Metodologia para o traçado da Linha de Máxima Preia-Mar de Águas Vivas
Equinociais em ambientes de transição: aplicação ao estuário do Tejo (Portugal)
1. INTRODUÇÃO
1.1.Enquadramento e objetivos
Atualmente, grande parte da população mundial vive na proximidade de zonas
costeiras (sensu lato), o que levou à amplificação das pressões antrópicas
sobre estas zonas, criando um equilíbrio frágil entre os sistemas naturais e a
presença humana. Os instrumentos de gestão e ordenamento da zona costeira
procuram criar o quadro normativo para o desenvolvimento sustentável destas
áreas.
Frequentemente, os trabalhos realizados por equipas de investigação sobre a
zona costeira, bem como os realizados pelas entidades gestoras no
desenvolvimento dos instrumentos de gestão e ordenamento, requerem, para a sua
prossecução, a definição de leito e margem. No quadro legal português, esta
definição encontra-se na Lei 54/20051, resultante da transposição da Diretiva-
Quadro da Água2 para a legislação nacional. Este diploma no n°.2 do artigo 10°
define que "o leito das águas do mar, bem como das demais águas sujeitas
à influência das marés, é limitado pela linha da máxima preia-mar de águas
vivas equinociais" e adianta ainda que " (…) essa linha é definida,
para cada local, em função do espraiamento das vagas em condições médias de
agitação do mar, no primeiro caso, e em condições de cheias médias, no
segundo». O n°.1 do artigo 11° do mesmo diploma explica que: «entende-se por
margem uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito
das águas». O n°.6 do mesmo artigo esclarece ainda que «a largura da margem
conta-se a partir da linha limite do leito (…)». Deste modo, a marcação do
limite entre leito e margem está sujeita à definição prévia e traçado da Linha
de Máxima Preia-Mar de Águas Vivas Equinociais (LMPMAVE).
A importância e implicações práticas do traçado da LMPMAVE prendem-se com os
limites da área de competência na gestão e licenciamento de usos no leito e na
margem de diversas entidades que superintendem e regulam o domínio público
hídrico. Além disto, há ainda a considerar as ações judiciais para reclamação
da propriedade particular de terrenos do leito, conquistados ou contíguos a
ele, que implicam os diversos organismos que gerem os recursos hídricos e de
que há inúmeros registos na jurisprudência nacional.
A definição e traçado da LMPMAVE em sistemas de transição/estuários ganham,
também, particular importância no âmbito de outros aspetos ligados à
Diretiva-Quadro da Água, nomeadamente a avaliação do estado ecológico das
massas de água. No âmbito desta avaliação, torna-se necessária a construção de
cartografia detalhada, capaz de dar resposta à caracterização de alguns
subelementos de qualidade ecológica como é o caso das macroalgas oportunistas
(Scanlan et al., 2007), ou das angiospérmicas (Best et al., 2007; García et
al., 2009). Além disto, também a avaliação de fatores de perturbação antrópica
carecem da definição dos limites destes sistemas.
A materialização no terreno do conceito de LMPMAVE é particularmente difícil no
caso das "águas sujeitas à influência das marés", ou seja, no caso
de áreas de transição como os estuários, devido às suas características
hidromorfológicas e à diversidade de ocupação e uso do solo, sendo
frequentemente dominante a componente antrópica. Nesse sentido, torna-se
relevante a elaboração de um conjunto de critérios objetivos, mensuráveis no
terreno e de fácil aplicação, que possam suportar a definição o mais objetiva
possível deste limite em estuários.
O estuário do Tejo constitui o maior sistema de transição existente em
território nacional, onde se desenvolve a mais importante área urbana do país.
Torna-se, assim, relevante a definição de critérios objetivos para o traçado da
LMPMAVE, tanto mais que não está disponível nenhuma proposta deste limite para
este sistema de transição. O presente trabalho propõe, pela primeira vez, um
conjunto de critérios para o traçado da LMPMAVE no estuário do Tejo.
1.2. A Linha de Máxima Preia-Mar de Águas Vivas Equinociais (LMPMAVE) no
contexto português: caracterização e conceitos
De acordo com a Lei 54/2005 de 15 de novembro, a LMPMAVE é definida em
"condições de cheias médias» para as águas de transição. Águas de
transição são aqui entendidas como estuários e lagunas onde a influência da
oscilação periódica da maré se faz sentir permanentemente. A propagação das
marés nos estuários depende, entre outros fatores, da morfologia do sistema
estuarino e da afluência de caudais fluviais ao sistema.
Tendo em conta o enunciado, parece claro que é o conceito de cheias médias que
norteia o traçado da LMPMAVE em estuários. No entanto, o conceito de cheias
médias não é facilmente quantificável. É referido por Amaral & Fernandes
(1978) que "cheias médias, segundo o entendimento da Direção Geral dos
Recursos e Aproveitamentos Hidráulicos, são as que podem prever-se com a
possibilidade de ocorrência de uma vez em cada quatro ou cinco anos» (pág.84).
Também Tavarela-Lobo (1999) refere o mesmo entendimento (pág.203). É possível
prever valores de caudal fluvial para diferentes períodos de retorno, mas é
difícil aliar a estes valores de caudal cotas altimétricas que permitam
sustentar o traçado da LMPMAVE em ambientes de transição tendo por base
unicamente esse critério.
Talvez devido a esta dificuldade, surge o Despacho Normativo 32/2008 de 20 de
junho3 que estabelece que a LMPMAVE em zonas abrigadas de agitação marítima
(e.g., portos ou estuários) seja traçada pela curva de nível dos 2m (NMM). No
entanto, quando se procurou sobrepor esta cota altimétrica às observações de
campo, verificaram-se inconsistências relevantes, decorrentes da variação
espacial do nível de maré.
O trabalho publicado pela Administração de Região Hidrográfica (ARH) do Algarve
sobre a demarcação da LMPMAVE no litoral da costa algarvia (Teixeira, 2009)
defende que, no caso de estuários e lagunas permanentes, "o traçado da
LMPMAVE deverá ser feito caso a caso, conjugando a informação altimétrica, a
cartografia das biocenoses das plantas halófitas com distribuição altimétrica
condicionada pelos regimes de emersão/imersão e pela informação recolhida no
terreno durante as marés de águas vivas equinociais» (pág.100). Neste sentido,
também a Administração da Região Hidrográfica do Centro (ARH Centro) produziu
um guia com critérios para a demarcação física do leito e da margem das águas
de transição em sistemas lagunares, estuários e lagoas costeiras do litoral
centro (ARH Centro, 2011). Neste documento, opta-se por uma solução de
compromisso entre critérios altimétricos, presença de biocenoses, registos
cartográficos antigos e o disposto no Despacho Normativo 32/2008 de 20 de
junho3, conjugando-os consoante os casos.
Neste contexto, permanecem dúvidas quanto à definição deste limite,
especialmente em casos como o do estuário do Tejo, onde a variação espacial das
condições hidrodinâmicas, fluviais e de uso antropogénico do leito e da margem
são especialmente importantes. Observações do terreno comprovam que a LMPMAVE
possui grande variabilidade espacial e temporal, tornando-se essencial
encontrar critérios objetivos e de fácil aplicabilidade, que suportem com
elevado grau de confiança o limite entre leito e margem.
Assim, no contexto deste trabalho entende-se (Figura_1) por leito "o
terreno coberto pelas águas quando não influenciadas por cheias
extraordinárias, inundações ou tempestades» (n° 1 do art.10° da Lei 54/2005) e
por margem a faixa de terreno que lhe é contígua e que, consoante se encontre
ou não sob a jurisdição das autoridades marítimas e portuárias, tem a largura
de 50m ou 30m. Entende-se por orla estuarina o referido no diploma legal que
define o regime dos planos de ordenamento de estuários4. Assim, "a orla
estuarina corresponde a uma zona terrestre de proteção cuja largura é fixada na
resolução do Conselho de Ministros que aprovar o Plano de Ordenamento do
Estuário até ao máximo de 500 m contados a partir da margem (…)».
2.CASO DE ESTUDO: ESTUÁRIO DO TEJO
O estuário do Tejo localiza-se na costa ocidental portuguesa, na região da
Estremadura e Ribatejo meridionais, sendo limitado pelos paralelos
38°40'N e 39°05'N e pelos meridianos 9°20'W e 8°45'W
(Figura_2), e desenvolve-se segundo as direções NNE-SSW e ENE-WSW. O estuário
ocupa uma superfície de 320 km2 e estende-se desde a embocadura (Forte do
Bugio) até 80 km a montante (Muge), limite da propagação da maré dinâmica
(Freire, 2003).
Esta vasta área de transição entre o rio Tejo e o oceano é suporte de grande
diversidade biológica e paisagística. Simultaneamente, o seu extenso plano de
água serve de ligação física entre as duas margens do estuário na principal
área metropolitana do país, representando por isso uma zona de importância
estratégica a nível nacional.
2.1. Morfologia e hidrodinâmica estuarina
O estuário do Tejo ocupa uma área de cerca de 33,9x103 ha (Mendes et al.,
2012), da qual cerca de 43% corresponde ao domínio intertidal (equivalente a
entre marés). Este estende-se sobretudo na zona interior do estuário, pouco
profunda, ocupada por rasos de maré e sapais (equivalente a marisma) de extrato
essencialmente vasoso, cujas áreas são, respetivamente, 27,5% e 5,5% da área
total do estuário. No domínio intertidal, Mendes et al. (2012) identificaram
diferentes habitats, ostreiras, praias e ervas marinhas, bem como ocupação
antrópica diversificada (p.e. moinhos de maré e salinas). A ligação do estuário
ao oceano Atlântico faz-se através de um canal de embocadura estreito e
profundo, com cotas máximas que atingem 34 m (referidas ao ZH (Zero
Hidrográfico)).
O estuário encontra-se sobre a influência de uma maré semidiurna e pode ser
classificado como um estuário mesotidal elevado (Hayes, 1979). A amplitude da
maré varia entre 0,75m em Cascais (em maré morta) e 4,3m na zona mais a
montante (em maré viva) (Fortunato et al., 1999). Na Ponta da Erva (Figura_3a),
Fortunato et al. (1999) apontam para valores de 3,2m de amplitude em maré viva
média. Este aumento da amplitude deve-se a um efeito de ressonância, que
amplifica seletivamente as constituintes semidiurnas (Fortunato et al., 1999).
A agitação marítima oceânica faz-se sentir apenas junto à embocadura, uma vez
que a morfologia do canal não permite a propagação das ondas oceânicas para a
zona interior (Freire, 2003). Contudo, a extensão do estuário interno e a sua
orientação aos ventos dominantes (rumos de N e NW) propiciam um fetch efetivo
considerável (máximo de 13 km relativamente ao rumo NW-NE) e a possibilidade de
geração local de ondas (Freire & Andrade, 1999; Oliveira & Vargas,
2009). Na praia do Alfeite (Figura_3b) foram medidas ondas com altura máxima de
0,84m numa situação de temporal (Freire et al., 2009). Este facto particular
proporciona a manutenção de praias e restingas de areia ao longo da margem
esquerda do estuário interno (Freire et al., 2006; Taborda et al., 2009).
As afluências fluviais ao estuário provêm do seu principal afluente, o rio Tejo
(ver Figura 2). O regime atual de afluências, tanto em volume de água como de
sedimentos, é influenciado pela capacidade de armazenamento das albufeiras
existentes, que se estima atualmente em 12.200 hm3, sendo 2.700 hm3referentes à
parte portuguesa da bacia hidrográfica do rio Tejo. Em termos médios, e tendo
por base a série de escoamentos no período de 1973 a 2011, as afluências atuais
ao estuário são cerca de 310 m3s-1 em Almourol. As estimativas do caudal sólido
em suspensão afluente ao estuário situam-se entre 0,1×106 e 0,5×106 t/ano em
Almourol. No entanto, devido às incertezas associadas às medições de caudal
sólido, presume-se que este intervalo possa ser maior, na ordem de 0,1×106 a
1×106 t/ano (Rilo et al., 2013).
No que diz respeito à salinidade, o estuário pode ser classificado como
parcialmente estratificado (Fortunato et al., 1997; Neves, 2010). Usando
metodologias quantitativas, Neves (2010) confirmou esta classificação e
verificou ainda que as características de estratificação da coluna de água são
acentuadas durante a maré morta. O mesmo autor adianta ainda que, quando estas
condições coincidem com descargas fluviais médias de inverno, o estuário poderá
ser classificado como "estratificado".
2.2. Caracterização geral da comunidade biológica do estuário
Grande parte dos sedimentos finos transportados pelo rio é depositada no
estuário, devido à diminuição da velocidade da corrente fluvial e às condições
favoráveis de salinidade que concorrem para a floculação do material fino em
suspensão (Freire, 2003).
A deposição sedimentar em áreas intertidais conduz ao aparecimento de sapais,
sendo um fator importante para a sua evolução (Salgueiro & Caçador, 2007).
Os sapais são caracterizados pela baixa variedade de espécies, mas destacam-se
pelo facto de as espécies aí existentes possuírem características morfológicas
e fisiológicas que lhes permitem viver em ambientes salgados e alagadiços
(Caçador et al., 1996). Duas outras comunidades vegetais são abundantes no
estuário, aproveitando a disponibilidade de luz e nutrientes: as algas
unicelulares, que constituem o microfitobentos à superfície dos sedimentos
(Brito et al., 2013), e as macroalgas, que crescem sobre partículas de maiores
dimensões, como conchas ou pedras (Sousa - Dias & Melo, 2008). Um estudo
recente (Cunha et al., 2009) indica ainda a presença de uma comunidade de ervas
marinhas e estudos realizados por Mendes et al., (2013) apontam para o seu
aumento, ocupando em 2012 cerca de 60ha.
O estuário do Tejo possui ainda diversas espécies de peixes, mariscos e aves
limícolas. Esta riqueza biológica justifica o estatuto de área protegida
(Reserva Natural do Estuário do Tejo), estando uma parte da reserva
classificada como Zona de Proteção Especial de Aves Selvagens, integrante da
Rede Natura 2000. A nível internacional, faz parte da lista de sítios da
convenção Ramsar, que classifica o estuário como zona húmida de importância
internacional.
2.3.Caracterização socioeconómica e ocupação humana
O estuário do Tejo desenvolve-se na região mais povoada do país, constituindo a
principal área metropolitana nacional, onde a pressão demográfica, industrial e
agrícola mais se faz sentir. Dados recentes (INE, 2012) mostram que a população
residente na região de Lisboa representa 26,7% da população do país, tendo
aumentado na última década em cerca de 6%.
A área marginal que circunscreve o estuário do Tejo compreende onze municípios.
Dados recentes (INE, 2012) revelam um decréscimo da população residente entre
2001 e 2011 em Lisboa (-3%), Barreiro (-0,3%) e Moita (-2,1%). Pelo contrário,
registaram maior crescimento populacional os municípios de Alcochete (+35%) e
Montijo (+30,8%), seguidos de Vila Franca de Xira, Almada, Oeiras, Seixal e
Loures (Figura_3).
No que à densidade populacional diz respeito, a região de Lisboa apresenta uma
densidade de 940 habitantes por km2, valor muito superior à densidade média
nacional que se situa nos 114,5 habitantes por km2 (INE, 2012).
A ocupação da orla estuarina (ver Figura_1), cuja área total se situa nos
130km2 (Freire et al., 2012), é diversa. Em termos de extensão ocupada, são
relevantes as área urbanas (ocupam 34% da orla) e as áreas agrícolas (35% da
orla). Na margem norte, as áreas urbanas, portuárias e de infraestruturas
marítimas são dominantes, enquanto que na margem sul se estabeleceram áreas
urbanas, no interior das quais se desenvolvem algumas áreas verdes e
importantes áreas industriais, como é o caso do arsenal do Alfeite, da
Quimiparque e das recentes áreas de parques empresariais (Freire et al., 2012).
As áreas agrícolas são importantes essencialmente nos concelhos de Benavente e
Vila Franca de Xira (Figura_3), onde o Homem tenta travar o avanço das águas do
Tejo para criar áreas agrícolas. Destaca-se, neste caso, a Companhia das
Lezírias que, desde 1837, mantém o esforço de construção, manutenção e limpeza
dos valados até aos nossos dias (Alves, 2003).
3. METODOLOGIA
O objetivo principal deste trabalho consistiu na definição de critérios que
permitam traçar a LMPMAVE em ambientes de transição, usando como caso de estudo
o estuário do Tejo. Para a prossecução deste objetivo, adotou-se uma abordagem
multidisciplinar, que contou com análise bibliográfica, observação de campo,
observação e análise de fotografias aéreas, ortofotomapas e trabalho de campo
para validação.
Numa primeira fase foi efetuada a revisão bibliográfica de diferentes obras de
índole legal, que abordavam a problemática das definições e conceitos de leito,
margem e orla, bem como dos seus limites (Amaral & Fernandes,1978;
Tavarela-Lobo, 1999). Analisaram-se trabalhos técnicos, onde são descritos
exemplos de demarcação da LMPMAVE noutros sistemas, nomeadamente na costa
algarvia (Teixeira, 2009) e na Ria de Aveiro (ARH Centro, 2011), e discutiram-
se aspetos metodológicos com autoridades ligadas à gestão e ordenamento do
estuário do Tejo.
Seguiu-se a análise da zona de estudo feita sobre os ortofotomapas de 2007 do
Instituto Geográfico Português (resolução espacial de 0.50m e resolução
radiométrica RGB e infravermelho próximo) em ambiente SIG (ArcMap-ESRI®).
Procedeu-se, ainda, à consulta sistemática de outras fontes, designadamente
Bing Maps Aerial (opção birds eye) e Google Earth (ferramenta Imagens
históricas). Foi também usada uma imagem LANDSAT 7 ETM+ obtida em 22 de
fevereiro de 2002 (hora de aquisição: 11:03:23), uma vez que possuía o nível de
maré mais elevado das imagens registadas por este satélite, o que possibilitou
avaliar a extensão de áreas alagadas. A imagem foi tratada usando a ferramenta
Image Analysis do ArcMap com a composição 752 das bandas espectrais, por forma
a realçar áreas cobertas por água, o que permitiu validar a aplicação do
critério biofísico.
A caracterização da zona de estudo e a definição dos critérios para o traçado
da LMPMAVE foi acompanhada pela recolha de informação no terreno, em diferentes
pontos do estuário, nos meses de janeiro, agosto e setembro de 2011. Foi ainda
usado, como ferramenta de validação dos critérios altimétrico e de uso do solo,
o levantamento topográfico da faixa marginal do estuário, datado de 2011,
disponibilizado pela Administração da Região Hidrográfica do Tejo (ARH Tejo) e
ainda os levantamentos topográficos com DGPS TopCon Hiper Pro.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
3.1. Critérios para o traçado da LMPMAVE
Os critérios para o traçado da LMPMAVE definidos neste trabalho podem ser
subdivididos em quatro tipologias: critério biofísico, tipo de estrutura/
altimétrico, uso do solo e critério de índole legal.
Critério Biofísico
Este critério tem por base a presença, distribuição e comportamento das
diversas espécies vegetais de sapal que ocorrem no leito do estuário do Tejo
(Caçador, 1986). Determinadas biocenoses tolerantes ao sal indicam a presença
de água salgada nos locais onde estas ocorrem (Tabela_1).
Assim, o limite do desaparecimento deste tipo de vegetação e o aparecimento de
outro, com características terrestres e por isso pouco tolerantes ao sal,
constituem um indicador fidedigno do limite entre o leito e a margem. No caso
das praias estuarinas, o critério adotado teve por base o limite entre a
ocorrência de espécies dunares e terrestres.
O critério biofísico foi aplicado nos seguintes casos: arribas alcantiladas
(equivalente a falésias), zonas de sapal, linhas de água e praias estuarinas
(Figura_4).
Tipo de estrutura /altimétrico
O critério relativo ao tipo de estrutura/altimétrico foi desenvolvido para os
casos em que a margem é ocupada por estruturas antrópicas (e.g., estruturas de
defesa aderente, pontões, cais, diques, salinas e moinhos de maré) e apoia-se
no conceito da circulação natural da água entre o leito e a margem, que se faz
livremente no caso das estruturas permeáveis, sendo impedida quando as
estruturas são impermeáveis (Figura_5).
Os níveis de água no estuário estão dependentes de fatores diversos, tais como
maré astronómica, caudais fluviais, sobrelevação de origem meteorológica,
espraio das ondas e subida do nível médio. Trabalhos anteriores (Vargas et al.,
2008) referem que o efeito das cheias para diferentes períodos de retorno não
tem influência significativa nos níveis máximos a jusante da Póvoa de Sta.
Iria. Assim, e tendo em conta que a maioria das estruturas está localizada
fundamentalmente a jusante desta localidade, este fator não foi considerado.
Trabalhos já realizados (e.g., Guerreiro et al., 2013), que consideram a
componente de maré, sobrelevação meteorológica e cenários de subida do nível
médio do mar, apontam para valores de nível de água, que variam entre 2,3m NMM
(Nível Médio do Mar) na embocadura (zona da Ponte 25 de Abril) e 2,8 m NMM na
zona montante (zona da Póvoa de Santa Iria), associados a um período de retorno
de 100 anos. Não foi quantificado o efeito do espraio das ondas, tanto as
oceânicas, que passam através do canal de embocadura, como as de geração local.
Tendo em conta o exposto, assumiu-se neste trabalho a cota de 3,0m NMM como
representativa de posições altimétricas que não estão sujeitas a inundação
frequente. Deste modo, as estruturas impermeáveis com cotas superiores a este
valor ficam incluídas na margem e as que possuam cotas inferiores incluem-se no
leito.
As estruturas permeáveis foram incluídas no leito tendo em conta o facto de não
constituírem uma barreira à passagem natural da água, facto demonstrado, por
exemplo, pela observação de vegetação de sapal no interior de caldeiras de
moinhos de maré abandonados.
Critério de Uso do Solo
Certas estruturas, como os valados e proteções a terrenos agrícolas que se
encontram na margem sul do estuário (Figura_6), denunciam a intenção de
conservar os terrenos contíguos enxutos e ao abrigo das águas do Tejo,
existindo disso mesmo prova histórica (e.g., Alves, 2003). Para estes casos,
desenvolveu-se um critério baseado na utilização atual dos terrenos e sua
evolução passada. Neste critério, considera-se que estes terrenos,
continuadamente enxutos pelo Homem, são incluídos na margem, ainda que se
encontrem abaixo da cota que os manteria naturalmente submersos (Figura_6).
Critério Legal
O critério legal (Figura_7) foi desenvolvido e aplicado ao caso dos mouchões. A
Lei 54/2005 de 15 de novembro refere no n°.1 do art.10° que: "no leito
compreendem-se os mouchões, lodeiros e areais nele formados por deposição
aluvial». Tendo em conta o exposto, no âmbito deste trabalho, os mouchões foram
incluídos no leito.
No caso particular dos mouchões, poderiam ter sido considerados outros
critérios, nomeadamente o critério de uso do solo e tipo de estrutura/
altimétrico, uma vez que grande parte dos mouchões estão aproveitados para fins
agrícolas, pelo que se encontram rodeados de muros e valados impermeáveis e os
terrenos agrícolas no seu interior possuem cotas inferiores a 3m NMM. Se estes
critérios tivessem sido adotados, os mouchões ficariam integrados na margem. No
entanto optou-se por seguir o critério legal que, objetivamente, os coloca no
leito.
3.2. Traçado da LMPMAVE no estuário do Tejo: limitações e validade
A definição destes critérios e a sua aplicação ao estuário do Tejo permitiram,
pela primeira vez, dispor de um traçado da LMPMAVE para este sistema de
transição (Figura_8), constituindo assim uma contribuição importante para a
gestão desta área.
A dificuldade na transposição do conceito de LMPMAVE para a cartografia em
áreas de transição como os estuários está ligada não apenas à diversidade
morfológica, hidrodinâmica e antropogénica, mas principalmente com a aplicação
de critérios legais para o terreno. Note-se que a Lei 54/2205 adota como único
critério orientador para a definição do limite o conceito de "cheia
média", não considerando que a sobrelevação meteorológica, o espraio de
ondas e a subida do nível médio do mar são fatores que influenciam o nível de
água em sistemas estuarinos.
Assim, além da variabilidade espacial, a posição da LMPMAVE num sistema
estuarino terá uma evolução temporal que, tendo em conta o possível efeito das
alterações climáticas, não será certamente irrelevante. Neste contexto, será
razoável propor, como primeira aproximação, que o traçado deste limite seja
indexado ao prazo de vigência dos Planos de Ordenamento de Estuários, com
revisões pontuais intermédias consoante se façam alterações no leito ou na
margem.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste estudo foi desenvolvida uma metodologia abrangente, baseada em critérios
biofísicos, altimétricos, de uso do solo e legais, para nortear o traçado da
LMPMAVE em ambientes de transição, especialmente concebida para o caso do
estuário do Tejo.
Esta metodologia permitiu operacionalizar o conceito de LMPMAVE no terreno,
socorrendo-se de um conjunto de informações diversificado e optando por uma
abordagem interdisciplinar, que permite superar os constrangimentos e
dificuldades levantados pela transposição da lei para a realidade do terreno.
Subsistem, apesar disso, algumas questões que devem ser aprofundadas em
trabalho futuro, nomeadamente o facto de não ter sido considerado o efeito do
espraio das ondas no critério relativo ao tipo de estrutura/altimétrico.
Apesar do avanço significativo em desenvolver critérios claros, objetivos e de
fácil incorporação para o traçado da LMPMAVE, alguns destes critérios dependem
das especificidades do sistema em causa, implicando a sua adequação caso a
caso. É proposto igualmente, como primeira aproximação, que o traçado da
LMPMAVE baseado na aplicação da metodologia aqui apresentada possa ter como
validade o prazo de vigência dos Planos de Ordenamento de Estuários.
A LMPMAVE é um elemento essencial para a base cartográfica de alguns
instrumentos de gestão e ordenamento, bem como para a implementação de
cartografia subjacente à avaliação do estado ecológico das massas de água
desencadeada pela implementação da Diretiva-Quadro da Água a nível nacional.
Este trabalho constitui um avanço para definição das bases metodológicas para o
traçado deste limite, contribuindo, nesta perspetiva, para a gestão e
ordenamento de áreas estuarinas.