneira importante as dinâmicas do poder no interior do Estado (Marques, 2000, 2003). A sua incorporação nas análises ajuda a superar a interpretação de que a ação e as estratégias políticas são efêmeras, assim como a ênfase excessiva no processo de decisão, conforme sugerido pelos modelos pluralistas de análise. Essas dimensões têm sido muito pouco enfocadas mesmo pela literatura internacional de policy networks.

Em nosso caso específico, uma parte dos elementos que se acumula no tempo e explica uma parcela importante das dinâmicas políticas se expressa no que chamo de tecido do Estado ' os padrões de relação internos ao Estado e entre esse e seu entorno político imediato. O estudo das redes permite analisar como as ações do Estado combinam transformação e inércia. Por outro lado, a incorporação das redes permite superar a falsa dicotomia ainda tão comum em análises recentes entre moderno e atraso nas gramáticas do poder presentes na política brasileira (Nunes, 1997).

As três estruturas discutidas ao longo dessa seção ' conjunto articulado de atores, instituições e padrões de relação ' influenciam-se mutuamente de uma forma complexa ainda não compreendida, em especial no que se refere às redes.

Entretanto, podemos dizer com certeza que a maneira pela qual elas se associam varia de contexto para contexto, mediado pelos atores presentes, pelos instrumentos de poder a que têm acesso, pelos padrões de relações em que estão inseridos e, sobretudo, pela própria dinâmica política, incluindo estratégias, ações e resultados. Todas essas estruturas são dinâmicas e historicamente construídas, visto que não apenas as estruturas de poder e as instituições se transformam continuamente (Davis, 1992), mas também as coalizões políticas (Mollenkopf, 1992) e as redes dialogam sempre com a ação social (Pagget e Ansell, 1993). Apenas a realização de um conjunto significativo de estudos empíricos comparativos poderá permitir a compreensão dos diferentes efeitos da associação desses elementos entre si.

A influência de tais estudos sobre a análise de políticas públicas no Brasil até o momento é praticamente nula, exceto pelos trabalhos discutidos aqui. Na verdade, são muito raras as análises da sociologia e da ciência política de forma mais geral que utilizam as redes como método, com a exceção de pesquisas recentes como de Louise Nazareno (2005) e do excelente trabalho de Toledo (2005) sobre o campo dos empresários em São Paulo. Quase sempre quando se fala em redes, o uso é meramente metafórico.4 O objetivo das seções que se seguem é auxiliar no preenchimento dessa lacuna.

O "tecido relacional" do Estado Para a aplicação do método em nosso contexto específico, acredito que algumas especificidades precisam ser consideradas.5 Em primeiro lugar, no caso brasileiro os domínios da política tendem a ser mais centrados nos órgãos estatais, dada a fragilidade das organizações da sociedade civil quando comparadas com as existentes em sistemas políticos de características mais pluralistas. Essas organizações estatais tendem ao mesmo tempo a ser pouco institucionalizadas, assim como a apresentar baixo insulamento e intensos processos de migração entre órgãos e com o setor privado. A literatura tende usualmente a interpretar essa dimensão como sinal de fraqueza do Estado, mas acredito que não seja necessariamente assim. Isso porque uma parte substancial dos vínculos que constitui o tecido do Estado foi construída exatamente pelos processos de migração de funcionários entre órgãos. Assim, esse mesmo processo pode construir condições de coordenação entre agências, tornando o tecido do Estado mais denso. A questão passa a ser quais condições levam a cada um desses resultados, pergunta que apenas a realização de inúmeros estudos empíricos pode responder.

Em segundo lugar, diferentemente das análises das policy networks, parto do princípio de que a unidade básica das relações (e da ação) são os indivíduos, e não as organizações. Embora nas redes sempre esteja presente uma dualidade entre pessoas e organizações (Breiger e Mohr, 2004), a importância das relações pessoais e a baixa institucionalização de inúmeros procedimentos no funcionamento da administração pública no Brasil, quando comparado com os países centrais, tornaria artificial e potencialmente enganosa uma análise baseada nas organizações.

Além disso, considero que apenas uma parte dos vínculos que organizam e explicam o tecido do Estado foi construído de forma intencional. Dado que a rede das políticas é apenas uma parte de redes mais amplas associadas à vida dos indivíduos envolvidos com sua produção, a maior parte da rede foi produzida bastante tempo com objetivos distintos dos mobilizados em um determinado momento, ou mesmo sem objetivo algum. Isso ocorre embora os vínculos possam ser operados ou acionados intencionalmente em circunstâncias específicas. Sob esse ponto de vista, portanto, os atores imersos nas redes podem até construir cálculos estratégicos auto-interessados, mas esses não apenas sofrem modificação pelas percepções e preferências influenciadas pela rede (Granovetter, 2000), como também se caracterizam por formas complexas de racionalidade limitada no sentido dado por Elster (1994). Voltarei a esse ponto mais adiante, quando tratar da permeabilidade do Estado.

Portanto, os vínculos e as redes tendem a ser mais resilientes e duráveis no tempo do que usualmente se considera, especialmente em sua estrutura. As informações empíricas apresentadas nas próximas seções confirmam essa hipótese.

Esse ponto de vista tende a colidir com uma parte substancial da literatura nacional, em grande parte baseada em uma leitura instrumentalista da categoria "anéis burocráticos do poder" de Cardoso (1970). Segundo essa leitura, os "círculos de interessados" em determinadas políticas mobilizariam de forma intencional e relativamente transitória vínculos com parcelas das burocracias estatais de forma a obter determinados resultados em seu proveito. Proponho que o mecanismo seja considerado ao mesmo tempo mais duradouro e menos orientado a fins. Voltarei a esse ponto ao final da segunda seção do artigo.

O tecido do Estado é produzido e transformado pelas redes entre pessoas e organizações que estruturam internamente as organizações estatais e as inserem em seus ambientes mais amplos. No funcionamento concreto da política (e das políticas), os contatos institucionais são canalizados por contatos pessoais e institucionais que se apóiam em padrões de relações preexistentes, assim como ajudam a recriá-los. Essas estruturas de médio alcance canalizam informações, apoios, alianças e a formação de projetos, visões e percepções. Além disso, esses padrões de relação induzem visões de mundo (e da política), influenciam a formação de preferências, constrangem escolhas, estratégias e alianças e alteram resultados políticos. Em termos mais concretos, podemos dizer que o tecido do Estado é composto por uma superposição de redes de relações temáticas que circunscrevem as comunidades ligadas a cada uma de suas ações. Essas redes incluem os diversos atores envolvidos com uma determinada política, como técnicos do Estado, ou burocracias em um sentido mais geral, demandantes da política, contratantes da política e políticos e gestores que ocupam cargos eletivos e de livre indicação.

Os resultados de duas pesquisas recentes sobre políticas públicas utilizando redes sociais (Marques, 2000, 2003) permitem sustentar vários processos sobre o tecido do Estado brasileiro. Antes de discuti-los, entretanto, é importante apresentar as duas pesquisas em linhas gerais.6 O desenho geral das duas investigações foi similar, de maneira a permitir a comparação posterior dos resultados. O primeiro estudo analisou as políticas de saneamento básico na região metropolitana do Rio de Janeiro, desenvolvidas por uma empresa pública ' a concessionária estadual dos serviços entre 1975 e 1996 (Cedae). Essa empresa foi constituída a partir da fusão de três outras empresas públicas existentes no período anterior a 1975.7 A segunda pesquisa analisou uma outra política territorialmente localizada ' a de infra-estrutura urbana, desenvolvida por um órgão da administração direta do governo municipal de São Paulo entre 1975 e 2000 (Secretaria de Vias Públicas ' SVP). Sob o ponto de vista do desenho institucional, portanto, a primeira política foi desenvolvida por uma empresa pública estadual e tinha abrangência metropolitana e a segunda foi desenvolvida por um órgão da administração direta da prefeitura da capital e tinha abrangência municipal. Essas características são importantes, pois as comparações ensinam não apenas com as semelhanças entre os casos, mas também com suas diferenças ante a variação das condições existentes (Tilly, 1992a).

Nesse sentido, como diversas dimensões e processos presentes nos governos locais também influenciam políticas de outros níveis de governo, a comparação permite discutir elementos mais gerais sobre o funcionamento do Estado no Brasil.

Nas duas pesquisas foram realizados amplos levantamentos primários sobre os investimentos com fonte direta dos avisos de contratação publicados nos Diários Oficiais, de forma a que se pudessem analisar as políticas no tempo e no espaço. Posteriormente foram feitos levantamentos documentais e entrevistas para reproduzir as redes de relações dos campos das duas políticas públicas.

Esses levantamentos permitiram reconstruir analiticamente, usando as técnicas de análise de redes sociais, o conjunto de ligações entre indivíduos, entidades e empresas privadas, incluindo vários tipos de vínculo.8 Considerando o tipo de rede analisada, as redes foram periodizadas por governos.9 Em cada um dos estudos, foram cruzadas inúmeras dinâmicas das políticas com a investigação detalhada das redes, usando medidas e visualizações. Os resultados que apresento a seguir retiram da comparação entre os dois casos lições mais gerais sobre o funcionamento do Estado em nível local a partir dos padrões encontrados nas duas redes e da importância dessas para a explicação das políticas. Por conta do espaço restrito deste artigo, as evidências empíricas utilizadas são apresentadas de maneira tópica, sendo o leitor remetido para os trabalhos originais para maiores detalhes, inclusive relativos aos pressupostos e às técnicas utilizadas.

Continuidade e ruptura no tecido do Estado De uma maneira geral, a presença das redes fornece um elemento de importante estabilidade nos campos ou nas comunidades de políticas,10 ajudando a manter ao longo do tempo as capacidades administrativas e a memória técnica. Na verdade, sob esse ponto de vista, a construção de redes densas em setores de política é um dos elementos constitutivos dos processos de produção de burocracias capazes de implementar políticas, como nos sugeriu Schneider (1991).

Embora esses processos estejam ligados à estabilidade, não se pretende sustentar a pequena importância dos processos políticos na construção de dinâmica e transformação, mas exatamente o contrário. Como os processos de produção de políticas acontecem imersos nas redes que estruturam o Estado, um grande potencial de influência das redes sobre as políticas, mas isso é mediado por pelo menos dois outros elementos destacados na primeira seção: as dinâmicas políticas e os formatos institucionais que cercam as políticas sob estudo. Discuto o primeiro elemento a seguir e deixo o segundo elemento para ser analisado ao final do artigo.

As redes estruturam o interior do Estado, mas a sua maior ou menor mobilização ou influência é produto de decisões de governo. É isso que nos ensina o caso de São Paulo, onde a rede da comunidade tinha grande proximidade com um determinado grupo político (de direita).11 Em governos de esquerda, optou-se por isolar a rede da política ao máximo, trazendo de fora do setor um conjunto significativo de técnicos, que tentaram operar a rede estabelecendo apenas alguns pontos de contato considerados estratégicos na comunidade. Assim, embora as redes sejam fortemente inerciais e path dependent, as escolhas estratégicas dos atores podem buscar formas de contorná-las, se isso lhes parecer necessário para alcançar seus objetivos. Em suma, podemos afirmar que as redes representam estruturas sociais que introduzem estabilidades, embora essas não determinem os resultados da (na ou) política, razão pela qual devemos articular analiticamente as dimensões ressaltadas na primeira seção ' atores, instituições e redes.

Construção institucional no tecido do Estado Um outro elemento a destacar diz respeito à relação entre pessoas e organizações. Como afirmei, alguns autores optam explicitamente por trabalhar apenas com organizações (Laumann e Knoke, 1987), mas considerando as dinâmicas social e política brasileiras, decidi por reconstruir as redes a partir de indivíduos. Assim, nos dois casos em discussão as unidades básicas da ação reproduzidas como nós nas redes são pessoas. Se para uma parte da literatura nacional isso representa a permanência do atraso na vida política brasileira, parece-me mais proveitoso analiticamente considerar essa dimensão constitutiva de nossa formação social e observar empiricamente suas conseqüências. Quando o fazemos, somos levados a crer que o que está em jogo não é necessariamente a irrelevância das instituições. Na rede do Rio de Janeiro, por exemplo, foi possível observar uma importância cada vez maior dos vínculos institucionais e de trabalho (Gráfico_1). Isso sugere que processos de construção institucional não são necessariamente incompatíveis com ambientes baseados fortemente em relações pessoais.

Mais do que isso, o caso do Rio de Janeiro sugere, na verdade, que a rede pode ser um importante elemento dos processos de construção institucional. Conforme afirmado, a empresa encarregada da política neste caso foi constituída a partir da fusão de três outras organizações estatais pré-existentes. As entrevistas destacaram que o processo de fusão foi bastante difícil em termos políticos e de convivência, mas ao longo do tempo se constituiu uma única organização dotada de espírito de corpo, insulamento e cultura técnica própria.

Os resultados da pesquisa indicaram que a rede cumpriu um papel significativo na estruturação da nova empresa. Na verdade, o processo paulatino de fusão das empresas implicou simultaneamente a fusão de suas redes respectivas (Tabela_1).

Como se pode observar, ao longo do tempo a participação relativa dos vínculos com indivíduos que trabalharam na empresa de origem tende a cair, e com ex- membros das outras empresas aumenta substantivamente. Mesmo assim, no final do período, a rede mantinha uma proporção significativa de vínculos entre indivíduos oriundos de suas empresas de origem, comprovando o aspecto fortemente dependente da trajetória da comunidade e a relevância dos vínculos na constituição da nova organização.

As transformações do tecido do Estado As redes de políticas estão em constante mudança, pelo lançamento e pela quebra de vínculos, sendo as mudanças de governo momentos propícios e concentrados para essa ocorrência. Entretanto, alguns processos sistemáticos de transformação em curso nas redes. O mais importante elemento temporal de longo prazo a destacar diz respeito à dinâmica geracional. Como seria de se esperar, a entrada e a saída de coortes na burocracia e na política impacta as redes, causando transformações pela inclusão e exclusão de novos membros e pela criação ou desmontagem de grupos de indivíduos e entidades no seu interior. Os grupos são conjuntos de indivíduos e entidades com intensos vínculos internos e similar padrão de relacionamento com o restante da rede. Sob o ponto de vista político, podem representar agregações de visões comuns sobre a política, ou mesmo unidades de ação coletiva. No interior das redes, sempre grupos mais ou menos centrais em termos de poder, não apenas pela localização de quem ocupa cargos institucionais, mas também pela posição relativa dos grupos, que lhes garante maior ou menor acesso ao conjunto (ou a partes específicas) do tecido relacional.

Com o declínio das coortes mais velhas e o aparecimento de mais novas uma tendência demográfica à troca dos grupos mais importantes. No caso do Rio de Janeiro, isso significou uma certa perda de hegemonia na rede, com o declínio do grupo que controlava a política no início do período estudado. Esse grupo teve um outro conjunto de indivíduos como herdeiros, mas esses não mais representaram o grupo hegemônico na rede, mas apenas um dos dois grupos que polarizaram a rede no restante do período. O outro grupo que polarizou não tinha nenhuma relação com esses, e nasceu em associação com a ocupação de cargos institucionais e vínculos com políticos.

No caso de São Paulo, ilustrado pelo Gráfico_2, diferentemente, foi possível observar uma transição geracional suave de um primeiro grupo formador e hegemônico no seu início para dois ou três outros grupos que surgem a partir daquele, mas se constituem como um conjunto articulado de sub-grupos do centro mais denso e hegemônico da rede. Para a análise do efeitos das gerações, os técnicos foram classificados pelas gerações a que pertencem, considerando: geração 1 ' geração mais antiga, com pessoas hoje na faixa dos 80 anos, aposentados, sem alguma participação ativa; geração 2 ' funcionários aposentados, na casa dos 70 anos, com alguns ainda em atividade; geração 3 ' pessoas em torno de 60 anos e em vias de aposentadoria; geração 4 ' pessoas em atividade, em torno dos 50 anos; geração 5 ' pessoas mais jovens em atividade, na faixa dos 40 anos. Como podemos ver, no caso de São Paulo, foi possível observar uma inflexão parcial na composição geracional em um dado período, para além da tendência demográfica observada. Nesse momento, que corresponde ao governo Maluf no início dos anos de 1990, muitos indivíduos das primeiras gerações da política retornaram os centros de decisão da política, o que indica que a dinâmica geracional nas políticas também está associada à dinâmica política e às decisões tomadas pelos ocupantes dos cargos institucionais.

Sob esse ponto de vista, portanto, embora certos indivíduos possam representar os herdeiros políticos e profissionais de outros, a passagem da centralidade na política implica na transmissão de diversos "ativos", alguns deles relacionais e ligados às posições que ocupam nos padrões de vínculo internos às organizações e com o ambiente político mais amplo. No caso de São Paulo, essa transmissão ocorreu, mas no caso do Rio de Janeiro, não. Esse parece ser um importante elemento explicativo da estabilidade nas estruturas de poder em organizações e na política. Tal dimensão é visível em trabalhos etnográficos de cunho relacional sobre elites, mas que não utilizam as redes metodologicamente, como Kuschnir (2000) e Pedroso de Lima (2003), sobre a transferência de herança político-eleitoral e empresarial, respectivamente.

Com relação às transformações nas redes, um outro ponto merece destaque. Embora o assunto envolva alguma complexidade técnica, tentarei apresentá-lo da forma mais simples possível, pois reforça bastante o argumento da tendência à estabilidade. Até recentemente, a literatura de redes sociais indicava como principais elementos promotores de estabilidade a grande quantidade de vínculos e nós herdados de períodos anteriores, tornando o volume desses em um determinado período bastante pequeno em termos relativos. Recentemente, os influentes trabalhos de Watts (1999) e de Watts e Strogast (1998) abriram uma nova forma para interpretar a continuidade nas redes. Watts demonstrou que a introdução de aleatoriedade nos vínculos de uma rede regular (como uma treliça, em seu exemplo mais extremo) tende a reduzir a presença de agrupamentos densos, ao mesmo tempo em que eleva a conectividade média (ou reduz a distância mais curta entre os pontos mais extremos). O principal achado do autor, entretanto, está no fato de que, à medida em que se introduz aleatoriedade nos vínculos (e a rede fica mais longe da treliça), a conectividade tende a se elevar muito mais rapidamente do que a queda dos agrupamentos, sugerindo que para uma grande quantidade de redes (chamadas pelo autor de small world), conectividades muito altas (ou distâncias médias pequenas) tendem a coexistir com pequenos graus de aleatoriedade. Essas características tendem a se manter no tempo de forma pouco alterada.

A principal conseqüência prática dessa constatação é que as redes tendem a mudar pouco não apenas pela pequena presença de mudanças ocorridas em cada período, mas também porque elementos na sua estrutura que tendem a manter as características gerais, mesmo em momentos de intensa transformação de vínculos.

Em contrapartida, um pequeno grau de aleatoriedade tende a gerar aumentos muito grandes de conectividade.12 A aplicação dos resultados de Watts às redes da engenharia urbana em São Paulo e à comunidade do saneamento no Rio de Janeiro sugere que estamos diante de dois casos de small world networks. Uma rede é de tipo small world quando a presença média de agrupamentos ainda é bastante elevada (se comparada a uma rede inteiramente aleatória de igual tamanho), mas a sua conectividade é bastante grande, ou a distância média entre os pontos mais extremos pelo caminho mais curto é pequena (quando comparada com igual rede teórica).

Portanto, se dividirmos indicadores dessas dimensões (agrupamento e conectividade) da rede aleatória pelo de nossas redes empíricas, encontraremos um valor próximo de 0 para o primeiro (visto que os agrupamentos da rede empírica são muito mais intensos do que na rede teórica) e próximo de 1 para o segundo (visto que a distância média máxima é relativamente igual entre elas).

No nosso caso, apenas para concretizar o argumento: a) A relação entre o índice de agrupamento (cluster coefficient) da rede aleatória (teórica) e de nossas redes é de: Cedae (primeiro gov. Brizola) ' 0,11; Cedae (gov. Marcelo Alencar) ' 0,07; SVP (gov. Erundina) ' 0,04; e SVP (gov. Pitta) ' 0,05.

b) A relação entre as distâncias da rede aleatória (teórica) e de nossas redes é de: Cedae (primeiro gov. Brizola) ' 0,74; Cedae (gov. Marcelo Alencar) ' 0,92; SVP (gov. Erundina) ' 0,84; e SVP (gov. Pitta) ' 0,86.

As principais conseqüências disso dizem respeito às elevadas conectividades destas redes e às suas resistências à mudança, principalmente em suas estruturas gerais. Quanto ao estudo do Estado, esses dados sugerem que o tecido do Estado tende a gerar um padrão intenso de conectividade e que essa parece ser bastante resistente a mudanças. Isso pode acrescentar novos argumentos na explicação da dificuldade encontrada por reformas em áreas do Estado e em burocracias em diversas condições sociais, assim como explicar uma parte da tendência à estabilidade das organizações. Além disso, mesmo que alterações importantes sejam introduzidas na rede de uma determinada comunidade de políticas, as mudanças tenderão a ter efeito principalmente local (em vez de estrutural). Tais mudanças podem ser suficientes para permitir a alteração radical dos conteúdos das políticas implementadas, caso as mudanças sejam operadas nos locais adequados, mas tendem a não se reproduzir no tempo, e a situação tende a voltar à anterior quando os esforços externos cessarem. Como veremos, é isso que aconteceu no caso de São Paulo.

A desconsideração do tecido do Estado, como na maior parte da tradição da policy analysis, leva à incompreensão dessa dimensão das políticas, sugerindo constrangimentos mais reduzidos aos atores e uma menor inércia à mudança nas organizações e na política do que os empiricamente observados.

As fronteiras das comunidades de política Como vimos, embora as redes estejam sempre se transformando, isto acontece em um contexto de elevada inércia e tendência à estabilidade. De forma similar, as redes apresentam contornos mutáveis no interior de comunidades ou campos, o que torna a delimitação de suas fronteiras uma outra dimensão extremamente importante. A rigor, se estamos tratando de conjuntos de vínculos de diversos tipos construídos ao longo da vida dos indivíduos, todo o âmbito social constitui-se em uma única rede com densidades e especializações temáticas nas suas distintas partes, o que tornaria impossível implementar um estudo centrado em redes. Por essa razão, precisamos delimitar a região da rede "total" que corresponde à sociedade inteira (ou à parte do tecido do Estado) no interior da qual um determinado processo sob estudo ocorre. A solução para essa questão está nas escolhas analíticas do pesquisador que deve ser coerente com os pontos de partida teóricos adotados. Isso é fundamental, pois a análise de redes permite o desenvolvimento de estudos sem a delimitação prévia das fronteiras do campo e, em especial, sem a consideração de que as fronteiras institucionais do Estado coincidam com as fronteiras analíticas do campo relevante para a compreensão das ações estatais.

Os resultados das pesquisas indicam que no caso das políticas públicas existe uma vinculação entre os limites da rede e o tipo de desenho institucional presente no órgão público. No caso do Rio de Janeiro, onde a política era desenvolvida por uma empresa pública com padrão de carreira específico, receitas próprias, espírito de corpo desenvolvido e elevado insulamento, a rede coincidia quase que completamente com os limites da própria empresa. Mesmo as associações societárias presentes no setor eram pautadas pela empresa estatal, tinham como seus principais membros funcionários ligados à empresa e repercutiam questões e dinâmicas oriundas do interior do órgão estatal. A fronteira nesse caso estava limitada pelo próprio elemento institucional, ou por seu papel no funcionamento da política.

A situação encontrada em São Paulo não podia ser mais diversa. Neste caso, trata-se de um órgão da administração direta sem carreira ou receita próprias e com baixo insulamento. As fronteiras da rede não coincidiam com o próprio órgão, mas o transcendiam em muito. Na verdade, as informações empíricas sugeriram que a rede correspondia ao campo mais amplo da engenharia urbana em São Paulo, englobando técnicos que circulam por várias secretarias afins. Além disso, quando se observou a trajetória dos ocupantes dos cargos mais importantes, constatou-se a existência de uma rede de gestores próximos ao campo da direita do espectro político, que cruzava transversalmente governos em vários órgãos vinculados à área de engenharia urbana em geral. Esse elemento é visível na Tabela_2, que apresenta os ocupantes de cargos importantes comuns a mais de um governo. Efeito praticamente idêntico verifica-se com os ocupantes de administrações regionais.13 Como podemos ver, os únicos governos que não apresentam um conjunto elevado de gestores comuns são as administrações Erundina e Covas. A diferença fica ainda maior se eliminarmos os indivíduos que permaneceram durante o primeiro ano do governo seguinte. Eles têm uma presença residual em quase todos os governos, menos nas associações do governo Erundina ' com Jânio cai de dez para três indivíduos, com Maluf cai de cinco para um, com Pitta cai de três para zero e com Covas cai de seis para cinco. A única outra redução ocorreu entre os governos Jânio e Covas, que passou de dez para nove indivíduos comuns.14 Os campos de política no tecido do Estado Como vimos, devemos construir analiticamente as fronteiras e delimitar as redes no interior dos campos, considerando o assunto em estudo. Observemos um pouco mais de perto os campos onde as redes se localizam, destacando sua conformação, seu feitio e sua estrutura interna. Em termos gerais, no interior do tecido do Estado (entendido amplamente) conformam-se campos de política específicos, associados a redes centradas em determinadas temáticas políticas. Tais campos incluem conjuntos de atores que participam de comunidades de políticas no interior das quais se estabelecem conflitos, alianças e ação social em termos gerais. A conformação desses campos influencia as dinâmicas, razão pela qual o estudo do tecido do Estado ajuda a compreender a política e as políticas a ela associadas.

Sob esse ponto de vista, foram encontradas mais uma vez duas situações distintas nas pesquisas realizadas no Rio de Janeiro e em São Paulo. No primeiro caso, os dados indicaram a existência de uma rede bastante polarizada, com grupos fortes e importantes controlando regiões distintas da rede e disputando poder entre si, polarizando a comunidade. Os dois grupos mais importantes incluíam principalmente indivíduos oriundos das duas principais empresas do período anterior. No meio da rede localizavam-se grupos com pequena importância nas disputas pelo poder, mas também indivíduos e grupos envolvidos com a mediação política na comunidade.

No caso de São Paulo, a rede da comunidade apresentou polarização interna muito baixa, tendo, na verdade, um único centro, associado a um conjunto de gestores públicos de um mesmo grupo, que se revezava no controle dos cargos institucionais mais importantes da política. Essa estruturação centrífuga da rede repetiu o padrão do funcionamento da própria política e pôde ser observada na complexidade da rede ao longo dos governos. A rede de São Paulo também era bem mais complexa do que a do Rio de Janeiro, como pode ser visto nos sociogramas a seguir relativos ao primeiro governo Brizola ' 1982/1986 (Rio de Janeiro) e ao governo Reynaldo de Barros ' 1979/1981 (São Paulo).15 O padrão geral mantém-se nos demais governos de cada cidade.

O poder e o tecido do Estado Como foi discutido anteriormente, os grupos lutam pela hegemonia da política (e das políticas) no interior dos tecidos do Estado associados às comunidades de políticas. Conseqüentemente, ao longo dos governos os membros dos diversos grupos ocupam cargos de forma diferenciada, segundo o desenrolar das disputas políticas internas e de acordo com as relações que conseguem estabelecer com os detentores do poder institucional. Uma primeira dimensão da relação entre as redes e o poder, portanto, diz respeito aos grupos de afinidade e apoio, que na rede se apresentam como conjuntos de indivíduos com relações intensas entre si e inserção similar no conjunto da rede.

Grupos, cargos e poder na rede No caso analisado no Rio de Janeiro, onde a política apresentava maior alternância política e a rede maior polarização, os cargos mais importantes tenderam a oscilar entre os dois pólos da rede a cada grande mudança política que se verificava nos cargos-chave do executivo.16 Isso pode ser visto nas figuras a seguir, que representam a rede nos governos Leonel Brizola (1982/ 1986) e Moreira Franco (1987/1990), com o destaque dos ocupantes dos cargos mais importantes. As figuras são sociogramas com os vínculos ocultados (para permitir a visualização) e com os indivíduos localizados segundo uma técnica estatística que reduz o viés do pesquisador na apresentação da rede.17 Na Figuras, os técnicos sem cargo aparecem como pontos simples e os ocupantes de cargos segundo os símbolos indicados na legenda. Como podemos observar, entre os dois governos, as posições da diretoria e dos cargos de destaque oscilam de um lado do campo ao outro. O mesmo padrão se repete com os demais governos, e toda a vez que ocorre uma mudança no grupo político que ocupa o governo, a diretoria da empresa localiza-se no lado oposto à do governo anterior.

No caso de São Paulo, ao contrário, a localização das diretorias na rede praticamente não se alterou ao longo do tempo, e o controle dos grupos hegemônicos sobre os cargos mais importantes foi muito significativo, exceto em governos de esquerda, como podemos ver na Tabela_3.18 De acordo com a tabela, os mesmos grupos ocupam os cargos mais importantes na maior parte dos governos, controlando a política. As exceções são os dois governos política e ideologicamente adversários do campo que exerce hegemonia sobre a política local (e a rede) no período ' Covas e Erundina. Esse resultado reforça a interpretação anterior da Tabela_2 e sugere que esses dois governos escolheram não apoiar a implementação de suas políticas na rede do setor, importando pedaços inteiros da rede de fora e os conectando apenas topicamente em locais específicos da comunidade, principalmente no grupo dos técnicos. Se o argumento a respeito das small world networks apresentado anteriormente estiver correto, o efeito dessa estratégia sobre a rede tende a ser apenas local. Isto quer dizer que a estratégia ajuda a implementar políticas diferentes do que a que seria defendida por partes importantes da comunidade de políticas, neutralizando a burocracia localizada em posições mais centrais no tecido do Estado, mas tende a ter influência pequena sobre a transformação da comunidade em si, gerando poucos impactos ao longo do tempo quando os esforços externos cessam.

Como as redes estruturam o relacionamento entre agentes no tecido do Estado, a gestão das organizações estatais inclui uma constante negociação entre quem é de dentro (e controla conhecimento, contatos e posições na rede) e quem vem de fora. As diferenças na estruturação do campo das políticas associam-se com a maneira pela qual as redes se integram nos ambientes políticos mais amplos. três atores políticos que potencialmente influenciam as políticas de fora do Estado: demandantes das políticas, empresas privadas e políticos (detentores de poder institucional e de comando formal sobre as organizações). Merece destaque especialmente a relação entre os terceiros e as redes.19 Os detentores do poder institucional precisam de pontos de apoio no interior da comunidade para implementar políticas segundo os seus projetos. No caso do Rio de Janeiro, que como vimos apresentava uma rede bastante insulada e com elevada polarização interna, foi possível observar uma associação também polarizada e oscilante entre os grupos políticos que controlavam o poder executivo e a rede da comunidade. No primeiro momento de contato entre um determinado grupo político e a política pública considerada, seus membros estabeleceram contatos com grupos no interior da rede não controlados previamente por seus adversários. Quando esse mesmo grupo voltou ao poder, acionou novamente os mesmos contatos e grupos na rede, resultando na vinculação de cada grupo político a uma parte da rede. Como tanto a rede quanto a política local se mostraram polarizadas, a associação entre grupos políticos e grupos na rede se deu de forma pendular de um governo para outro, às vezes se instalando em um lado da rede e no governo seguinte, do lado oposto. Foi essa a dinâmica observada nos sociogramas dos governos Leonel Brizola e Moreira Franco apresentados na seção anterior.

No caso de São Paulo, diferentemente, os grupos que exerceram hegemonia sobre a política ao longo do período pesquisado apresentavam colorações político- ideológicas nítidas, assim como relações políticas de longo curso com o grupo político que exerceu hegemonia sobre a política municipal na maior parte do período. Essas duas dimensões provavelmente foram reforçadas com o controle sucessivo da administração pelo mesmo grupo político e com a operação da política pública sendo continuada por um determinado grupo da rede.

Nesse caso, portanto, a ligação entre os detentores dos cargos institucionais mais importantes no executivo e indivíduos e grupos na rede teve caráter mais permanente e estável, ocupando todo o centro da rede. Nos dois momentos em que grupos políticos que se opunham ao hegemônico venceram as eleições majoritárias e passaram a controlar o executivo municipal, optou-se por trazer de fora da comunidade conjuntos inteiros de técnicos, conectados à rede de maneira efêmera e tópica, usando uma das únicas regiões não associada de forma direta à rede de gestores de direita a que me referi anteriormente. Essa dimensão é confirmada se compararmos as medidas de centralidade dos secretários por governo (Tabela 4). As centralidades médias de alcance são estatísticas simples das redes, sendo que quanto maior a medida, mais elevada a centralidade e maior é a região da rede alcançada pelos vínculos de um determinado indivíduo.

Portanto, se redes do tipo small world apresentam elevada estabilidade em suas características estruturais gerais, a relação entre o tecido do Estado e a dinâmica do poder pode variar bastante com mudanças relativamente pequenas, possibilitando mudanças de vulto nas políticas. Este efeito é extremamente importante, mas tende a ser local e não se reproduzir no tempo. No caso paulistano, o efeito local esteve associado à ocupação de posições centrais na rede pelos detentores dos cargos mais importantes em governos de direita e de posições fortemente periféricas em governos de esquerda. Isso pode ser observado na comparação dos sociogramas dos governos Erundina (PT) e Maluf (PDS/PPB) a seguir, em que a diretoria do governo Erundina se associou a um tramo periférico da rede, ao contrário do governo Maluf. Os demais governos seguem o mesmo padrão ao longo do período. Como a rede de São Paulo é muito complexa, ocultei os vínculos fracos nesses sociogramas.20 As duas situações ' do Rio de Janeiro e de São Paulo ' podem ser retratadas por diferentes configurações de uma mesma lógica, que denominei troca de poderes (Marques, 2000). A gestão do Estado importa no controle de pelo menos dois grandes tipos de poder distintos.21 O primeiro advém da ocupação dos cargos institucionais, está baseado na lei e nos ordenamentos administrativos e diz respeito à capacidade de dar ordens e comandos sobre a máquina pública. Esse tipo é fundamental para o exercício do poder, mas não é suficiente, pois uma parcela significativa da capacidade de operacionalização das políticas está nas mãos das agências estatais, das burocracias e dos técnicos do Estado, não apenas na implementação, mas também na formulação de políticas. Isso nos leva a uma outra forma de poder vinculada à ocupação de determinadas posições nas redes do campo de políticas. Denominei esse tipo poder posicional, sustentando que ele se encontra inscrito nas redes sociais que compõem os campos de política. Sob o ponto de vista político,22 os chefes do executivo trocam cargos institucionais (poder institucional) por posições com os membros das burocracias (poder posicional), o que significa para esses últimos a obtenção de salários mais elevados, maior status etc. Os técnicos do Estado, por sua vez, emprestam suas posições e padrões de vínculo, possibilitando a implementação das políticas pela mobilização de regiões inteiras da rede no sentido de implementar ações do Estado presentes no "programa" dos detentores de cargos institucionais mais expressivos. Mais adiante discuto a relação desse programa (e dos políticos eleitos) com a rede.

Afirmo que a dinâmica em curso nos dois casos é a mesma, pois tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo os detentores dos cargos eletivos dialogaram com grupos nas comunidades específicas para a obtenção e a conquista de pontos de apoio nas redes. Os diferentes resultados desse processo nas duas cidades dizem respeito às diferenças nas configurações das redes, nos ambientes institucionais e nas estruturas de poder local. Essas diferenças levaram a que, em um caso, a rede fosse polarizada e a relação com o poder institucional fosse pendular (Rio de Janeiro), no outro, a rede estivesse muito associada a um determinado grupo político e os outros grupos tivessem que operar quase que por fora da rede (São Paulo).

Portanto, a realização de políticas pressupõe o controle, ou ao menos a forte consideração do tecido do Estado por parte dos atores. Esse ponto é fundamental e foi negligenciado pela maior parte da tradição da policy analisys, assim como pelas principais teorias do Estado discutidas na primeira seção.

As redes na interface entre o público e o privado Se as redes nos explicam muito sobre a conformação do tecido do Estado, também ocupam um importante papel na ligação entre ele e grupos externos, vinculados tanto a interesses organizados como a atores individuais isolados. Em outras palavras, as redes explicam uma parte significativa das relações entre público e privado no Brasil, na conformação do que denominei permeabilidade (Marques, 2000). Esse aspecto foi tematizado por uma ampla literatura, que inclui inúmeros autores, entre os quais Cardoso (1975) continua sendo uma das mais importantes referências com suas idéias de "círculos de interessados" e de "anéis burocráticos do poder". Não cabe aqui discutir detalhadamente as categorias, mas acredito que uma descrição geral da idéia de permeabilidade do Estado seja esclarecedora.23 Ao contrário dos conceitos de privatização do Estado e de anéis burocráticos, a permeabilidade do Estado aponta para uma característica potencial, perene no tempo e presente em todos os campos de ação do Estado. Na verdade, a permeabilidade é apenas a especificação do efeito das redes presentes em todas as dimensões sociais para os locais onde ocorre o encontro (ou a superposição) do Estado com o privado. O seu funcionamento potencial apóia-se predominantemente em vínculos não intencionais, construídos ao longo das trajetórias dos indivíduos e das organizações e marcado por intensa dependência da trajetória, embora seja possível delimitar regiões específicas das redes produzidas de forma intencional e orientada a lesar o Estado.

Sob o ponto de vista da permeabilidade, novamente os casos do Rio de Janeiro e de São Paulo diferem significativamente, mas quando levamos em conta as diferenças institucionais, relacionais e da configuração dos atores, é possível compor um quadro mais amplo que nos esclarece sobre os mecanismos de influência na relação entre público e privado veiculados pelas redes. Assim como as demais dimensões discutidas até o momento, os resultados guardam algo da especificidade dos casos que nos estudos apresentados dizem respeito ao funcionamento do mercado local de obras públicas.

A grande maioria das obras realizadas na implantação das políticas de infra- estrutura urbana é contratada com empresas privadas, sendo que a escolha das empresas vencedoras é realizada segundo os procedimentos das licitações públicas. Assim, uma forma bastante interessante de analisarmos a permeabilidade nesse tipo de política é investigando se o padrão de vitória de empreiteiras tem relação com as posições ocupadas por elas nas redes políticas, ou com outras variáveis não relacionais. Para isso, nos dois casos estudados levantei todos os contratos assinados com empreiteiras para a realização de obras e serviços de engenharia, cerca de 800 no Rio de Janeiro e pouco mais de 5.500 em São Paulo. Em seguida, localizei a posição das empresas mais importantes nas redes de relações das duas comunidades em cada governo a partir de informações obtidas em entrevistas, calculando para elas uma série de medidas de centralidade na rede. As medidas de centralidade, os volumes de vitórias (sempre em volume de recursos) e outras variáveis não relacionais foram submetidos a análise quantitativa de forma a testar a influência e as características da permeabilidade.24 No caso do Rio de Janeiro, a análise estatística dos resultados indicou que a distância na rede entre uma determinada empresa e os detentores dos cargos institucionais não influenciava no padrão de vitória. De forma similar, o capital das empresas não apresentou associação estatística relevante com os padrões de vitória. Nesse caso, portanto, nem o porte da empresa, nem sua relação com políticos importavam. A exceção observada disse respeito a um conjunto muito pequeno de contratos de valor muito elevado assinado com empresas de grande capital societário. Para esse conjunto de outliers, a proximidade das empresas com os ocupantes dos cargos institucionais mais importantes influenciava o padrão de vitória. Para o conjunto dos contratos e das empresas, entretanto, o que mais influenciava esse padrão era a ocupação de certo tipo de posição de especial acesso a informações no interior da rede construída ao longo dos anos. Essas empresas são pertencentes típicas do setor, apresentam porte médio e tenderam a vencer mais nos momentos em que as suas posições na comunidade lhes forneciam volume significativo de informações sobre os processos em curso. Esse padrão percorreu todo o período estudado, confirmando que a permeabilidade é mais difusa, não intencional e resiliente do que a categoria "anéis burocráticos" nos leva a crer.

No caso de São Paulo, por sua vez, encontrei um padrão diferente para governos de direita e de esquerda, sendo, portanto, o posicionamento político-ideológico do prefeito uma variável interveniente importante. Nos governos de direita, as vitórias das empreiteiras mostraram-se influenciadas tanto por elementos relacionais como ligados ao tamanho de cada empresa. Em primeiro lugar, a proximidade na rede com o núcleo do poder institucional ' prefeito e secretário ' influenciava positivamente o volume de vitórias. Além disso, quando empresas ocupavam posições que lhes forneciam muitos vínculos primários e secundários25 tendiam a ter um volume de vitória mais elevado. O mesmo resultado não se repetiu quando apenas os vínculos primários foram submetidos à análise, sugerindo que o importante para as empresas nesse caso é se relacionar com muitos indivíduos ou empresas, mas também com nós importantes e bem relacionados. Por fim, em governos de direita o capital social tendia a influenciar positivamente as vitórias, premiando as maiores empresas com ganhos mais elevados.

Em administrações de esquerda nenhuma variável associada à rede se mostrou significativa. Entre os elementos estudados, apenas o capital das empresas influenciava positivamente o volume de vitórias, embora de uma forma menos intensa do que em governos de direita. Ou seja, o retorno em vitórias por unidade de capital mostrou-se bem mais elevado em governos de direita do que em administrações de esquerda.

Como vimos anteriormente, a rede paulistana apresentava grande proximidade com o campo da direita em nível local, e os administradores de esquerda tentaram neutralizar a rede no funcionamento da política, trazendo de fora da comunidade quase todos os ocupantes de cargos importantes e conectando-os de forma pontual e periférica na rede. Assim, a ausência de influência das posições na rede sobre as vitórias em licitações em governos de esquerda está nos informando, na verdade, do sucesso da estratégia desses governos de neutralizar os gestores de direita que exerciam a hegemonia na comunidade e eram fortemente conectados ao mundo das empresas. Como frisei, as redes influenciam os resultados, mas as escolhas e as estratégias dos atores também importam.

Uma maneira de visualizarmos graficamente esse resultado quantitativo é observando os sociogramas a seguir. A Figura_5 apresenta os sociogramas dos governos Setúbal e Erundina com os vínculos ocultados e empresas privadas e diretorias indicadas. Os técnicos correspondem aos pontos mais claros, as empresas aos pontos pretos e os ocupantes de cargos importantes em cada gestão são apresentados como estrelas. Como podemos ver, em governos de direita as diretorias encontram-se nas regiões ocupadas preferencialmente pelas empresas privadas, ao passo que em governos de esquerda os ocupantes de cargos importantes se encontram fora dessa região da rede e, portanto, longe das empresas na comunidade. Os demais governos seguem o mesmo padrão.


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