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EuPTCEEx1646-88722012000400004

EuPTCEEx1646-88722012000400004

variedadeEu
ano2012
fonteScielo

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Pescadores, conhecimento local e mudanças costeiras no litoral Português

1. Introdução É por demais conhecido que as zonas costeiras tenderão a sofrer severos impactos com as alterações climáticas (Dolan & Walker, 2011). Alterações como a subida do nível médio do mar e a rotação da direção predominante das ondas têm efeitos na deriva sedimentar ao longo da costa portuguesa, podendo agravar os processos de erosão costeira. Para além dos impactos previstos das alterações climáticas, a costa portuguesa tem sofrido, nas últimas décadas, importantes transformações (Dias et al., 2008), não geofísicas (erosão, recuo da linha de costa, desaparecimento da areia das praias), mas também artificiais (construção de portos, esporões, paredões) e socioeconómicas (aumento exponencial da população, substituição das atividades económicas tradicionais, como a pesca, por novas atividades, como o turismo, o lazer, o imobiliário). Os impactos das alterações climáticas vêm assim somar-se ao processo acelerado de erosão em que o litoral português se encontra.

Os pescadores artesanais são testemunhas privilegiadas destas mudanças. Em resultado da sua experiência quotidiana, detêm conhecimento especializado, ainda que não científico, do meio natural local. Têm sido, mais do que meros espectadores, diretamente afetados por algumas das transformações, embora em larga medida desprovidos do poder para intervir nelas.

Este artigo tem como objetivo principal compreender que conhecimento local detêm os pescadores artesanais sobre as mudanças costeiras e sobre as intervenções que, ao longo dos últimos anos, têm sido feitas na costa e em que medida esse conhecimento tem sido (ou não) aproveitado na gestão da costa.

Baseia-se num estudo de caso exploratório, sustentado em entrevistas em profundidade a pescadores de três locais na costa portuguesa.

O conhecimento local é um conceito que tem ganho um lugar crescentemente relevante tanto nas políticas ambientais como na literatura científica (Nelson, 2005). Por um lado foi reconhecido pelas Nações Unidas como um contributo importante para o desenvolvimento sustentável na Convenção para a Diversidade Biológica em 1992, na Declaração do Rio e na Agenda 21 (Bourke, 1993; Griffin, 2009). Por outro lado, têm-se multiplicado os estudos sobre diversos aspetos desta problemática, que abaixo se elencam.

no entanto que dar conta da pluralidade semântica desta área. Práticas e representações bastante semelhantes são algumas vezes rotuladas como conhecimento ecológico tradicional (Berkes et al., 2000; Usher, 2000; Nelson, 2005; Houde, 2007), outras como conhecimento indígena (Agrawal, 1995; Aikenhead & Ogawa, 2007; Bohensky & Maru, 2011; Green & Raygorodetsky, 2010), outras como conhecimento local (Clark & Murdoch, 1997; Davis & Wagner, 2003; Fortman & Ballard, 2009; Paton & Fairbairn-Dunlop, 2010), como conhecimento dos stakeholders (Edelenbos et al., 2011) ou ainda como conhecimento leigo (Cerezo & González García, 1996; Edelenbos et al., 2011; Brace & Geoghegan, 2010; Aitken, 2009). Em qualquer dos casos, está-lhe subjacente uma relação dualista com o conhecimento científico. Porém, as análises dicotómicas, que caracterizam estes dois tipos de conhecimento como diametralmente opostos e de fronteiras rígidas entre si, têm sido crescentemente questionadas (Agrawal, 1995; Clark & Murdoch, 1997; Berkes et al., 2000; Fortmann & Ballard, 2007; Bohensky & Maru, 2011; Aikenhead & Ogawa, 2007; Aitken 2009).

No entanto, a relação entre conhecimento local e conhecimento científico tem sido objeto de múltiplos estudos: desde as clássicas investigações de M. Callon (1986) sobre os pescadores da Bretanha e a tentativa de replicar em França uma técnica observada no Japão, para resolver o problema da diminuição de vieiras, e de B. Wynne (1992) sobre os pastores da Cumbria e contaminação radioativa de Chernobyl, até ao trabalho de Fortmann & Ballard (2009) sobre a combinação de conhecimento entre cientistas profissionais e peritos locais (cientistas civis) na gestão de florestas, passando pelo estudo de Dewulf et al. (2004) sobre a colaboração entre agricultores e académicos numa iniciativa de conservação do solo no Equador ou de Aitken (2009) sobre os debates em torno da localização de um parque eólico na Escócia. De uma natureza diferente é a comparação de três sistemas de conhecimento diferentes, indígena da américa do norte, neo-indígena no Japão e ciência eurocêntrica efetuada por Aikenhead & Ogawa (2007) ou a revisão de literatura sobre a integração entre conhecimento indígena e ciência e respetivas implicações sobre a criação ou manutenção da resiliência dos sistemas socio-ecológicos de Bohensky & Maru (2011).

Outra temática que também tem merecido uma atenção redobrada nesta área é a da mobilização do conhecimento local nas práticas de gestão ambiental: vide as sínteses de literatura efetuadas por Berkes et al. (2000), Davis & Wagner (2003) e Conrad & Hilchey (2011).

Enquanto alguns trabalhos dão conta da obrigatoriedade de integração do conhecimento ecológico tradicional na avaliação ambiental e gestão de recursos no Canadá (Usher, 2000), outros salientam a continuada falta de integração do conhecimento local nos processos de planeamento e decisão política, aplicado aos casos de parques eólicos na Escócia (Aitken, 2009), de gestão dos riscos de cheia (Brown & Damery, 2002), no ordenamento de zonas costeiras no Reino Unido (O'Riordan, 2005), na gestão da água na Holanda (Edelenbos et al., 2011) ou na compatibilização das actividades da pesca e aquicultura na Noruega (Maurstad et al.., 2007) Sobre a questão específica das alterações climáticas existem múltiplos estudos que dão conta da perspetiva leiga ou local deste problema global.

Ainda que alguns se baseiem em metodologias mais extensivas, como inquéritos à população (Bulkeley, 2000), a maioria são estudos de caso locais: veja-se, por exemplo, o número especial da revista Climatic Change exclusivamente dedicado ao conhecimento indígena das alterações climáticas (Green & Raygorodetsky, 2010), o trabalho de Paton e Fairbairn-Dunlop (2010) sobre Tuvalu, de Sakurai et al.. (2011) sobre os festivais de cerejeiras em flor no Japão ou a investigação de Huntington et al.. (2004) sobre as mudanças ambientais observadas no Ártico. Dolan & Walker (2004) apontam limitações à avaliação de impactos das alterações climáticas nas zonas costeiras efetuadas pelo Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) e salientam a necessidade de uma abordagem de investigação com base na comunidade para identificar as vulnerabilidades locais, mas também as capacidades de adaptação e resiliência.

ainda estudos dedicados ao conhecimento específico que detêm as comunidades piscatórias na gestão de stocks pesqueiros marinhos (Johannes et al.., 2000; Mackinson, 2001; Davis & Wagner, 2003; Silvano & Valbo-Jørgensen, 2008; Griffin, 2009; Le Fur et al.., 2011) e em água doce (Eden & Bear, 2011) e sobre a participação de comunidades costeiras na gestão dos riscos (Dolan & Walker, 2004; O'Riordan, 2005; O'Connor et al., 2010; Soma & Vatn, 2009; Barros et al., 2010).

Em Portugal este é um tema relativamente pouco explorado. Por um lado, as comunidades piscatórias são as menos estudadas pelas ciências sociais, com exceção de alguns trabalhos etnográficos (Meneses & Mendes, 1996; Nunes, 1999 e 2006; Martins, 1999), históricos (Garrido, 2010) ou de um inquérito realizado nos Açores (Tomás & Medeiros, 2006). Sobre a questão específica da inclusão dos pescadores nos processos de gestão dos recursos marinhos, trabalhos realizados sobre a participação de stakeholders na governança coletiva de áreas protegidas marinhas da Arrábida (Vasconcelos et al.., no prelo a; no prelo b) e das Berlengas (Santos et al.., no prelo).

Este artigo pretende ser um contributo para a literatura desta área, tendo como objetivo principal compreender que conhecimento local detêm os pescadores artesanais sobre as mudanças costeiras e as alterações climáticas, sobre as intervenções que, ao longo dos últimos anos, têm sido feitas na costa e avaliar em que medida esse conhecimento tem sido (ou não) aproveitado na gestão da costa. Baseia-se num estudo de caso exploratório, sustentado em entrevistas em profundidade a pescadores de três locais na costa portuguesa.

2. Metodologia Este artigo é baseado em alguns resultados do projeto de investigação CHANGE - Mudanças Climáticas, Costeiras e Sociais - erosões glocais, conceções de risco e soluções sustentáveis em Portugal (PTDC/CS-SOC/100376/2008), financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, em curso no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, com a participação de uma equipa da Faculdade de Ciências da mesma universidade. Este projeto assume uma abordagem marcadamente interdisciplinar, combinando metodologias das ciências sociais - sociologia, história, antropologia - com abordagens das ciências naturais. O projeto incide sobre três zonas do litoral Português: a Vagueira, na região de Aveiro; a Costa da Caparica, na região de Lisboa; e Quarteira, na costa sul do Algarve (ver figura_1)

2.1. As áreas de estudo Estas três zonas têm semelhanças óbvias: são antigas vilas de pescadores (que praticavam a técnica de pesca da arte xávega [2] e registam movimentos migratórios entre si - Souto, 2003) transformadas nas últimas décadas em destinos turísticos, consideradas extremamente vulneráveis à erosão costeira e com elevadas taxas de recuo da linha de costa. Em todas elas, o turismo e a pressão urbana trouxeram a necessidade de proteger a costa com estruturas de defesa rígidas. Campos de esporões foram construídos durante os anos 60 e 70, criando condições para uma pressão e ocupação humana ainda maior, enquanto aumentava a jusante o recuo da costa. A afluência da população ao litoral continuou a crescer a um ritmo incessante, bem como a construção na frente urbana. Atualmente manter a linha de costa é considerado crucial para a sobrevivência económica destas três zonas. Apesar de terem em comum dinâmicas de crescimento recentes caracterizadas por uma forte pressão urbana, estas três áreas sofreram diferentes processos de ocupação, têm dinâmicas sociais muito diferentes e apresentam níveis de erosão costeira diferenciados, permitindo assim importantes análises comparativas (Schmidt et al.., 2012).

A zona de estudo da Vagueira - desde a Praia da Barra até ao sul da praia da Vagueira - está localizada na costa ocidental - a sul do Porto de Aveiro - na que é considerada uma das zonas costeiras mais energéticas da Europa. O troço Barra-Vagueira é fortemente condicionado pelas constantes obras de manutenção do Porto de Aveiro. Esta é a secção atualmente em maior risco neste troço e onde as intervenções de defesa costeira parecem surtir menores resultados. Nos últimos Verões, a praia deixou de existir na maré alta, ficando a rebentação a tocar o enrocamento recentemente construído, panorama agravado pela falta de acessos à praia. A população desta zona aumentou 20% nos últimos 20 anos, a construção aumentou 28% no mesmo período de tempo e a ocupação sazonal chega a ser de 64% (Censos 2011). Ocupado maioritariamente por residências secundárias (boa parte dos proprietários é oriunda do eixo Viseu-Guarda), a desvalorização deste território é cada vez mais sentida, face ao avanço notório do mar nos últimos anos.

O troço costeiro da Costa da Caparica - da Cova do Vapor até à Fonte da Telha - está localizado a sul da embocadura do rio Tejo, a cerca de 10 km de Lisboa.

Ocupa a zona superior do arco Costa da Caparica - Cabo Espichel. Em tempos um dos principais destinos turísticos da Área Metropolitana de Lisboa, tornou-se mais recentemente num subúrbio de capital, com cerca de 13,5 mil habitantes (um aumento de 15% entre 2001 e 2011), tendo a ocupação sazonal diminuído nos últimos 20 anos, de 70% em 1991 para 53% nos Censos de 2011. Este troço costeiro tem enfrentado sérios problemas de avanço do mar nos últimos invernos, em particular desde 2006, chegando mesmo a ocorrer a destruição de bares de praia e a inundação de parques de campismo, o que implicou intervenções por parte das instituições responsáveis (no caso, o Ministério do Ambiente), nomeadamente o reforço dos esporões e uma sucessão de enchimentos artificiais.

A zona de estudo de Quarteira - um troço costeiro de oito quilómetros que se estende desde o empreendimento turístico de Vilamoura até ao resort de Vale do Lobo, incluindo a zona urbana de Quarteira - está localizada na costa sul do Algarve. Esta costa é abrigada da agitação com origem no Atlântico Norte, tendo um regime de agitação menos energético que a costa ocidental. Quarteira é uma zona marcadamente turística, atualmente com 21,8 mil habitantes, tendo a população duplicado nos últimos anos, e com uma população sazonal que tem vindo a aumentar, tendo atingido os 59% em 2011. Aqui, a construção da marina de Vilamoura e do campo de esporões acelerou os processos de erosão a leste, em particular no limite da zona urbana de Quarteira, depois do último esporão, e na zona de Vale do Lobo, onde o areal recuou tanto que algumas habitações daquele resort tiveram de ser demolidas e outras deverão ser demolidas ou recuadas em breve. Este troço costeiro foi alvo de três vastos enchimentos artificiais entre 1998 e 2010.

2.2. Recolha e análise de dados Este artigo sustenta-se em entrevistas realizadas a pescadores artesanais dos três locais, integradas num conjunto mais vasto de entrevistas semi- estruturadas a stakeholders, efetuadas entre Maio de 2011 e Janeiro de 2012 [3]. Com a exceção de um dos pescadores da Vagueira com 26 anos e pescador mais de 10, todos os outros tem mais de 50 anos de idade e mais 30 anos de atividade pesqueira. Todos eles são das respetivas áreas em estudo, embora nalguns casos (como a praia da Vagueira de origem mais recente) mais tarde se tenham fixado na zona costeira específica onde residem atualmente. O objetivo era captar as perceções públicas dos riscos costeiros e alterações climáticas, o conhecimento e avaliação tanto das intervenções costeiras como da atuação das instituições responsáveis, o envolvimento e participação nos processos de decisão e ainda as visões sobre o futuro da costa, nomeadamente soluções de financiamento e formas alternativas de gestão do território. Os tópicos abordados de forma sistemática em todas as entrevistas foram os seguintes:

- Percepção do problema do avanço do mar e da erosão costeira (zonas em risco, atividades e grupos sociais mais afetados); - Politicas e poderes (eficácia das intervenções costeiras, efeitos dessas intervenções nas pessoas, entidades com poder na costa, confiança na gestão costeira) - Participação (envolvimento e influência nas decisões, mecanismos alternativos de participação) - Futuro (impactos das alterações climáticas na zona costeira, medidas de prevenção, financiamento das intervenções, relocalização de pessoas e atividades).

Foram assim entrevistados nove pescadores artesanais nos três locais de estudo, representando comunidades de poucas dezenas de indivíduos. Como recomendado por Berkes et al. (2000) e Davis & Wagner (2003), a seleção dos peritos em conhecimento local entrevistados obedeceu a critérios uniformes: foi identificada em cada comunidade uma personagem-chave, pela sua posição institucional (no sindicato dos pescadores na Costa da Caparica e na associação Quarpesca em Quarteira) ou pela sua antiguidade (pescador mais antigo da Vagueira, uma vez que não existe um sindicado ou associação de pesca na zona), a quem foi pedido que sugerisse outros nomes para as entrevistas seguintes (recomendação de pares). As entrevistas foram integralmente transcritas e foi realizada uma análise de conteúdo através do software Maxqda.

3. Resultados As entrevistas realizadas em profundidade permitem conhecer a extensão do conhecimento local dos pescadores das três zonas de estudo sobre as características da costa e dos ecossistemas, mas também sobre as causas e consequências das mudanças costeiras e sobre as obras de intervenção feitas.

3.1. Conhecimento local dos pescadores Os pescadores, por inerência da sua atividade profissional, por residirem geralmente em grande proximidade ao mar e por com frequência se verificar a reprodução profissional intergeracional (herdarem o ofício dos pais e serem por eles socializados na profissão), detêm conhecimento específico sobre o mar e a costa. Marés, ventos, correntes, fauna marinha são fenómenos rotineiramente observados e sobre os quais desenvolvem capacidades de previsão. Houde (2007) caracteriza isto como a primeira face do conhecimento ecológico tradicional, o corpo de observações factuais e específicas, conduzidas ao longo do tempo, que os habitantes locais são capazes de gerar.

As entrevistas são ilustrativas desse conhecimento local resultante de observações acumuladas ao longo do tempo:

Aqui a ondulação vem quase sempre pelo Noroeste, mas os ventos são quase sempre de Oeste, Sul e Sudoeste. Aqui é uma costa muito amarada, a Costa da Caparica é uma das costas mais ao mar da plataforma continental e então está muito exposta aos ventos sul e sudoeste. (Entrevista 5, Costa da Caparica) Esta praia aqui tem uma coisa muito boa, a gente aqui não apanha correntes de rio, é uma praia suave que não faz aqueles agueiros grandes; o mar ali mais para baixo é muito fundo, mas não sendo tão fundo quando é Inverno também faz aqueles redemoinhos muito grandes; mas é uma zona boa, a esse respeito. (Entrevista 6, Costa da Caparica)

O conhecimento local tem muitas vezes profundidade histórica (a terceira face do conhecimento ecológico local, segundo Houde, 2007), sobretudo nos pescadores mais velhos, com várias décadas de experiência profissional. Nos três locais em estudo o recuo da linha de costa é um fenómeno observado ao longo dos anos, medido muitas vezes não em metros mas em pontos de referência.

Quando era menino trabalhava aqui e tinha de andar meia hora para chegar ao mar da Vagueira e agora não tenho praia para trabalhar.

Agora está o mar aqui nos cabeços. Havia dunas que você ia para e se se escondesse eu tinha de andar meio-dia à sua procura que não a encontrava. ( ) quando eu era miúdo havia uma bomba de água para dar comer aos bois e primeiro que os bois chegassem à praia, à beira da água, demoravam mais de 20 minutos. (Entrevista 4, Vagueira) Quem conheceu a praia da Trafaria como eu a conheci com uns centos de metros de areias, hoje a água bate contra a muralha. (Entrevista 5, Costa da Caparica) O mar tem sempre tendência a crescer, lembro-me quando era miúdo onde estava o mar e onde está agora, não é? (...) o meu ponto de referência era em baixo no Cavalo Preto, no forte, e vê-se agora onde estão as pedras do forte, estão dentro de água, portanto o mar tem vindo a comer, tem vindo galgando, tem vindo a crescer, e se não fosse por estes molhes não tínhamos praia.(Entrevista 9, Quarteira)

Outro fenómeno associado também observado pelos pescadores é o desaparecimento da areia das praias, principalmente na Costa da Caparica e na Vagueira onde os processos de erosão costeira têm sido mais acentuados do que em Quarteira.

Aqui na frente urbana e não , portanto desde a Cova Vapor até à Lagoa de Albufeira, desde os anos 60 para o fenómeno tem-se sentido de forma drástica, tudo o que é areia tem desaparecido.Nós aqui que trabalhamos com a arte xávega, que é feita no mar e em terra, nós temos verificado ao longo dos anos que a erosão se tem feito sentir e cada vez mais. (Entrevista 5, Costa da Caparica) As areias começaram aqui a fugir a fugir, e fugiu. Agora, (...) a uma milha para de distância, acho que se tem agarrado areia, ( ) o mar não está tão fundo, porque quanto mais fundo o mar mais vem bater à terra (Entrevista 3, Vagueira)

A memória histórica do local abrange também as tempestades e a vulnerabilidade das populações a estes episódios extremos, hoje mais matizada graças às obras de defesa costeira entretanto construídas a partir dos anos 60 e sobretudo 70.

Ultimamente tem havido muito mais ondulação, tem sido muito mais forte; as tempestades tem havido, aqui na Costa também caíam muitas tempestades e eu ainda me lembro quando era jovem, eu recordo-me muito bem (...) do mar numa noite levar 16 estabelecimentos de banhos. Lembro-me muito bem de o mar vir até à linha do comboio Transpraia e danificá-la.(Entrevista 5, Costa da Caparica) uns trinta anos, veio o mar duas vagas, nas suas costas acolá, àquele café ( ), rebentou tudo, veio, tinha o barco da banda de , o barco veio, veio ali para a estrada também. ( ) ficou afetado ali naquela casa e na outra que está ali, que era o palheirão, o mar botou para dentro, partiu as portas, partiu tudo, entrou por adentro e foi ter acolá abaixo onde está a rotunda, foi até .

(Entrevista 3, Vagueira) muitos anos atrás havia temporais que nós muitas vezes, comentando com algumas pessoas de mais idade diziam mesmo agora, não temporais. Eu acho que agora o problema é que quando ele vem é vento com força, pode rebentar com tudo e depois desaparece. Antigamente não, eram 15 dias, 20 dias sempre com mau tempo, mau tempo, mau tempo.(Entrevista 8, Quarteira)

No que respeita às causas das mudanças costeiras, nomeadamente a erosão e recuo da linha de costa, os pescadores locais identificam tanto causas naturais como antrópicas, com mais frequência apresentadas em conjunto que isoladas (multicausalidade). Entre as causas mais referidas estão os fenómenos naturais, como ventos, marés e correntes.

Se os ventos forem de Norte, Leste ou Nordeste a areia vem sempre para terra; se os ventos forem contrários, amarados, a areia desaparece, vai para o rio. (Entrevista 5, Costa da Caparica) Se o vento está norte a areia puxa para cima, se fizer outros ventos puxa para o mar; mas mexe-se nas areias no mar e também se nota a diferença em terra, como andaram a mexer na Costa? se faltar areia, se a areia não estiver tem mais tendência o mar a avançar ( ). (Entrevista 6, Costa da Caparica)

Mas também as dragagens de areia, fenómeno antrópico criticado pelos pescadores:

Nós tínhamos uma defesa muito grande no rio Tejo que era entre a Cova do Vapor e a cova do Bugio, nós tínhamos ali uma ilha de areia, uma coisa enorme, e com as obras da Expo e com as obras do Isaltino Morais em Oeiras, em que nos garantiram a nós que a areia ia ser tirada de dentro da barra de Lisboa, e resolviam dois casos: tiravam alguma areia e desassoreavam a barra. Nós pescadores constatámos muitas vezes que a areia estava a ser retirada num sítio que não era o sítio que tinha sido destinado. (Entrevista 5, Costa da Caparica) Tem muito a ver com as areias na barra. Muito. Agora eles deixaram porque, sabe que aqui dez, quinze anos atrás andavam - ainda aqui coisa de cinco/seis anos - andavam a vender areia para a Espanha e a gente a precisar dela! ( ) É a pesca da areia!(Entrevista 3, Vagueira) O que eu digo é que ao tirar a areia, com as dragas, vai ficar um buraco e eu quando vou no meu barco eu passo em sítios onde um buraco enorme onde a draga dragou. Ao tirar essa areia a água recuou e vai ficar outro buraco ( ). O que é que acontece? Ao levar as areias o mar avança, porque a parte onde está o areal é mais baixa.

(Entrevista 8, Quarteira)

Como se constata em alguns destes extratos, este conhecimento dos pescadores sobre a extração de areias é um saber incómodo, que põe em causa importantes interesses económicos (Schmidt, 2008; Dias, 2005). Um dos entrevistados chega a narrar um episódio de denúncia à capitania:

Eu telefonei para a Capitania, porque andavam aqui em obras ( ) eles ligaram para o comandante e eu disse: Oh meu comandante, eu sou proprietário da arte xávega, e estou a ver aqui, um construtor aqui - o engenheiro M, fui falar a dizer Então, vocês andam aqui a tirar a areia para onde? Isto não pode ser. E eles falaram, Quem é você? [ ]. uns 15 anos. Não são sempre os mesmos, depois disse quem era, identifiquei-me e disse: Isto necessita muito cuidado, com a praia, porque estão a desaparecer aqui as areias.. Então ele mandou um cabo passar aqui. Esteve ali na sala comigo e perguntou-me quantas carradas tinham saído.(Entrevista 2, Vagueira)

Outro entrevistado referiu como causa da erosão costeira a construção de paredões e esporões:

Esta construção pesada junto à frente urbana, mais toda a pedra que meteram nos esporões, na própria muralha - pedras daquelas que têm toneladas - deu origem a que de facto estas areias foram levadas pelo mar ( ) dá-nos a crer que a obra, que a construção pesada origem à erosão, porque nós aqui no Sul da Costa da Caparica temos as praias praticamente intactas, ainda temos os mecos, as dunas, não houve construção pesada, é o que nos leva a pensar. (Entrevista 5, Costa da Caparica)

e outro a remoção de vegetação nas dunas (neste caso as acácias, uma espécie infestante):

Cavar oposto ao mar é a maior asneira que pode haver, porque quando o mar ameaça como ameaçou, enquanto as raízes, das árvores, são muito importantes, oposto ao mar, não é? Agora cavaram, libertaram aquilo, agora quando o mar ali rebentar, claro não tem salvação. ( ) As acácias todas ali, andaram com as máquinas a varrer as árvores, sabe? Eu nem acredito que aquilo foi uma sugestão do [Ministério do] Ambiente. ( ) Então o Ambiente, a gente corta uma árvore cai em cima da gente, eu não acredito que aquilo tenha sido uma sugestão do Ambiente. Eu não quero crer como é que não houve fiscalização do Ambiente ( ) Agora eles arrancaram as acácias, que até na minha maneira de ver ajudam a segurar [a areia], não é?(Entrevista 2, Vagueira)

Dois entrevistados mencionaram a regulação do curso dos rios, nomeadamente através do encanamento e da construção de barragens:

Temos a experiência, que julgo que de alguma forma também influencia é os rios. Como é o caso ali do rio junto a Loulé Velho, o rio Almargem. O que é que acontece, o mar entrava pelo rio e tínhamos o rio que vai dar não sei onde e outro em Vilamoura e aliás temos ali ao lado uma ribeira ( ) e o mar quando sobe entra por adentro, hoje não acontece e tínhamos três rios aqui. De Inverno não acontece, agora fecharam completamente, puseram um tubo para que o mar possa entrar e ir ter com o rio. (Entrevista 8, Quarteira) Tenho ouvido dizer que também a construção de barragens também tem influência direta sobre isso, porque não trazem os sedimentos que antes vinham quando os rios estavam abertos, não é? (Entrevista 7, Quarteira)

Foi ainda referido, por alguns entrevistados, o papel desempenhado pelas alterações climáticas na subida do nível do mar, um tema que outros stakeholders locais não referiram espontaneamente nas entrevistas realizadas.

Normalmente a malta fala, e eu também não sou habilitado para responder a esse tipo de perguntas, mas o aquecimento global, não sei se tem alguma coisa a ver, penso que sim, como uma pessoa nas notícias. Por o mar crescer, parece ser essa a maior causa. O gelo derreter na Antártida e nessas coisas(Entrevista 1, Vagueira) Se continuar assim vai ser muito mau, com o degelo das calotes polares a informação é de que o nível do mar vai aumentar, as catástrofes naturais vão aumentar, se nada for feito daqui por 20 anos não vamos ter aqui na frente urbana praticamente areia nenhuma (Entrevista 5, Costa da Caparica).

Neste tema, na maior parte dos casos, o conhecimento provém não da experiência local, mas sim da informação veiculada por especialistas, através dos mass media (que vários estudos demonstraram ter um papel crucial na perceção pública das alterações climáticas - Stamm et al. 2000; Corbett e Durfee 2004; Sampei 2009):

Eu às vezes ouço na televisão eles dizerem que é o gelo que está a derreter na Antártida e no polo norte e que está a derreter e prontos. ( ) Acho que vai ter a importância toda, porque se for conforme eles dizem e o que passa na televisão ( ) não quer dizer que seja para o ano ou aqui por 2 anos, mas a longo prazo isto vai-se refletir. Aqui?o mar cresce, não tem nada para guardar, portanto é subir, tem água por demais, o gelo derretendo vai subir (Entrevista 4, Vagueira) As depressões, as altas pressões. por causa do polo norte, por causa do gelo do glaciar, os cientistas fazem esses estudos.

(Entrevista 9, Quarteira)

No entanto, na Vagueira, atendendo ao papel que a pesca do bacalhau desempenhou na economia local (Garrido, 2010), alguns casos de experiência direta ou indireta do degelo no Ártico (através de informantes privilegiados como o caso de um dos pescadores entrevistados que no passado trabalhou na pesca do bacalhau no Atlântico norte).

O polo norte está-se a desfazer; como o polo norte se desfaz a água cresce. Ora, quanto mais a água cresce para cima ( ) Porque ela aumenta e eu escuto, também ouvi falar, o polo norte estar a derreter. ( ) Escuto as pessoas que trabalham, onde andam ao bacalhau. Pescadores mesmo. Tenho ouvido falar capitães de navio. Às vezes aparecem para falar comigo. Eles dizem que o Pólo Norte está-se a desfazer no dia-a-dia. (Entrevista 3, Vagueira) Quando eu tinha 18 anos eu estive metido no gelo, ( ) parámos uns três dias no gelo no canal de São Lourenço, agora ninguém se mete, porque o gelo desfez-se e, claro, aumentou o nível da água. ( ) Eles falam do iceberg, não é? Eu tenho experiência disso, porque a gente navegávamos muito, entre ilhotas de gelo, é que recolhe as águas. ( ) (Entrevista 2, Vagueira)

Tendo-se estabelecido que os pescadores artesanais detêm um conhecimento empírico aprofundado do ambiente local, convém examinar agora a sua participação e envolvimento nos processos de gestão costeira.

3.2. Conhecimento local e planeamento e gestão da costa Quando interrogados sobre as obras costeiras que têm sido feitas nos três locais com o objetivo de travar a erosão, os pescadores frequentemente manifestam o seu desacordo, sustentando-se no conhecimento que detêm das especificidades locais.

Por um lado, verificam que muitas das obras costeiras, nomeadamente as dragagens de areia, prejudicam a sua atividade profissional, sobretudo as condições necessárias à arte xávega e a disponibilidade de peixe.

Nós somos prejudicados também porque as condições neste momento junto à orla costeira, nós para varar as embarcações temos de as meter num sítio seguro, esse sítio seguro foi agora a construção de mais uma rampa para podermos varar as embarcações, porque se as pusermos debaixo da muralha é uma vez chegarmos e não estarem ... Tem prejudicado as pessoas, tem prejudicado aqui a pesca, a arte xávega, que se pratica na Costa da Caparica e que queremos continuar ( ) precisamos de areia para trabalhar. (Entrevista 5, Costa da Caparica) Eu não tenho condições para trabalhar derivado ao cabeço de areia que se formou ali, pelo mar dentro, rebenta por todo o lado. Às vezes com o mar manso ali em Mira conseguem trabalhar e nós não conseguimos derivado à rebentação ( ) Não conseguimos sair com os barcos. Quanto mais baixo é o mar, mais rebentação faz.(Entrevista 4, Vagueira) Porque as dragas têm reposto as areias na praia mas também destrói habitats (na minha opinião). Não sou biólogo mas na minha opinião destrói habitats. E o peixe anda onde sente comedores, onde não sente, desaparece! É a minha opinião. ( ) Desde a primeira vez que puseram areia nas praias, retirada do mar - aqui em frente da nossa costa - houve certas espécies migratórias que deixaram de aparecer na nossa costa. (Entrevista 7, Quarteira)

Por outro lado, a opinião que os pescadores da Vagueira e da Costa da Caparica têm sobre a eficácia das intervenções é genericamente negativa, quer a construção de esporões e defesas duras:

O que eu acho é que se construírem aquelas paredes de rocha o mar tem tendência, quando bate , a levar as areias; quanto a mim isso deve ser feito em último caso. ( ) O mar quando bate tem tendência a levar as areias, é o caso daquela parede que fizeram na Costa, o mar bate e por vezes quando bate leva a areia, vai batendo e vai levando a areia, acho que quanto mais se encher mais o mar puxa.

(Entrevista 6, Costa da Caparica) Esta situação tem-se agravado derivado aos paredões que têm feito, os paredões que fizeram, vieram beneficiar de um lado, mas vieram prejudicar noutro, por exemplo onde eu estou a trabalhar o paredão que fizeram no Areão veio agarrar areia do norte, 200, 300 metros de areia para o mar. Em contrapartida para o sul do paredão comeu os mesmos 200 metros para dentro. (Entrevista 4, Vagueira)

quer o enchimento das praias com areia.

Esta areia tem sido uma medida eficaz para mandarmos vir para Portugal o Fundo Monetário Internacional, porque aquilo que estão a fazer com a reposição de areias para estão a tirar areia de onde ela se calhar faz falta, estão a metê-la aqui e isto é a mesma coisa que meter um pacote de açúcar dentro de uma chávena de café ( ). Têm gasto milhares e milhares de contos e a areia é aquilo que se , fica alguma, ( ) mas muito pouca; estou a pensar que, se fizerem reposição de areias, metê-la num lado e tirar do outro, em princípio, se metessem areia no mês de Maio, era possível que até finais da época balnear as praias tivessem areia, que eu não garanto é que depois da época balnear terminar até novamente a Maio essa areia se consiga suster, não, não consegue, esta não é a solução. (Entrevista 5, Costa da Caparica) Põem a areia ali ao sopé do mar. Vão buscar a areia ao mar para pôr ali e o mar leva tudo, é como manteiga, vem e leva aquilo tudo outra vez. ( ) Vão buscar ao mar para pôr nos cabeços, muito próximo.

Ora aquela areia é balofa e o mar quando vem acima, leva-a a toda outra vez.(Entrevista 4, Vagueira)

É interessante notar, nos extratos acima apresentados, as analogias e metáforas usadas pelos pescadores para fazerem sentido e transmitirem fenómenos complexos como o impacto das estruturas físicas e o desaparecimento de sedimentos.

Se na Vagueira e na Costa da Caparica a eficácia das obras de defesa é muito criticada pelos pescadores, em Quarteira a posição dos entrevistados é distinta, no sentido de ser bastante mais favorável quanto ao sucesso das obras costeiras. Tal deve-se também ao facto de o porto de pesca ter sido construído em resposta às reivindicações dos pescadores.

Em Quarteira deixámos de ter problemas desde que se fez o porto de pesca de Quarteira e quando se fez os esporões em 72 deixou de haver problemas, porque o mar avançava ali pelas casas na avenida. ( ) Mesmo com muito mau tempo, chega ali a maresia, um vento que traz algumas areias, mas que eu tenha conhecimento nunca mais aconteceu.

( ) Com essa proteção a praia de Quarteira ficou defendida ( ) O mar leva e sobe sempre para cima, mas aqui em Quarteira deixámos de ter esse problema. Por causa dos molhes, sem dúvida nenhuma.

(Entrevista 8, Quarteira) Se a areia da praia não fosse reposta ela não existia, a praia aqui em Quarteira, não é? ( ) Alguma eficácia têm, não é? É como lhe digo, o que conheço aqui a nossa costa, se elas não fossem feitas se calhar não tínhamos praia. Temos os esporões, mas os esporões por si - alguma coisa protegem a costa mas não são eficazes ao ponto de a manter. (Entrevista 7, Quarteira)

No entanto, com base no seu conhecimento específico dos locais em causa, quase todos os entrevistados exprimiram opiniões sobre como poderia ser melhorada a eficácia das intervenções na costa, fundamentalmente apresentando soluções técnicas alternativas.

Acho que devia haver esporões mas não os que existem. Estes esporões ( ), como estão muito perto uns dos outros, o mar ao entrar pelo meio faz ricochete, e automaticamente toda a areia que é concentrada entre os esporões o mar leva. Estes estão feitos a caminho do oeste, nós achávamos que os esporões deviam ser feitos oeste-sudoeste, para suster mais o temporal e a ondulação. Achamos que uns deviam ser mais curtos outros mais compridos, mas construir esporões de três em três quilómetros. (Entrevista 5, Costa da Caparica) A única alternativa que eu via nisto, e que eles devem ver até, mas se calhar ninguém está interessado em fazer ( ) seria pôr uma draga com uns tubos a baldear a areia do mar para fora, para os cabeços, e não como eles fazem, que põem a areia ali ao sopé do mar. ( ) Segundo eu sei na Holanda fizeram conforme eu estou a falar, dragaram do mar e puseram para a terra, afundaram o mar e puseram para a terra.

(Entrevista 4, Vagueira) Botar na encosta da duna. Nada de passar para trás da duna, tudo atrás da duna, sempre em correnteza, depois começava a criar o junco - a gente chama-lhe o feno - e começava a agarrar, eu penso assim.

Bom, vamos a ver, eu penso que se encostasse às dunas, que era capaz de segurar as praias mais um bocado. E sem pedra! ( ) Era tudo novamente uma duna feita por trás, uma duna nova a segurar a velha, porque o novo assegura sempre o mais velho. (Entrevista 3, Vagueira) O que eles tinham que fazer era um paredão ao fundo, sobre aquelas pedras, com um banquinho ao lado, com passadiços, ( ) isso é um projeto que eu tive na Junta. Eu disse vocês podiam pôr ali um paredão com meio metro, um metro de altura que não deforma nada, mas ficamos aqui defendidos das areias e dos ventos e era com um retorno, quer dizer, o paredão era feito e depois na parte sul à beira das pedras tinha um retrocesso, e quando o vento viesse com a areia era lançada outra vez na praia.(Entrevista 8, Quarteira)

Ainda que possa ser considerado que os pescadores não dispõem de conhecimentos técnicos para, em rigor, fazer este tipo de avaliação, seria útil e pertinente que os peritos e decisores responsáveis por estas intervenções na costa auscultassem e aproveitassem a experiência acumulada e o conhecimento empírico dos pescadores de cada local. De facto, tal como refere Beirle (2002), a qualidade das decisões ambientais melhora quando todos os stakeholders relevantes são envolvidos nos processos de decisão. No entanto, tal não tem acontecido:

Eu também acho que, quem essas ordens para fazer esse tipo de obras, não está tão dentro do assunto como, por exemplo um pescador, está. Porque eu acho que tem de ser feito, por exemplo, outras obras, mas porque cada praia é diferente. Aqui a praia da Vagueira é uma coisa, a praia de Mira, é outra coisa, cada praia devia ter uma maneira diferente de ser estudada. Não é fazer, olha vou fazer tudo igual para as praias todas, não! O mar não é igual aqui. Por exemplo o mar aqui está manso, na praia de Mira amanhã está, por exemplo com vagas de dois metros, aqui tem vagas de um metro. (Entrevista 1, Vagueira) Sabe que os pequeninos nunca são ouvidos em lado nenhum. ( ) os pescadores nunca foram ouvidos. ( ) nós trabalhávamos na praia de Mira quando fizeram o molhe e ninguém nos disse nada que iam fazer esse tipo de obras. ( ) Nunca ouvi nenhum pescador, nunca ouvi nenhuma pessoa, a vir pedir uma opinião ao pescador, para ser feita aqui alguma obra. ( ) entre os pescadores e outras pessoas quaisquer, não muito diálogo (Entrevista 4, Vagueira) Nós temos bons engenheiros que haviam de tirar às vezes confrontações é com as pessoas que vivem todos todos os dias nela; isso é que é o principal. ( ) nós, os pescadores da arte xávega somos pouco ouvidos, sabe. São uns homens que não têm valor nenhum. ( ) Os outros são mais. ( ) Todos esses armadores dos barcos grandes, têm outros poderes. Nós como somos os pescadores de terra, quase nunca somos ouvidos para nada; que na questão da arte xávega, sobre as praias, poucos que saibam tanto como estes pescadores. Não digo como eu, outros que ainda sabem melhor que eu.(Entrevista 3, Vagueira)

Quanto à recetividade das autoridades ao envolvimento dos pescadores e dos seus saberes nos processos de tomada de decisão, apesar de não terem sido formuladas perguntas especificamente sobre o envolvimento dos pescadores, foi identificada uma atitude genericamente negativa e de menosprezo quanto à participação das comunidades (Schmidt et al., no prelo).

Esta questão põe em realce a praticamente nula relação dos pescadores com os peritos e com as autoridades que têm o efetivo poder de tomar decisões sobre a costa.

Com os peritos científicos, a relação é algumas vezes de distanciamento e desconfiança.

Os da Universidade têm vindo aqui muitas pessoas. ( ) Eles às vezes ficam assim a pensar, vêm, tiram fotografias e tal e vão-se embora, porque eu também não pergunto nada.(Entrevista 3, Vagueira) Tive várias reuniões com o IPIMAR [Instituto de Investigação das Pescas e do Mar] alertando para a situação [desaparecimento de bivalves devido ao excesso de captura] e o que eles disseram é que havia bancos de amêijoa para apanhar. E eu fiquei descansado na altura e esperei, mas em poucos anos desapareceu a amêijoa completamente. Entretanto os barcos foram abatidos, nem fazem pesca aqui porque acabaram com o recurso que tínhamos aqui ( ) eu confrontei o Dr. do IPIMAR ainda pouco tempo sobre isso e a resposta que ele me deu é que desconhecem totalmente e que foram surpreendidos com águas ruins que apareceram na costa e que matou os bivalves, isso é o que eles me disseram. Mas eu não acredito nisso porque ( ) eu lutei para que se fizesse um defeso nem que fosse 2 ou 3 meses, mas não, foi uma pesca brutal em que nos deixaram a areia.(Entrevista 8, Quarteira)

São absolutamente esporádicos os casos de colaboração efetiva

Nós, sindicato, fizemos aqui dois ou três anos um trabalho envolvendo as pessoas ligadas ao sector do desaparecimento das areias, geólogos, pessoas que trabalham com a praia, para ver qual a melhor forma, a Costa Polis nunca ouviu os pescadores, nunca ouviu o sindicato, nunca ouviu ninguém. (Entrevista 5, Costa da Caparica)

ainda que alguns entrevistados exprimam o desejo que ela ocorresse:

Era o que eu estava a dizer, era um estudo bem feito, não aqueles, os entendidos, mas alguém que viva isto e que saiba como é que isto funciona também e cada um dar a sua opinião, fazer um apanhado e ver qual é a solução. ( ) os cientistas é que têm explicação para isto.

(Entrevista 3, Vagueira)

Um dos entrevistados em Quarteira narra um episódio em que é nítido o traçar de fronteiras (Gyerin, 1995) entre especialistas e leigos:

Numa reunião com IPTM em Lisboa levei um projeto [de um molhe para o porto de pesca] que fizemos aqui no computador e houve um senhor que me disse logo: reivindique mas não faça riscos, isso é connosco, não é com vocês. Reivindique, peça, faça o que for preciso, mas nós é que desenhamos e fazemos as coisas. Foi sete anos atrás. Quando se fez o molhe levei tudo aqui feito no computador, que aquele avanço dos 120 metros resolvia o problema do porto de pesca de Quarteira e não havia problema com a ondulação ( ). Eles diziam assim chega [100 metros]. Eles chegaram , olharam para o desenho e um começou a rir para o outro. E sabe o que é que aconteceu? Eu disse vocês estão a rir, mas eu não sei quem é que é parvo aqui ( ) sabe quem é parvo? quem fez aquele desenho daquele porto não percebe nada de portos ( ). Os engenheiros foram contar a quem fez o desenho ( ) e ele disse com uma grande calma: olhe, eu quero saber quem foi o senhor que disse que eu não percebia nada de portos. ( ) eu assumo aquilo que digo fui eu, Sr. Arquiteto e ele então o senhor não se vai embora que eu depois quero falar consigo, mas assim com uma arrogância. Estivemos ali e ele começou-se a explicar, as técnicas dele. Quando acabou a reunião eu levantei-me e ele apressa-se e vem direito a mim e disse: o senhor falou a verdade, porque o senhor teve toda a razão quando disse que quem fez isto não percebe nada de portos; quem fez fui eu. que, quando fiz eles meteram na gaveta porque o Ambiente não autorizava. Então o que é que eles fizeram? Cortaram o molhe e fizeram o porto de pesca assim porque assim é que o Ambiente autorizou. (Entrevista 8, Quarteira).

Este episódio permite destacar o papel que as autoridades têm mesmo na relação entre pescadores e peritos. Apesar da tecnocracia prevalecente tender a fundamentar as decisões nos pareceres técnicos, a interpretação destes e as escolhas recaem nos decisores políticos. As obras de defesa costeira são disso um exemplo paradigmático: apesar da indefinição de políticas de gestão costeira, da sobreposição de competências, da escassez de estudos de avaliação de risco, a defesa de linha de costa a qualquer custo tem sido sistematicamente promovida através da construção de dispendiosas defesas duras (Schmidt et al., no prelo).

No caso da administração central, os pescadores contestam sobretudo a falta de diálogo e de resposta às suas reivindicações, que são sobretudo relacionadas com a defesa da sua atividade profissional ou do local de residência, mais que com o propósito de promover a proteção da linha da costa ou combate à erosão.

Quanto a nós o INAG [Instituto Nacional da Água] podia ter feito as coisas de uma melhor forma, ouvindo as pessoas, portanto acho que fez como pensaram em fazer, em Portugal as coisas muitas vezes funcionam assim, ( ) não ouvem as pessoas. ( ) O INAG chegou à conclusão que uns esporões deviam ser diminuídos e outros deviam ser aumentados. O INAG devia agora vir dizer às pessoas quais foram os resultados, porque não resultados nenhuns, os esporões foram modificados mas a areia foi levada na mesma (Entrevista 5, Costa da Caparica)

fui duas vezes ao Ministério do Ambiente porque eu não tenho condições para trabalhar derivado ao cabeço de areia que se formou ali (?) fui 2 vezes ao Ministério do Ambiente para me deixarem passar para o sul do paredão mas não consentem. (?) Porque andaram a pôr a areia e pensam que os tratores que andam prejudicam. Faz tanto prejuízo uma pessoa passar de uma duna para outra como faz um trator a passar, ou se calhar menos. (Entrevista 4, Vagueira) Os pescadores criticam também a indefinição e/ou sobreposição de competências entre diferentes órgãos de poder central e local, claramente diagnosticada no âmbito deste projeto (Schmidt et al.., no prelo) que torna ainda mais difícil a expressão dos seus interesses e reivindicações.

A gente vai falar com a Câmara, a Câmara diz que é o INAG, antigamente era a Hidráulica ( ) A Câmara de Almada também a esse respeito não intervém. Às vezes precisamos de arranjar o telhado da casa. No tempo da Hidráulica a gente não podia mexer num tijolo, não podia mexer em nada. (Entrevista 6, Costa da Caparica) Tanto que a Câmara ainda agora quando eu fui, vai fazer o armazém e vai fazer na orla marítima e disse o presidente da Câmara que estavam à espera de um parecer do Ministério do Ambiente. ( ) 2 anos tinham um parecer do tenente da capitania que pela parte dele eu podia passar para o fundo do molhe, passou-me um papel para eu levar a essa doutora [do Ministério do Ambiente] que para eles estava tudo bem. E ela ficou de vir e nunca veio. (Entrevista 4, Vagueira) É, a câmara é quem manda aqui, mais o Ministério do Ambiente. ( ) Aqui os maiores que mandam aqui nisto é o Ministério do Ambiente.

Qualquer coisa que queiramos fazer, mesmo nós, temos de ir a Coimbra ao Ministério do Ambiente. E depois está a Capitania.(Entrevista 3, Vagueira) Quem é que manda mais aqui é o [Ministério do] Ambiente. Para se fazer alguma atividade, sem o aval do Ministério do Ambiente a capitania não as autorizações. A capitania está ligada ao Ministério do Ambiente, se ele não der parecer a capitania não (Entrevista 9, Quarteira)

A capacidade de reivindicação dos pescadores está fortemente dependente da mobilização coletiva. Enquanto na Costa da Caparica e em Quarteira associações fortes, capazes de reivindicar e, pelo menos, procurarem fazer-se ouvir pelas autoridades

Nós temos o sindicato e temos uma associação que foi constituída muito pouco tempo, que é a Amar a Costa, portanto eu sou vice- presidente dessa associação e essa associação quer, como associação para o desenvolvimento da terra, quer ser ouvida, tem pessoas, que podem dar um testemunho ( ) o Sindicato participou nas discussões públicas, mas nas reuniões em que o sindicato participou tudo aquilo que nós dissemos acho que não valeu de nada, participámos mas não fomos ouvidos.(Entrevista 5, Costa da Caparica) A doca de Quarteira, neste momento temos uma doca mais ou menos devido à nossa associação. O H. empenhou-se mesmo a 100% nisto, perdeu muitos dias de trabalho em relação a isto, à associação. Isto ajudou os pescadores todos. (Entrevista 9, Quarteira) E tenho perdido muito tempo da minha vida com isto, muitas vezes saído do mar, de direta vou para Lisboa ter reuniões. Quando eu vejo que as reuniões são produtivas e em benefício da nossa comunidade, eu vou, não tenho perdido nenhuma.(Entrevista 8, Quarteira)

O mesmo não acontece na Vagueira:

Você não sabe que os pescadores nunca foram unidos, têm-se uma raiva uns aos outros terrível. ( ) não temos cultura nenhuma e isso é o principal. Não sabemos onde nos havemos de dirigir, antes ainda havia o Tozé que fazia parte da associação de pescadores do norte, pertencia ao partido comunista e esse rapaz é que andava à frente desta porcaria toda quando eles queriam. (Entrevista 4, Vagueira)

Em suma, de acordo com o ponto de vista dos pescadores, as autoridades com poder de decisão sobre a costa são pouco sensíveis aos seus saberes e às suas reivindicações e tão pouco estão dispostas a acolher o contributo de quem tem experiência direta dos problemas costeiros e a integrá-lo no processo de tomada de decisão.

4. Discussão A análise das entrevistas permitiu retirar algumas conclusões importantes. A primeira é que os pescadores, devido à atividade que desenvolvem, à sua proximidade do mar e ao facto de existir uma grande reprodução inter-geracional da profissão (passada de pais para filhos) possuem um conhecimento muito rico e multifacetado sobre o mar e sobre a costa. Têm uma noção clara da evolução da costa, uma memória precisa de fenómenos passados e compreendem perfeitamente as mudanças costeiras e a sua multicausalidade. Admitem que, apesar das defesas construídas nas últimas décadas terem solucionado o problema do avanço do mar em determinados locais, são também um problema e a causa da erosão noutros troços de costa adjacentes.

Se por um lado, na Vagueira e na Costa da Caparica os pescadores são críticos das estruturas de defesa duras utilizadas, em Quarteira, por outro lado, estes parecem estar relativamente satisfeitos com os efeitos produzidos pelos esporões e pelas recargas de areia. De qualquer forma, em todos os locais, os pescadores apresentam soluções alternativas às existentes, fundamentadas no seu conhecimento prático e específico dos locais em causa. Reconhecem que o seu conhecimento não é científico (Não sou biólogo mas na minha opinião destrói habitats, como afirmava um pescador de Quarteira), admitindo, de certa forma, que não tem o mesmo valor, mas que ainda assim é um saber válido. Realçam sobretudo o cariz prático e localizado do seu saber, que tem mais-valias em relação ao conhecimento mais genérico dos peritos, e que portanto deveria ser tido em conta. Mas, de acordo com estes pescadores, não tem sido. E não o seu conhecimento não é incorporado nas soluções técnicas, como não são consultados aquando da tomada de decisões sobre a gestão da costa que os afetam diretamente, como de resto acontece com outros atores locais.

Tal demonstra que, num momento em que se assiste às duas tendências paralelas de, por um lado, conferir maior importância ao conhecimento local sobre fenómenos naturais, integrando-o tanto nas démarches da investigação científica como nos processos de gestão dos recursos e ecossistemas, e por outro lado, estimular a inclusão das populações nos processos de decisão política, numa efetiva democracia participativa (Berkes et al., 2000; Usher, 2000; Davis & Wagner, 2003; Conrad & Hilchey, 2011), isto não parece estar a suceder nos nossos casos de estudo. O conhecimento de quem vive na e da costa, nomeadamente os pescadores, não é tido em consideração no planeamento das intervenções costeiras e muito menos estes são chamados a participar nos processos deliberativos.

O nosso argumento é que dois fatores principais explicam este estado de coisas.

Em primeiro lugar, tal como os pastores da Cumbria no caso estudado por B.

Wynne (1992), os pescadores têm uma posição social desfavorecida e uma identidade social que tem sofrido uma substancial erosão nas últimas décadas.

Os pescadores caracterizam-se por baixas taxas de educação formal (60% não ultrapassa o primeiro ciclo do ensino básico - INE, 2011: 48) e baixos rendimentos (a remuneração base média mensal dos trabalhadores do sector da agricultura e pescas é 24% inferior à média total - MSSS, 2012: 13). As pescas, que foram um setor económico relevante em meados do século XX, atualmente representam apenas 0,29% do Valor Acrescentado Bruto nacional (DGPA, 2007: 4).

Os pescadores representavam em 2001 apenas 3,5‰ da população ativa em Portugal (quando em 1960 este valor era 14,‰) (INE, 2011: 47). A frota pesqueira diminuiu 27% entre 1995 e 2009 (Eurostat, 2011). Este decréscimo deve-se sobretudo às políticas comunitárias de pesca, que forçaram o desmantelamento de barcos e proibiram algumas práticas tradicionais, levando ao abandono da profissão de milhares de pescadores (Oliveira, 2011). As obras da costa e a concorrência com outros usos (marinas, praias balneares) têm também prejudicado os pescadores, sobretudo da arte xávega. De acordo com um dos especialistas em gestão costeira entrevistado no âmbito deste projeto, o realojamento dos pescadores é uma solução a que se recorre cada vez com maior frequência e está previsto em diversos Planos de Ordenamento da Orla Costeira pelo país.

A desvalorização social da atividade parece ter sido interiorizada pelos pescadores, refletindo-se numa auto-avaliação negativa do seu valor social (não temos cultura nenhuma e isso é o principal..., como referia um pescador na Vagueira). Assim, apesar de terem consciência da importância do saber que detêm, não se veem capazes de fazer valer este conhecimento aos peritos e decisores e revelam alguma capacidade de reivindicação quando representados em associações ou sindicatos. Isto reforça a importância da ação coletiva e marca uma diferença importante entre os nossos casos de estudo, podendo explicar o estado de maior fragilidade que a pesca tem na zona da Vagueira, em comparação com as outras zonas de estudo onde os pescadores têm formas de representação coletiva.

As barreiras ao reconhecimento como interlocutores válidos por parte dos peritos e decisores políticos provêm não desta posição ou desqualificação social mas também de uma incompatibilidade cultural (Wynne, 1992: 297) ou de uma diferença de cosmologias (Berkes et al., 2000; Houde, 2007). Uma estrutura de poder administrativo que valoriza o conhecimento credenciado, legitimado por graus académicos, recusa reconhecer a validade do conhecimento empírico dos pescadores, que não está registado por escrito e é transmitido oralmente, em aprendizagens intergeracionais (Wynne, 1992; Berkes et al., 2000). Assim, verifica-se que os interlocutores operam segundo diferentes enquadramentos das questões (Dewulf et al., 2004), parecendo quase que não falam a mesma língua.

Enquanto o conhecimento perito é estandardizado, as condições locais são variáveis: quem essas ordens para fazer esse tipo de obras, não está tão dentro do assunto como, por exemplo um pescador, está. Porque eu acho que têm de ser feitas outras obras porque cada praia é diferente (Entrevista 1, Vagueira). Enquanto o ethos tecnocientífico privilegia a previsão e controlo, o ethos local baseia-se na adaptação e aceitação do que é incerto (Wynne, 1992).

Os pescadores concebem a costa como mutável, pelo que têm uma maior resiliência ao risco.

O mar é um mistério. E tem um poder que ninguém tem. Ele pode destruir como pode não destruir. De um dia para o outro ele pode destruir tudo. É no sítio que calha, onde a gente não sabe.

(Entrevista 3, Vagueira) O mar é uma força da natureza que ninguém pode subestimar ( ) O mar é terrível, põe-se uma pedra quadrada e passado uns tempos a gente encontra-a fora e está redonda, rejeita tudo, não hipótese, não se brinca com ele. (Entrevista 9, Quarteira) É a natureza que vai ganhar. Porque depois a malhar daqui a água, a malhar daqui e dali, tudo pode se fazer. (Entrevista 2, Vagueira)

Em segundo lugar, é a própria relação dos decisores políticos com os cidadãos em Portugal que funciona como barreira à participação. As barreiras à participação pública têm sido abundantemente documentadas na literatura e muitos autores demonstram que, por um lado, existe um grande interesse por parte do público em participar, e por outro, um grande insucesso em termos do impacto social dos processos participativos (Buchecker, Hunziker & Kienast, 2002). Este fenómeno parece estar particularmente enraizado na sociedade portuguesa. Por parte da administração, persiste uma tradição que é centralizada, hierárquica e secretiva (Gonçalves, 2002: 250), favorecendo mais o exercício da autoridade baseada em crenças de ordem geral do que o aprofundamento das bases científicas das decisões ou o diálogo aberto e pluralista com grupos de interesse e movimentos sociais (Gonçalves, 2000: 201). Se a consulta a peritos científicos se tem vindo a rotinizar, muito em resultado de imposições europeias mas também da crescente pressão pública para legitimar decisões em contexto de controvérsias (Gonçalves & Delicado, 2009), a abertura à participação das populações nas decisões continua a ser incipiente. Mesmo quando esta é obrigatória, como nos Estudos de Impacto Ambiental (EIA), estratégias várias são mobilizadas para restringir a participação: escassa divulgação, difícil acesso à documentação, não apresentação de alternativas de projeto, discussão pública de obras em fase de construção (Chito & Caixinhas, 1993). Vários estudos de caso demonstram a pouca eficácia das audições públicas dos EIA (Nunes & Matias, 2003; Gonçalves, 2002). Para Lima (2004: 154), estas audições servem mais para informar o público que para debater com ele. Por outro lado, Crespo (2004) salienta as mudanças no sistema de gestão territorial das últimas décadas que alargaram as oportunidades de participação pública, atribuindo a sua pouca eficácia (níveis de participação fracos) à ausência de uma cultura técnica que veja o planeamento sobretudo como uma atividade comunicacional e menos como uma tradução prática do modelo racionalista dominante na teoria do planeamento até à década de 70 e, por outro lado, ao défice de cidadania existente na população portuguesa, designadamente o seu baixo nível de exigência em relação à administração pública (Crespo, 2004: 12). Predomina ainda na administração portuguesa uma conceção do público como ignorante, emocional, egoísta ou parcial (Lima, 2004, Gonçalves et al., 2007). Como tal, os processos de participação pública são frequentemente uma mera reação às imposições legais da União Europeia, o que por sua vez faz com que sejam ainda mais descredibilizados pelo público.

No entanto, quando conflito aberto, as autoridades são por vezes forçadas a abrir o debate. Foi a resistência e boicote dos pescadores aos planos de ordenamento da Parque Marinho da Arrábida que desencadeou o projeto MARGov, destinado a promover o diálogo entre atores-chave e promover a participação ativa das comunidades locais (Vasconcelos et al., no prelo a; no prelo b).

O alcance deste estudo é necessariamente limitado. Integrado num projeto bastante mais vasto e com objetivos mais alargados, baseia-se numa amostra de reduzida dimensão que não permite generalizar os resultados ao universo dos pescadores artesanais. Também não inclui as perspetivas dos cientistas e dos responsáveis pela gestão da costa sobre o conhecimento e a participação dos pescadores porque, apesar de estes intervenientes terem sido entrevistados, este tema surge apenas de forma assistemática e casuística nos seus discursos.

O trabalho realizado não permite igualmente contrastar os conteúdos dos conhecimentos leigos e peritos sobre fauna, ecologia ou hidrografia das áreas de estudo, mas essa nunca foi a intenção deste estudo e transcende largamente as competências dos autores.

No entanto, é importante referir que o que se pretendia com este artigo era principalmente dar a conhecer a ótica dos pescadores e demonstrar a existência de um saber local válido baseado na experiência quotidiana, que deverá ser aproveitado e integrado na tomada de decisões sobre gestão costeira.

5. Conclusão Este artigo tinha como objetivo investigar que conhecimento local detêm os pescadores artesanais sobre as mudanças costeiras e sobre as intervenções na costa e de que forma esse conhecimento tem sido, ou não, aproveitado na gestão costeira.

As conclusões aqui apresentadas baseiam-se num conjunto de entrevistas em profundidade a pescadores de três zonas costeiras em Portugal que, pelas suas características, permitem ilustrar as diferentes formas de conhecimento que se podem encontrar na costa portuguesa onde ainda se pratica pesca artesanal.

Este trabalho pretendeu sobretudo alertar para a importância de se auscultar o conhecimento local e integrá-lo nos procedimentos de investigação e gestão costeira. Neste sentido, este artigo é um contributo para este corpo de literatura e faz parte de um esforço para desenvolver investigação baseada na comunidade, centrada nos aspetos sociais da vulnerabilidade às alterações climáticas e às mudanças costeiras, permitindo fornecer pistas sobre a capacidade de adaptação e resiliência à escala local, como defendido por Dolan & Walker (2004).

A informação obtida permite, por um lado, reiterar o diagnóstico de deficit de participação das comunidades e a falta de diálogo entre decisores, peritos e populações. Por outro lado, possibilita retirar importantes lições acerca da validade do conhecimento local dos pescadores e para a forma como este conhecimento pode ser incorporado nos processos de gestão costeira em Portugal.

Caberá agora aos atores políticos criar os mecanismos para essa incorporação efetiva.


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