Perceção das populações locais face à sustentabilidade dos serviços das zonas
costeiras: o caso da Lagoa de Santo André, Portugal
1. Introdução
A humanização impõe a necessidade de uma correta gestão das zonas costeiras
como forma de, presumivelmente melhorar o nível de exploração dos recursos
naturais. Todavia, a Natureza gere-se a si própria com extrema eficácia,
garantindo verdadeira sustentabilidade para o futuro a curto, médio, longo e
muito longo prazos. Ao longo dos cerca de 4,5 mil milhões de anos de vida na
Terra os ecossistemas foram‑se sucedendo, tornando‑se progressivamente mais
complexos (Dias et al., 2012).
Assim, ao tentar assumir-se como entidade reguladora dos processos dos quais
depende, mas que conhece ainda mal e que, efetivamente, não controla, o Homem
entrou em conflito consigo mesmo. E esses conflitos são evidentes na exploração
dos recursos marinhos, nunca sendo demais relembrar que o litoral é o principal
recurso marinho explorado na atualidade (Dias et al., 2012).
São inúmeros os estudos em todo o mundo onde se observa a insustentabilidade
das zonas costeiras devido à elevada pressão urbana e má gestão dos serviços
dos ecossistemas costeiros.
Wakashima & Capellari (2010) efetuaram um estudo sobre globalização e
deslocalização, numa análise sobre o crescimento do turismo residencial no
Mediterrâneo espanhol e no litoral do Nordeste brasileiro e os seus efeitos
socioambientais, os impactos do turismo residencial, bem como a sua evolução,
analisando as características desta atividade, tanto na perspetiva do Brasil
como em relação à Espanha. Segundo os autores, de entre as diversas
segmentações do turismo no Brasil, está em ascensão, principalmente no
Nordeste, o denominado turismo residencial. Esta atividade caracteriza‑se pela
utilização de segunda residência localizada em praias e centros urbanos, para
fins de lazer. O Litoral Mediterrâneo Espanhol é um dos destinos onde o turismo
residencial está mais fortemente consolidado; porém, sofre com a saturação dos
espaços e o comprometimento da qualidade ambiental, tornando insustentável a
economia local. A especulação imobiliária fez em ambos os casos, com que
famílias optassem por morar em regiões periféricas, muitas vezes em condições
de insalubridade. A chegada de mega-investimentos, principalmente os
estrangeiros, ocasionou a descaracterização de cultura local, na qual se inclui
naturalmente a atividade piscatória. A estrutura disposta por estes
empreendimentos consome muito mais recursos naturais, se comparados a simples
hotéis e pousadas, além de descaraterizar a paisagem, comprometendo assim o
principal atrativo turístico da região (Wakashima & Capellari, 2010).
A alteração da composição demográfica, causada pelos processos migratórios de
trabalhadores e turistas; o desaparecimento das atividades tradicionais e da
cultura local; e a transformação da paisagem; são estes alguns impactos
presenciados pelas comunidades localizadas no Mediterrâneo, bem como no
Nordeste brasileiro, que acabam ocasionando a decadência de suas atrações
turísticas, estimulando assim a busca por lugares menos saturados, prestando
com isto um contributo de valorização para o conhecimento e com isso para o
estado da arte sobre estas matérias (Wakashima & Capellari, 2010).
Leal (2012), na sua dissertação sobre as experiências vivenciadas por duas
comunidades, Canoa Quebrada e Vila do Estevão, numa análise sobre a perceção
dos diferentes atores sociais sobre o processo de modernização vivido por essas
populações, contextualizou a formulação de uma análise sociológica, acerca da
civilização e do capital, em tempos contemporâneos, estabelecendo uma relação
entre modernização e o modo de vida das comunidades tradicionais da zona
costeira cearense. A autora refere que o seu estudo se pautou por uma
metodologia qualitativa, tendo as investigações seguido as vias da observação e
realização de entrevistas temáticas, identificando os impactos provocados pela
tensão social imposta através do modelo de desenvolvimento vigente, com os seus
padrões impositivos, muitas vezes em antítese com aspetos relativos ao
comportamento dos povos e das suas tradições.
A autora refere ainda que a problemática em estudo tem vários pontos de
contacto com outros debates atualmente em curso nas ciências sociais e humanas,
e que, por isso, se dispõe de um dispositivo teórico amplo, que abarca a
pluralidade de conceções e perceções sobre as relações entre trabalho, tempo e
ócio, os paradigmas da tradição e da modernidade e as estratégias de
enfrentamento das organizações coletivas pela coexistência com essa realidade.
Nesse contexto, a autora utiliza como suporte teórico, a sociologia das
ausências e a sociologia das emergências, as conceções de tempo social assim
como os conceitos sobre a crise estrutural do capital e sua estrutura fundante
(Leal, 2012).
A autora considera que a modernidade é a base racional, científica, que surge
como verdade absoluta para o conhecimento, bem como para a explicação dos
fenómenos da natureza. Para os povos que a enfrentam, é um momento de transição
em que o divino deixa de compor a base explicativa desses fenómenos, enquanto a
razão pura passa a fazer parte desse cenário, buscando‑se a razão e explicação
científicas e negando‑se as crenças desprovidas de comprovações (Leal, 2012).
Portugal possui cerca de 1450 km de costa e mais de metade da população
portuguesa vive em concelhos do litoral. Assim, a correta gestão das Zonas
Costeiras é decisiva para o desenvolvimento do país.
Segundo a Estratégia Nacional para a Gestão Integrada da Zona Costeira de
Portugal aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 82/2009, as zonas
costeiras assumem uma importância estratégica em termos ambientais, económicos,
sociais, culturais e recreativos, pelo que o aproveitamento das suas
potencialidades e a resolução dos seus problemas exigem uma política de
desenvolvimento sustentável apoiada numa gestão integrada e coordenada dessas
áreas.
Tendo presente que, de acordo com Gerhardt & Almeida (2005), os problemas
biofísicos e de sustentabilidade, no âmbito costeiro, passam por uma inspiração
de "movimento ambientalista", e sendo o ambiente também uma
problemática social, será relevante incluir esta questão dentro de um processo
dinâmico de reestruturação sociocultural, estando em jogo (em disputa) no
contexto da própria modificação, a forma como a sociedade se organiza, pensa e
elabora seus valores, bem como as suas prioridades e desejos.
A Lagoa de Santo André (Fig._1) é exemplo onde a gestão das zonas costeiras não
é uma tarefa fácil, onde as pressões das atividades piscatórias da população
local têm de se conciliar e equilibrar com os valores naturais e de
biodiversidade. Esta zona costeira integra a Reserva Natural da Lagoa de Santo
André e da Sancha, através de Decreto-Regulamentar n.º 10/2000 de 22 de agosto,
onde é referido que foi finalmente reconhecida a importância deste santuário
natural.
Este trabalho tem como objetivo geral contribuir para caraterizar a perceção da
população local face à sustentabilidade dos ecossistemas da zona costeira em
estudo, utilizados por essa população, bem como, num processo de cidadania
participativa, envolver todos os atores na construção de soluções e de
consensos, tendo presente as fragilidades encontradas, as várias realidades,
interesses e as sensibilidades grupais aduzidas no decorrer deste estudo
exploratório.
Como objetivos específicos, pretendeu-se:
i) Identificar e caraterizar o estado das atividades piscatórias na Lagoa de
Santo André, incluindo a sua evolução histórica em termos das alterações
físicas do ecossistema, de ordenamento, das artes de pesca, cultura, tradição,
registo do volume e principais espécies capturadas.
ii) Avaliar a perceção da população local e dos decisores em relação aos
fatores que de alguma forma contribuíram para um processo de mudança no âmbito
das suas valências socioeconómicas e de tradição, com enfoque especial para a
atividade da pesca na lagoa.
iii) avaliar a perceção da população sobre os mecanismos utilizados para a
resolução dos fatores mencionados, nomeadamente no que se refere à necessidade
de ordenamento da orla costeira ou à sustentabilidade do ecossistema da Lagoa
de Santo André, entre outros.
iv) Propor soluções, medidas e recomendações para garantir o equilíbrio entre a
atividade económica local da pesca, a sustentabilidade e a harmonia do
ecossistema em estudo.
2. M
aterial e métodos
2.1. Enquadramento Metodológico
Neste trabalho foi utilizada uma metodologia de estudo de caso,
maioritariamente qualitativa, com base na pesquisa e análise de documentos
escritos e orais, bem como na recolha de informação por inquérito e por
questionário aos pescadores locais, numa amostra o mais abrangente possível da
população; foram, ainda, realizadas entrevistas a agentes e decisores; a esta
fase, seguiu-se, após estudo e interpretação da informação recolhida, a
organização de um "workshop" com os principais atores-chave da
região, nomeadamente, os pescadores e sua associação, os empresários da
restauração local, edilidades, autoridades e organismos de proteção da
natureza. O objectivo deste encontro centrou‑se na discussão e votação de um
conjunto de problemas no âmbito da pesquisa efetuada pelo autor, no sentido de
se encontrarem soluções, obtidas por votação dos atores-chave presentes.
Este estudo de caso assenta numa premissa com uma dupla vertente: por um lado,
é uma modalidade de investigação apropriada para estudos exploratórios e
abrangentes e que, sobretudo, tem como objetivo a descrição de uma situação, a
explicação de resultados a partir de uma teoria, a identificação das relações
entre causas e efeitos ou a validação de teorias (Serrano, 2004). Por outro
lado, permite ilustrar e analisar uma dada situação real e fomentar a discussão
e a tomada de decisões, julgadas convenientes para a mudar ou melhorar.
Para melhorar a compreensão dessas realidades complexas, contrapõe‑se a uma
perspetiva quantitativa uma abordagem qualitativa de pesquisa que tem como
objetivo a compreensão dos significados atribuídos pelos sujeitos às suas ações
num dado contexto. Nesta abordagem, pretendeu‑se interpretar em vez de medir,
procurando‑se caraterizar a realidade experienciada pelos sujeitos ou grupos a
partir do que estes pensam e da forma como agem (seus valores, representações,
crenças, opiniões, atitudes e hábitos).
As investigações qualitativas privilegiam, essencialmente, a compreensão dos
problemas a partir da perspetiva dos sujeitos da investigação. Neste contexto,
Bogdan & Biklen (1994), consideram que esta abordagem permite descrever um
fenómeno em profundidade através da apreensão de significados e dos estados
subjetivos, pois, nestes estudos, há sempre a tentativa de capturar e
compreender, com pormenor, as perspetivas e os pontos de vista dos indivíduos
sobre determinado assunto. Pode-se dizer que o principal interesse destes
estudos não é efetuar generalizações mas antes particularizar e compreender os
sujeitos e os fenómenos na sua complexidade e singularidade. Assim, em oposição
às afirmações universais e à explicação dos fenómenos numa causalidade linear,
preferiu‑se, neste projeto, a descrição concreta das experiências e das
representações dos sujeitos que conduzem a uma compreensão dos fenómenos.
De acordo com os objetivos enumerados anteriormente, o trabalho foi dividido em
três tarefas: 1) Caracte-rização das atividades piscatórias; 2) Perceção dos
Pescadores; 3) Propostas de soluções e recomendações.
2.2. Tarefas Desenvolvidas
2.2.1. Caraterização da Atividade Piscatória
A metodologia de investigação centrou‑se numa primeira abordagem na recolha de
informação, derivada da pesquisa de documentação e literatura existente, bem
como pesquisa por documento não escrito, de modo a ser possível caraterizar o
estudo de caso e em particular o estado da atividade piscatória na Lagoa de
Santo André, incluindo a sua evolução histórica em termos de artes de pesca,
cultura e tradição, evolução do ecossistema litoral, quais as principais
espécies capturadas e a importância de estratégias de investimento para a
economia local.
Para o efeito foram efetuadas entrevistas a um conjunto reduzido de atores-
chave locais, que subsistem no terreno e fazem parte da atual povoação (Anexo
I), bem como aos organismos tutelares da zona costeira e da conservação da
natureza (Anexo II), para que estes nos evidenciassem processos e/ou projetos,
ainda que em área de planeamento, com vista ao desenvolvimento sustentável da
região.
2.2.2. Perceção dos Pescadores
Numa segunda fase do trabalho procedeu‑se ao inquérito por questionário à
população piscatória (Anexo III), para análise dos dados recolhidos e
trabalhados em gabinete.
O objetivo deste inquérito foi avaliar a perceção desta população quanto à
continuidade e sustentabilidade da pesca no ecossistema da Lagoa de Santo
André, bem como apurar a sua sensibilidade, no âmbito sócio-económico e
ambiental, às alterações trazidas pelo ordenamento.
De acordo com Quivy & Capenhoudt (1998), o inquérito por questionário
consiste em colocar a uma amostra de indivíduos de uma determinada população,
que os mesmos representam, uma série de perguntas, relativas à sua situação
social, académica, profissional ou familiar, às suas opiniões, à sua atitude em
relação a variadíssimas questões humanas e sociais, às suas expectativas
perante um determinado acontecimento, ao seu nível de conhecimento ou de
consciência relativos a um problema, ou, ainda, sobre assuntos que possam
interessar ao processo de investigação.
O preenchimento destes questionários foi confidencial. Pretendeu-se, de igual
modo, perceber o papel do cidadão, do pescador, enquanto parte interessada, no
sentido da perceção da sua capacidade para se organizar grupalmente e em que
medida consegue nessa participação a tradução da sua força representativa e da
sua vontade coletiva.
2.2.3. Proposta de Soluções e Recomendações
Numa terceira fase organizou-se um "workshop" com os atores-chave,
onde se apresentou os resultados obtidos nas tarefas anteriores, com vista à
discussão em conjunto das soluções, das medidas e das recomendações que
garantissem modelarmente a atividade económica local da pesca versus a
sustentabilidade e o equilíbrio do ecossistema.
No âmbito de um quadro de referência (framework) relativo a técnicas de
participação com vários graus de envolvimento das partes, considerámos que, de
entre as várias técnicas que congregam Consulta, Colaboração, Decisão
Partilhada e Responsabilização, entre as quais destacamos "Consensus
Conference", "Scenario Analysis", "Citizen Jury",
a técnica que mais se adequa à gestão de conflitos é, sem dúvida, a realização
de um workshop. Para tal, e de acordo com os autores Luyet et al. (2012),
adotámos a proposta que abaixo explicitamos (Fig._2), no sentido de uma melhor
compreensão do processo da participação dos atores-chave e como, por maioria de
razão, se ajustam a este trabalho.
Na identificação dos atores, tivemos em conta os vários papéis designados
técnicos e que envolvem critérios tais como a proximidade, a economia, os
valores sociais e ambientais.
No âmbito da sua caracterização, sustenta‑se a possibilidade de existirem
múltiplas e variadas atitudes perante o projeto, em particular as que resultam
do ponto de vista da Reserva Natural, e as dos demais atores, que, estando em
contexto de diferentes sensibilidades, poderão potenciar conflitos.
Este workshop sobre a Lagoa de Santo André assentou num exercício de cidadania
participativa, cuja metodologia encontra sustentação de acordo com o método
anteriormente descrito, sobre o quadro de atores-chave.
O universo de outros trabalhos na área do ordenamento costeiro, nos quais a
participação das populações foi determinante para a obtenção de consensos e
cuja problemática exigia intervenção e consensualização de procedimentos,
serviu de complemento neste processo, sendo a metodologia utilizada para a
elaboração e organização do workshop baseada nos critérios de Vasconcelos
(2006) e Vasconcelos & Caser (2011).
3. Caso de Estudo - Lagoa de Santo André
3.1. Contexto Histórico - Pesca
Segundo Madeira (1993), por volta de 1855, pescadores de Ílhavo e respetivas
famílias chegaram à Costa de Santo André, tendo aí construído as suas cabanas e
armazéns de colmo e caniço (Fig._3).
Devido à abundância de sardinha no mar (no Verão) e outro peixe na lagoa (no
Inverno), terão estabelecido duas companhas com lavradores da região,
praticando a arte xávega (Fig._4). Na praia da freguezia de Santo André se
acham estabelecidas ha seis annos duas companhas de pescadores de Aveiro, que
também carregam anualmente de sardinha bom numero de embarcações costeiras com
destino para diversos portos do reino(Silva, 1869: 104).
Segundo Madeira (1993), convém distinguir entre a pesca na lagoa e a pesca no
mar, através dos seus barcos saveiros, preparados para a arte de xávega, que
foi introduzida pelos oriundos do Centro Norte (Ílhavo, Aveiro e Murtosa) por
volta de 1855 e que perdurou até cerca dos anos cinquenta e princípio de
sessenta do século XX.
Quanto à pesca no mar, com bastante expressão, em que subsistiam duas campanhas
para os lanços de mar, conclui‑se um relativo desenvolvimento desta faina ao
verificar‑se que em 1875, no recenseamento eleitoral, de base censitária,
constavam quatro pescadores coletados, com movimentos financeiros entre 1000 e
6333 réis de décima, valores para rendimento bruto bastante consideráveis à
época (Madeira, 1993).
A pesca na lagoa torna‑se a alternativa para a subsistência das famílias de
pescadores em período invernoso e, simultaneamente, à medida que se dá o
declínio da arte de xávega, ganha maior expressão e acentua a sua importância
(Fig._5).
A apanha de enguias é a arte de maior relevância na pesca da lagoa, tendo‑se
tornado progressivamente a sua captura principal. A restante pesca, relativa a
outras espécies e pouco relevante em termos de dados objetivos e estatísticos,
era complementar à pesca da enguia, sendo muitas vezes destinada ao consumo
próprio de pescadores e suas famílias. Para termos em conta um valor aproximado
das capturas, o rendimento médio anual, até meados do século XX, era de 150 kg/
hectare/ano, ou seja, um total de pescado de mais de 20 toneladas ano (Fonseca
et al., 1993).
3.2. Enquadramento
A Lagoa de Santo André localiza‑se no sudoeste de Portugal, no Distrito de
Setúbal, região do Alentejo e sub-região do Alentejo Litoral, ocupando parte da
costa do município de Santiago do Cacém.
Em meados do século XVII, a duna de areia que separa a lagoa do mar já se havia
formado, adiantando que as ribeiras de que fala Frei Bernardo Falcão
continuavam a descer aserra, sem desaguarem no mar, retendo‑se nesse grande
espaço de águas paradas, onde a grande enseada se tornava lagoa (Madeira,
1993).
Em termos gerais, segundo o estudo inicial para o Plano de Ordenamento da
Reserva Natural das Lagoas de Santo André e Sancha (ERENA, 2005), a lagoa é
constituída essencialmente por um conjunto de ecossistemas litorais e
sublitorais, detendo como elemento principal o sistema lagunar.
Neste contexto, o corpo lagunar de Santo André é particularmente bem
desenvolvido e ocupa uma superfície alagada de 150‑250 ha, a qual pode duplicar
durante o período invernal, devido à entrada de água proveniente das chuvas, da
agitação e da ondulação do mar em época de tempestades. A lagoa dista escassas
dezenas de metros do mar, sendo separada por um cordão dunar de largura e
desenvolvimento variáveis (ERENA, 2005).
Quando, por imperativo das cheias de Inverno, o seu volume hídrico aumenta
exponencialmente, é feita uma ligação ao mar, estabelecida artificialmente,
quase sempre no mês de março, através de um canal que permanece aberto durante
cerca de um ou mais meses, enquanto as condições de mar o permitirem (ERENA,
2005).
O caráter salobro das suas águas provém do maior ou menor tempo de contacto com
o mar aquando do período da sua abertura, o que lhe confere um estatuto
especial qualitativo, tendo em vista a apreciação do seu pescado e a qualidade
das suas águas de teor salino e de apetência balnear, cujo valor de salinidade,
em média representa - 10 a 20 ‰ (Fonseca et al., 1993).
3.3. A Pesca na Atualidade
Na determinação de uma zona de pesca profissional na Lagoa de Santo André, foi
tido em conta o facto de esta atividade pesqueira ser uma realidade
socioeconómica de importância considerável para a população e, também, a
necessidade de regulação da gestão ambiental dada a intensidade dessa atividade
profissional, tendo em vista o ordenamento e a conservação dos seus valores
naturais (Portaria nº 86/2004 de 8 janeiro). A área de pesca autorizada consta
de numa linha poligonal, referenciada, de acordo com a planta, e que une os
pontos coordenados de 1 a 15 (Fig._6). Ou seja, com a criação da Reserva
Natural, inicia-se um processo, em que, para atividades específicas como a
pesca, o diploma atrás referido estabelece a possibilidade de se publicarem
portarias conjuntas com outros ministérios, por forma a determinar
condicionamentos ou interdições a esta atividade, iniciando com isso o processo
de regulação da pesca na lagoa, o qual desencadeou a contestação dos
pescadores.
Foi realçada a interpretação dos dados relativos ao volume do pescado declarado
(Fig._7), por comparação com os elementos históricos, nos quais se encontrou
uma proporcionalidade digna de registo, ou seja, os totais atuais situam-se 36%
dos totais anteriores (8 t, para 22 t/ano), levando a questionar, embora
isentando os aspectos conclusivos tratados posteriormente, a relação entre
pescadores e pesca versus sustentabilidade e legislação. Segundo o ICNF, o
número de pescadores com licenças atribuídas, desde 2004 não tem sofrido
alteração digna de nota, centrando‑se este valor em cerca de trinta e cinco a
quarenta atribuições anualmente.
4. Resultados e discussão
4.1. Entrevista à População Local
No âmbito da entrevista semiestruturada à população da Lagoa de S. André
- leia‑se população piscatória e não outra - e uma vez que restam
nesta localidade umas seis famílias de pescadores, houve que credibilizar os
seus relatos, através de dois deles, os mais esclarecidos, dos pescadores mais
antigos e mais aptos nos seus relatos, que a memória aflora de forma brilhante,
sobre a prática da pesca da arte xávega no mar e o seu términus. Depois, foi
preciso perceber o transporte desta arte para a pesca na lagoa, considerando a
alteração das suas dimensões, para um formato muitíssimo menor, com uma
malhagem também mais reduzida (malhagem de traineira), mas mantendo o cerco e o
saco na proporcionalidade dos alares, o denominado chinchorro, ou chinchae a
inclusão de novos aparelhos, as nassas. Foi também abordada a questão do
abandono da atividade pelos pescadores e a falta de expectativas geradas pela
ausência de planos de investimento e de desenvolvimento sustentáveis, que estes
reclamaram de forma vincada no seu testemunho.
Uma particularidade interessante do relato de um dos pescadores entrevistados é
que, de facto, "o fim da arte de xávega no mar acontece por volta dos
anos sessenta do século XX". Ele próprio relata ainda ter insistido, em
1974, na compra de uma arte semelhante, "de menor porte",
utilizando agora um saveiromais curto, e teria assim tentado relançar esta
tradição milenar; mas, por imperativo da sua proibição, uma meia dúzia de anos
depois seria ele o último mestre, que encerraria definitivamente a campanha de
pesca no mar na Costa de Santo André (Caniço, com. pess.).
Com o fim desta arte, que se tinha verificado anos antes desta sua aventura de
reinventar a xávega, "já parte dos pescadores profissionais demandavam a
pesca de mar em Sines, ficando os restantes a pescar na lagoa por conta de
rendeiros, cuja exploração por concessão finda com a queda do Estado Novo, ou
seja na revolução de abril de 1974". O que se constata das declarações de
Caniço é que, mesmo tendo em conta o decréscimo gradual de pescadores na zona,
cujo êxodo é sentido na década de sessenta do século XX, dado o volume de
pescado extraordinariamente abundante na lagoa, mesmo sem a xávega no mar,
"os pescadores, em alternativa, utilizam nos seus lances a arte de pesca
de cerco, através da utilização de chinchorros curtos na lagoa" (Caniço,
com. pess.).
A ausência de alternativas à atividade da pesca é clara no seguinte comentário:
"temos muita pena que não haja projetos para desenvolver aquilo…, não
fazem nada, nem para os banhistas, nem para os homens dos restaurantes, nem
acessos, nada, poderia até ajudar o pescador, não é verdade? Agora vejam o
estado a que chegou a zona da antiga povoação, é uma vergonha. Não pensam no
desenvolvimento, é só promessas e andamos nisto há anos e anos; como é que uma
pessoa resolve a vida sem ser na pesca? Não há alternativas"(Caniço, com.
pess.).
Em síntese, poderemos inferir que, com o fim da arte antiga de pesca de cerco
no mar da Costa de Santo André, ou arte xávega, cujas companhas envolviam os
pescadores locais em número bastante considerável, e, naturalmente, por falta
de recursos e de estímulo para continuar, parte desta gente procura formas
alternativas de pesca noutros lugares. Os que ficam passam a dedicar‑se à pesca
na lagoa, agora não apenas como alternativa nos Invernos tempestuosos, mas como
recurso possível, por conta dos rendeiros locais, no período permitido por lei.
A arte utilizada, mais não era do que a chincha, igualmente uma pesca de cerco,
agora reduzida nas suas dimensões, sem a exigência de contingentes ou companhas
como as que eram necessárias para a faina no mar, bastando uma meia dúzia de
homens por arte para os lances na lagoa.
4.2. Entrevista a Decisores Locais
Inquirida a chefia de Divisão da Gestão Urbanística da CMSC (Câmara Municipal
de Santiago do Cacém), esta respondeu ter conhecimento de um plano de pormenor
"aprovado irá para mais dez anos, com uma visão voltada para o turismo
mas que, dadas as condicionantes socioeconómicas anteriores e vigentes, não foi
possível avançar no terreno, dadas as onerosas infraestruturas necessárias e
incomportáveis para o município em termos financeiros e pela inexistência de
parcerias com entidades privadas" (Grade, com. pess.).
Em contrapartida, o ICNF, na pessoa de um dos seus técnicos superiores, sobre o
mesmo assunto, referiu "desconhecer qualquer plano de reabilitação ou de
promoção da economia local, adiantando estar em curso para breve, a criação de
uma carta de desporto na natureza, reguladora de atividades de animação
ambiental, turística e desportiva"(Nogueira, com. pess.).
Tais declarações são reveladoras da ausência de uma estratégia coerente para o
desenvolvimento económico da região, em particular nas artes de pesca
sustentável.
4.3. Questionário aos Pescadores
Tendo presente a metodologia da investigação adotada neste estudo, salientamos
neste capítulo os principais problemas identificados pelos pescadores na pesca
na Lagoa de Santo André e também a notória perda de qualidade ambiental a que a
lagoa está sujeita.
Aduzem os pescadores de forma síncrona que as áreas marcadas para o exercício
da pesca são calculadas em função do afastamento exagerado das margens da
lagoa, e que a posição dos marcos delimitadores leva, por vezes, a que surjam
erros de posição na colocação dos seus aparelhos de pesca, sujeitando-os a
pesadas multas.
Também referem os mesmos pescadores, que tais coordenadas os colocam em zonas
de pouco pescado e fundos exagerados, e que deveria haver uma maior aproximação
a terra, em função da volumetria da lagoa, que é variável ao longo do ano;
"andam com uns aparelhos de medir, os tais GPS e uma pessoa quando sabe,
ou não sabe, tá a levar com eles" (Inquirido nº 2).
Explicando, referem, a área em que lhes é permitido pescar, detém grande
profundidade e tendo os alares das nassas a altura de 1 pano (2m aprox.), o
peixe não é canalizado eficazmente para o saco da captura; "querem é
acabar com os pescadores e que a gente morra ali. Quem é que consegue espetar
uma cana numa fundura daquelas? Não percebem nada de nada e não ouvem a
gente" (Inquirido nº 22). "Tal seria ultrapassado, deixando pescar
mais junto às margens, orientando o pescador as dimensões destes aparelhos, em
função da necessidade da pesca e não por imposição avulsa e prejudicial, o
pescador é que sabe e escolhia a rede segundo e conforme a posição junto à
terra" (Inquirido nº 19).
Uma opinião comum dos pescadores, é de que a lagoa necessita ser desassoreada
de forma cirúrgica, sob pena de daqui a poucos anos, a termos apenas na
memória, transformando‑se num charco infecto, se não forem tomadas medidas
urgentes.
Apontam entre outras razões, a falta de limpeza dos cursos de água que nela
desaguam, não permitindo o seu enchimento em plenitude, a falta de fiscalização
relativa a descargas de efluentes nas suas ribeiras, com a consequente
deposição de matéria lodosa no seu fundo. A isto acrescentam a abertura ao mar
em condições pouco estudadas, em que o fecho da lagoa permite a deposição de
toneladas de areia vinda do mar, fruto de maresias lentas e marés pouco
propícias, encurtando a área de banhos e diminuindo drasticamente a
profundidade na zona leste, ou lameira. Um deles clarifica: "aquilo tem
mesmo precisão de ser visto, a alagoaestá cada vez mais baixa, qualquer dia é
um rolo de mato molhado, aquilo bastava tirar a areia onde a água corre para o
mar, ali nosurinos"(Inquirido nº 14).
***
Os resultados obtidos nos inquéritos e na recolha documental confirmam a
existência de problemas relacionados com as condições ambientais da Lagoa e com
as condições da pesca, apresentadas na Tabela_1. Esta listagem foi apresentada
aos diferentes atores-chave durante o workshop para que eles realizassem a sua
priorização, num processo de votação, a fim de se encontrarem os três itens
mais votados e que, considerados os mais relevantes, fossem sujeitos a
discussão e apresentação de propostas de solução igualmente por sufrágio.
4.4. O Workshop e seus resultados
Vinte e um atores-chave estiveram presentes no workshop. Incluíam pescadores da
lagoa (16), AAPACSACV - Associação de Armadores da Pesca Artesanal e do Cerco
do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (2), APA - Agência Portuguesa do
Ambiente (1), ICNF (0), Quercus (1), JFSA - Junta de Freguesia de Santo André
(1), CMSC (0), Agentes económicos locais (2).
No início foi apresentado um enquadramento da lagoa e os principais problemas a
que esta estava sujeita, que tinham resultado dos trabalhos anteriormente
desenvolvidos. Posteriormente, os participantes organizados em grupos de
trabalho mais pequenos tiveram oportunidade de analisar a listagem dos
problemas principais (Tabela_1). Daí deviam selecionar os três problemas mais
votados, com vista ao apuramento das respectivas soluções. O passo seguinte
consistiu na discussão por cada grupo de trabalho, para que apresentassem
soluções até um número de cinco para cada um dos problemas mais votados,
soluções que mereceram posteriormente o voto individual dos atores conforme o
apresentado na tabela_2.
Não obstante a ausência do ICNF no workshop, os resultados foram-lhe
transmitidos em tempo devido, para conhecimento e apreciação.
4.5. Propostas de Solução e Recomendações
Este tipo de trabalho de investigação, com envolvimento e participação da
população local, espelha, pela natureza da sua temática, não só a importância
dos processos de divulgação e da sensibilização à participação da população
local nas decisões para a gestão ambiental das zonas costeiras, como traduz a
resultante dessa mesma envolvência, com inegáveis proveitos para todos.
De um modo geral, as grandes transformações operadas no seio das comunidades
são fruto de tendências e de uma visão cada vez mais voltadas para a
globalização, em que os Estados, por força de estratégias e planos de pendor
empresarial e económico, equacionam, muitas vezes, a requalificação de zonas de
excelência ambiental e social, em áreas de grande potencial produtivo e/ou
turístico.
Essas áreas, que se revestem de uma ancestralidade enriquecida pelos saberes
tradicionais, ficam, por maioria de razão, em nome do progresso e do
ordenamento territorial, irremediavelmente descaraterizadas, fruto do défice
cultural, social, económico e da perda de riqueza etnográfica, muitas vezes
irrecuperáveis, a que essas alterações estruturantes muitas vezes conduzem.
Num estudo desenvolvido por Vivacqua et al. (2009), estes autores referem serem
inúmeros os desafios e obstáculos que têm sido observados nestes processos de
gestão, em que é requerida a participação dos atores-chave no processo de
decisão, dada a ausência de compromisso e pouca participação dos órgãos
públicos, bem como a fraca participação da população local, que muitas vezes se
ausenta dos trabalhos, contrariando o princípio da cidadania ativa e
participativa, que estabelece que todos os planos de gestão elaborados pelos
Estados devem ser desenvolvidos com a participação efetiva dos atores sociais
envolvidos no processo.
O estudo em apreciação versa o debate académico sobre a viabilidade de
implementação de estratégias alternativas relativas ao desenvolvimento em zonas
costeiras protegidas, no cenário da globalização assimétrica, que caracteriza
as sociedades modernas, em particular a zona do Estado de S. Catarina no
Brasil. A linha de argumentação alude primeiramente a perspectiva de aplicação
do conceito de desenvolvimento territorial sustentável ao processo em curso de
criação de um sistema de gestão integrada e participativa do litoral. Numa
outra abordagem, apresenta uma visão panorâmica do processo de normatização dos
instrumentos utilizados no Sistema de Gestão de Unidades de Conservação no
Brasil, oferecendo uma síntese do processo de construção do projeto de Gestão
Integrada das Unidades de Conservação Marinho-Costeiras do Estado de Santa
Catarina. Em seguida, houve que estudar o potencial contido na abordagem
territorial do desenvolvimento para a consolidação do processo de integração no
Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, tendo presente as diversas abordagens
requeridas, entre as quais a participação de agentes e atores numa
representação interessante do ponto de vista da ampliação da participação das
comunidades locais na gestão do património natural e cultural costeiro.
Segundo Santos (2011), no seu trabalho sobre a sustentabilidade relativa ao
impacto da criação da Reserva Natural das Ilhas Berlengas (RNB), no seio da
comunidade piscatória da cidade de Peniche, houve que modelar procedimentos e
organizar uma estrutura de trabalho assente em entrevistas exploratórias feitas
a pescadores, bem como a técnicos do ICNB (atualmente, ICNF), que permitiram em
fase posterior caracterizar a realidade social encontrada no terreno, com vista
ao encontro de soluções e conclusões para a gestão de eventuais conflitos.
Relativamente a este estudo, no qual encontrámos similitude entre as duas
realidades, a desta população e a da Lagoa de Santo André, tivemos em conta a
sua abordagem à gestão dos recursos e sua sustentabilidade, face a um organismo
tutelar, bem como seu contributo para o Estado da Arte.
Um outro projeto num contexto semelhante: o MARgov do Instituto do Mar (IMAR),
visou capacitar agentes para a mudança, ao nível da governação sustentável dos
oceanos, pelo reforço do diálogo entre os atores, assim como realçar a dimensão
humana e social na gestão das áreas marinhas protegidas (AMP). Tendo como
enfoque a resolução da problemática relativa à governança e à fraca
participação dos atores locais na gestão do Parque Marinho Professor Luiz
Saldanha do Parque Natural da Arrábida, o projeto regista outro exemplo
desenvolvido em Portugal sobre esta temática, tendo obtido resultados
assinaláveis ao nível da capacitação de agentes para a governação sustentável
dos oceanos, reforçando o diálogo ecossocial na resolução de conflitos,
vincando as competências e a corresponsabilização de todos os atores na
cogestão participada, modulando saberes e conhecimento, num processo de
articulação entre os diversos tipos de conhecimento (tradicional, cultural,
técnico‑científico), bem como criando sinergias para fomentar a troca de
saberes, experiências e boas práticas entre os diferentes atores, visando a
construção de novo conhecimento para obtenção de soluções colaborativas
(Vasconcelos et al., 2012).
No caso da Lagoa de Santo André, assistimos a um processo quase natural, de
grande necessidade de ordenamento costeiro, tendo sido desenvolvido nos anos
oitenta do século XX, um plano Diretor Municipal de ordenamento urbano que, em
rigor, a CMSC, de parceria com o Ministério do Ambiente, executou de forma
brilhante, segundo José Eduardo Evangelista Franco Cheis, vereador da edilidade
à época, mas aquém das expectativas do desenvolvimento esperado pela população,
a quem tinha sido prometida a execução de um plano de desenvolvimento
sustentável, ambicioso e que traria mais‑valias sociais, económicas e
ambientais à região (Cheis, com. pess .).
Esta povoação tem a particularidade de ter no seu domínio territorial um espaço
lagunar inserido na Reserva Natural das Lagoas de Santo André e Sancha, tendo
sido neste enquadramento, espaço lagunar e povoação do mesmo nome, que
centrámos este estudo, tendo como matriz a perceção das populações face à
sustentabilidade das zonas costeiras.
5. Considerações finais
5.1. Refletindo Sobre os Resultados
A antiga povoação oferece agora um ar desolador e não se vislumbra no imediato
que se altere este estado de coisas, carecendo esta zona de um projeto de
recuperação que vise a sustentabilidade e o pendor ambiental e económico que
dignifique a zona costeira e que com isso promova a equidade social.
No mesmo contexto de ordenamento, é criada a RNLSAS (Reserva Natural da Lagoa
de Santo André e Sancha) e, posteriormente, o ICNF, entidade/autoridade que
passa a determinar os novos procedimentos, no que à área protegida concerne. A
pesca passa a ser regrada sob a chancela legislativa cujas determinações são
veiculadas em editais de pesca todos os anos.
A pesca na lagoa continuou e continua, da forma que agora se apresenta. Foi
criada a Zona de Pesca Profissional, os pescadores organizaram‑se, associaram-
se e, acima de tudo, interessaram‑se não só pelos seus recursos, enquanto esta
atividade lhes pode trazer algum proveito, como pela preservação da lagoa e das
espécies que nela habitam.
Este estudo não encontra uma problemática derivada do conceito inicial, que
apontava a deslocalização da povoação como fator determinante para que se
perdesse, com isso, a tradição, os saberes e o legado da tradição oral, aliados
à perda da identidade que caracterizava esta gente. A profunda alteração de
paradigma, na qual se inclui a deslocalização desta povoação, é que foi
determinante para que fosse esquecida a memória e a tradição, que agora se
procura recuperar e preservar.
Na realidade, no âmbito do propósito da referida perceção das populações face à
sustentabilidade, encontrámos neste estudo exploratório, matéria digna de nota
no que à pesca da lagoa refere, mas também iniciativas autárquicas louváveis,
para a preservação da identidade, dos saberes e tradição do povo antigo da
lagoa.
Os pescadores são agora uma população envelhecida, vindos na sua maioria da
área circundante, em detrimento de uma meia dúzia originária da Lagoa de Santo
André, que lutam obstinadamente para que a pesca continue, para que seja
possível trazer gente nova a esta faina antiga e para que a lagoa não morra,
asfixiada em processos de ordenamento e conservação da natureza que, embora
fundamentais para garantir a continuidade dos serviços dos ecossistemas, geram
conflito com as populações locais devido a uma ausência de diálogo aberto entre
as partes interessadas.
Os resultado dos inquéritos aos pescadores mostram a necessidade de maior
discussão e maior envolvimento dos mesmos, desencantados com o estado a que se
chegou, mormente pela falta de diálogo existente entre o ICNF e a sua
representante, a AAPACSACV, conscientes de que, unidos e sendo ouvidos, pode
muita coisa mudar e melhorar a bem do interesse geral, disponibilizando‑se para
estarem presentes sempre e quando instados a fazê‑lo, para que alguns dos seus
anseios pudessem ser ouvidos ou pudessem ser esclarecidos para um entendimento
cabal das limitações impostas pelo ICNF, através dos seus Editais.
Algo na realidade mudou de forma inequívoca. Veja‑se que, ao manterem‑se cerca
de trinta a trinta e cinco pescadores no ativo, pese embora o registo
discutível das suas capturas, podemos concluir que o valor médio do total
pescado por ano, se nos centrarmos apenas nos últimos três anos (os melhores),
rondará as 13 toneladas/ano.
Se considerarmos um valor médio de 10 €, o preço/kg do pescado no seu todo,
chegamos ao seguinte raciocínio: 1300/35 x 10/12 = 309 €, o que é o rendimento
mensal, sujeito a carga fiscal. Porém, frequentemente, tal não sucede, dado que
grande parte do pescado entra diretamente na alimentação das famílias. Ou seja,
o investimento em embarcações e aprestos, licenciamentos e outros custos também
financiam generosamente esta arte antiga, não deixando morrer a tradição, sendo
pouco compensatória em termos de proveitos, só sendo possível, porque, na sua
maioria, os pescadores detêm outras fontes de rendimento para a sua
subsistência.
Os pescadores pretendem que se criem condições para a acomodação das suas redes
e aparelhos e que sejam estudadas alterações ao regulamento da pesca,
nomeadamente no que se refere às dimensões e número de aparelhos autorizados, à
alteração do período de defeso, ao perímetro delimitado de pesca; pretendem
também que se olhe para as condições de equilíbrio do ecossistema, permitindo a
intervenção sustentável do homem para o seu restabelecimento; e pretendem ainda
que, acima de tudo, o saber científico não descure a sabedoria popular e saibam
comunicar sem complexos, para que se não perca esta joia lagunar, berço milenar
de tradições, de um equilíbrio extraordinário e fonte de rendimento para os
homens e mulheres que souberam, em tempos idos, dignificar a arte da pesca na
lagoa, levando o seu pescado ao reconhecimento da sua superior qualidade,
apreciado aquém e além‑fronteiras.
Em síntese, existe na comunidade piscatória a consciência e uma preocupação
ambiental no que ao equilíbrio e manutenção do ecossistema lagunar diz
respeito, a par de uma preocupação económica que visa a recuperação do espaço
envolvente e uma outra, porventura mais premente tendo em conta a sua
atividade, que aponta a regulamentação da pesca, que consideram lesiva dos seus
interesses, acentuando a manifesta falta de diálogo entre a sua associação e o
ICNF.
O problema ligado à pesca surge de forma abrangente, multidisciplinar, ou seja:
ele centra‑se em três eixos, nomeadamente, a pesca, o ambiente e o
desenvolvimento económico, que os atores-chave do referido workshop elegeram
como prioritários.
O ICNF refuta parte das propostas colocadas pelos pescadores, considerando
algumas dignas de nota, mas diz‑se desencantado pela incapacidade criada no
processo de comunicação entre os atores.
5.2. Sugestões de Propostas Futuras
Para que fossem aclaradas as discussões sobre este relato, entendemos
apresentar um conjunto de medidas a serem implementadas, de forma a melhorar a
gestão integrada desta zona costeira:
* O desenvolvimento de uma estratégia ou um plano integrador de cariz
ambiental, social e económico, que promova a qualidade e sustentabilidade a
todos os níveis desta zona do país de reconhecido potencial;
* A requalificação da bacia hidrográfica, ao nível da recuperação da área
volumétrica da lagoa, bem como o restabelecimento de procedimentos que evitem
a degradação das suas águas em processos de eutrofização, promovendo regras e
fiscalização a montante.
* Propõe-se ainda que, no terreno, o ICNF possa articular a melhor solução e
procedimentos que promovam, respetivamente:
* A fiscalização e controlo de efluentes lançados nas linhas de água que
desaguam na lagoa;
* A execução de boas práticas agrícolas, bem como a intervenção e
acompanhamento dos trabalhos ao nível da limpeza de margens de cursos de água
ou outros que, potencialmente, possam provocar o transporte de matéria
residual para a lagoa;
* O diálogo e participação efetiva de todos os atores-chave na elaboração de
regulamentos de pesca profissional;
* A avaliação de opiniões de cariz popular, sustentadas em saberes ancestrais,
quer sobre a pesca, quer sobre o ambiente;
* O esclarecimento oportuno dos pescadores sobre a determinação de atitudes
legislativas e outras ações de formação que possam, na ausência de
informação, poder gerar conflitos;
* A comunicação, na vertente relativa à eficiência e eficácia, para que se não
perca o diálogo;
* Pugnar pelos legítimos interesses do ambiente e pela preservação e melhoria
da qualidade do espelho de água lagunar;
* A resolução da problemática pesca e pescadores, consensualizando soluções que
satisfaçam as partes, propondo, pela justeza argumentativa, alterações ao
quadro legislativo, sempre que o momento o justifique, tornando os modelos
harmonizados, não estáticos e não redutores;
* A participação de entidade exterior que modere a discussão dos problemas ou
que facilite a comunicação entre os atores-chave, no sentido da resolução de
diferendos resultantes de falha na comunicação entre as partes.
As regras, normas e a consciencialização para a questão ambiental, carecem de
um sentir instituído por práticas didácticas e pedagógicas com alcance global,
que envolva todos os atores, numa ética ambiental e de responsabilidade social,
acrescida da participação dos Estados em termos de legislação, que conduza aos
princípios da prevenção, do desenvolvimento sustentável, e da defesa dos
recursos naturais.
A Constituição portuguesa estabelece um conjunto de princípios fundamentais em
matéria de ambiente ' como seja o da prevenção, o do desenvolvimento
sustentável, o do aproveitamento racional dos recursos, um processo
forçosamente lento de consciencialização social e de integração efetiva no
ordenamento jurídico de novas ideias (Silva, 2002).
5. 3. Conclusões
A perceção das populações locais face à sustentabilidade das zonas costeiras,
no caso da Lagoa de Santo André, foi o tema escolhido para a elaboração deste
estudo exploratório.
A conclusão final deste projeto demonstra inequivocamente que a perceção das
populações face à sustentabilidade da zona costeira em estudo, não detém a
esperada correspondência e situa-se num nível de enorme contestação,
relativamente à gestão do ICNF, o que, no entender do explorador, deriva de uma
má estratégia ao nível da comunicação entre os atores-chave do processo.
Ou seja, por esse motivo, instalou‑se o descrédito na população relativamente a
projectos em geral e aos que visem a preservação ambiental no que ao espelho de
água se refere, assim como à implementação de iniciativas que potenciem o
desenvolvimento económico desta região ou que promovam a informação sobre a
atividade de seu interesse, a pesca na lagoa.
Podemos concluir estar em presença de um caleidoscópio de problemas que são
sentidos por todas as partes envolvidas no processo da sustentabilidade desta
zona costeira e que são aguardadas, com premência, decisões e projetos emanados
da gestão pública e organismos ao mais alto nível, tendo sido apresentadas
neste estudo exploratório, possíveis soluções que podem levar a uma melhor
gestão desta zona da orla marítima no quadro da área lagunar.
Realçamos a importância de ser equacionada a participação de uma entidade
facilitadora, que modere a discussão dos problemas ou que facilite a gestão de
conflitos entre os atores-chave, concluindo‑se ser a falha na comunicação entre
atores, o principal problema encontrado pelo explorador neste projeto.
No quadro de desenvolvimentos futuros, é reconhecida a premência de estudos
continuados que avaliem e monitorizem a efetivação de editais e o grau de
satisfação das partes envolvidas no processo, com enfoque para a comunidade
piscatória da Lagoa de Santo André.