Terroir da Região Demarcada do Douro: um estudo de caso
Introdução
O terroir diz respeito à relação entre as características de um produto
agrícola (qualidade, organoléptica, estilo) e a sua origem geográfica que pode
influenciar essas características (van Leeuwen e Seguin, 2006). Em viticultura,
terroir pode ser definido, num determinado local, como um ecossistema
interactivo que inclui o clima, o solo, e a vinha, bem como factores humanos
(história, socio-economia, práticas vitícolas e enológicas) (Seguin, 1986,
1988; OIV, 2010).
A caracterização do clima ideal, em termos de temperatura, precipitação ou
radiação solar, para produzir vinho de qualidade superior tem-se revelado
elusiva. Também o melhor tipo de solo, em termos de textura, profundidade,
fertilidade ou pedregosidade, para as vinhas está por encontrar.
A videira (Vitis vinifera L.) adapta-se a uma grande variedade de climas mas há
limitações para a produção de vinhos. As mais comuns são as necessidades de
calor, expressas como somatório de temperaturas activas no ciclo (Sta), para
que as uvas cheguem ao grau de maturação desejável e a exigência de uma
sequência de todos os estágios reprodutivos. Estas limitações dificultam a
produção de vinhos com alto potencial enológico das regiões de latitude e
altitudes elevadas bem como nas regiões tropicais e equatoriais, quer por
insuficiência de Sta para regular a maturação no primeiro caso, quer por
ausência de dormência natural e/ou por precipitação durante a maturação, no
segundo.
Numa região com clima considerado adequado para a viticultura podem existir
variações locais, designadas como mesoclimáticas, resultantes quer da
topografia quer da fisiografia quer da orientação geográfica do terreno. Junto
ao copado das videiras podem produzir-se também variações climáticas, ditas
microclimáticas, que afectam o comportamento fisiológico das videiras e
resultam do tipo de solo e da gestão da vinha (controlo de crescimento e vigor
do copado, rega, etc.).
As videiras podem crescer numa grande variedade de solos mas é generalizada a
opinião (Lanyon et al., 2004) que nos solos pouco férteis produzem-se uvas com
maior potencial enológico. Do ponto de vista agronómico, características
edáficas como a espessura, o teor em matéria orgânica, a percentagem de argila
e a capacidade de troca catiónica têm uma influência significativa na qualidade
das uvas e respectivos mostos (Tardaguila et al., 2011).
O estudo do efeito de todos os parâmetros do terroir é impossível de abarcar
num trabalho singular e os autores escolhem um número muito limitado de
parâmetros, ou mesmo um único, para a avaliação do efeito sobre as
características de produção das vinhas. Para van Leeuwen et al. (2004), o
impacto do clima e do solo sobre a composição dos mostos é superior ao das
castas e está sobretudo relacionado com a influência do clima e do solo na
disponibilidade hídrica para a videira, sendo os melhores vinhos produzidos
quando o balanço hídrico da floração à colheita é deficitário mas mantendo o
crescimento vegetativo até ao pintor e, mais tarde, a maturação das uvas sem
interrupção. Contudo, as características das castas têm de ser consideradas
pois a enorme variedade de aromas que se encontram nos vinhos está intimamente
associada ao genoma das videiras (Louime et al., 2010). As técnicas enológicas
imprimem igualmente aos vinhos características específicas e independentes do
material vegetal e da sua proveniência geográfica (Apolinar-Valiente et al.,
2013). As características dos mostos, e não dos vinhos, são potencialmente
melhores indicadores das influências ambientais e genéticas porque não estão
influenciados pelos processos de vinificação (Tarr et al., 2013; Roullier-Gall
et al., 2014). Porém, os viticultores tendem a valorizar as influências
ambientais na tipicidade de cada vinho, enquanto os enólogos e os painéis de
profissionais de avaliação de vinhos valorizam em particular as técnicas
enológicas (Cadot et al., 2012a).
Na Região Demarcada do Douro (RDD), sub-região do Cima Corgo, num conjunto de
propriedades vitivinícolas da margem Sul do rio Douro, havia uma percepção
empírica de que os vinhos provenientes de áreas distintas tinham também um
caracter distinto e que essas áreas poderiam constituir diferentes terroir. Se
assim fosse, cada um deles deveria ser valorizado e gerido de forma
diferenciada. Foi implementado um trabalho em duas áreas próximas onde havia
indicações empíricas da produção de vinhos com características diferentes,
tendo sido postas sobre observação um conjunto de videiras de castas
recomendadas e muito comuns na RDD. Os objectivos do trabalho eram: 1)
determinar as características de produção e dos mostos de cada uma das castas
provenientes de cada local de produção, 2) determinar a adaptabilidade de cada
casta aos locais específicos, 3) determinar a possibilidade de definir os
terroir baseando-se nas características de produção e dos mostos.
Material e Métodos
O trabalho realizou-se em 2012 e 2013 em dois locais distintos que agrupavam um
total de 461 videiras escolhidas aleatoriamente em cada local. O local que se
designa por Grupo A (GA) está centrado a N41º07´50´´, W7º21´49´´, altitude 260
metros e inclui 197 videiras distribuídas por um raio de 500 metros à volta do
seu centro. O local que se designa por Grupo B (GB) está centrado a
N41º12´00´´, W7º30´00´´, altitude 240 e inclui 264 videiras com a mesma
distribuição em relação ao centro do local. A fisiografia do terreno é muito
quebrada e ambos os locais têm uma exposição solar comum que vai do Norte-Este
a Oeste.
O solo dos dois locais está classificado como Antrossolo "de
mistura" dístrico de xisto e rochas afins (COBA, 1987).
As castas observadas foram a 'Touriga Nacional' (TN) com 119
plantas em GB e 109 em GA, a 'Touriga Franca' (TF) com 59 plantas
no GB e 39 no GA, a 'Tinta Roriz' (TR) com 86 no GB e 49 no GA.
Todas as videiras escolhidas estavam enxertadas em R99.
As videiras faziam parte de vinhas em produção comercial e conduzidas segundo
as práticas comuns na região. O sistema de plantação era o patamar de 4 metros
de largura com compasso de 2 metros na entrelinha e 1 metro na linha resultando
numa densidade de plantação em cerca de 4500 plantas ha-1. As videiras eram
conduzidas em cordão bilateral com parede de vegetação mantida de 150 a 160 cm
de altura e 70 a 80 cm de largura durante o seu período de maior
desenvolvimento vegetativo. A poda de Inverno deixou 10 a 13 gomos por planta.
À data da colheita comercial foi medida a produção individual de cada videira
(P) e os bagos congelados para posterior análise em laboratório. À data da
realização das podas foi pesada a lenha de poda de cada videira (L).
O mosto proveniente de todos os bagos de cada videira foram analisados para
determinação do álcool provável (Ap), acidez total (Ac), pH (OIV, 2013),
intensidade corante (IC), tonalidade corante (TC) e antocianinas totais (An). A
intensidade corante foi calculada como o somatório das absorvâncias a 620, 520
e 420 nm e a tonalidade corante como a razão entre a absorvância a 420 nm e a
520 nm (Amerine e Ough, 1988). As antocianinas totais foram determinadas como
descrito por Francis (1982).
A disposição estatística foi completamente aleatória e a análise recaiu sobre
dois factores: local (2) e casta (3). As videiras individuais e os anos de
produção foram tidos como repetições.
Resultados e Discussão
A produção por cepa foi significativamente (P £0,05) superior nas videiras
incluídas no grupo A com cerca de 200 gramas mais do que as videiras do grupo B
(Quadro_1). A produção por casta (Quadro_1) mostra que a 'Tinta
Roriz' produziu significativamente mais do que a 'Touriga
Franca' e a 'Touriga Nacional' entre as quais não houve
diferença significativa (P >0,05) de produção. A TN excedeu em cerca de 100% o
valor médio da produção desta casta no Douro reportada por outros autores
(Magalhães, 2003; Abade, 2009). A TR e a TF tiveram produção semelhante ao
indicado por Magalhães (2003) mas bastante superior ao indicado por Abade
(2009). Os resultados obtidos e os que foram reportados noutros trabalhos
indicam que na RDD há uma variabilidade acentuada na produção entre locais e
castas.
O balanço entre a produção e a expressão vegetativa, avaliado pelo Índice de
Ravaz (IR) que representa a razão entre a produção e o peso de lenha de poda
(Ravaz, 1911), é considerado equilibrado quando IR se situa entre 4 e 10 para
as videiras com potencial de produção de alta qualidade de frutos e vinhos
(Kliewer e Dokoozlian, 2005). Alguns autores demonstraram a existência de uma
relação inversa entre a expressão vegetativa, aqui avaliado pelo peso da lenha
de poda, e a composição dos mostos, quer nos sólidos solúveis, quer nos taninos
e nos polifenóis (Cortell et al., 2008). Assim, pode verificar-se que IR está
desequilibrado nas videiras do grupo A e na 'Touriga Nacional'
(Quadro_1). As videiras incluídas no grupo A e a TN desenvolveram
excessivamente o copado para a produção obtida; dadas as limitações ao aumento
de produção, deverá ser aconselhável reduzir o crescimento vegetativo por
gestão do copado ou gestão do solo e sua cobertura de modo a reduzir a
expressão vegetativa das videiras.
O IR inferior a 4 nas videiras GA parece ter tido um efeito negativo na
quantidade de álcool provável (Quadro_2). Contudo, também TN tem IR inferior a
4 mas o seu teor em álcool provável foi superior ao das outras duas castas. Os
valores de álcool provável encontrados estão próximos dos mencionados por
Guerra e Abade (2008) para as castas TF e TN, mas neste trabalho o valor para
TR (12,8) foi superior ao reportado por aqueles autores (11,5), o que revela um
desequilíbrio entre produção e expressão vegetativa com consequências negativas
para a qualidade dos mostos desta casta.
O valor da acidez total (Quadro_2), que se procura ser 6 a 7 gL-1 equivalente
de ácido tartárico para vinhos de qualidade elevada (Esteban et al. 1999), é
bastante baixo, quer nos locais, quer nas castas. Os valores apresentados por
Abade (2009) para a acidez total das três castas variam entre 4,5 e 5 gL-
1 equivalente de ácido tartárico e neste estudo eles foram, em geral,
inferiores. O pH (Quadro_2) apresenta valores muito próximos em qualquer dos
factores considerados e sempre inferiores aos mencionados por Abade (2009).
O pH e a acidez total do mosto são características importantes na vinificação.
O pH tem uma forte influência na cor e estabilidade das antocianinas (Heredia
et al., 1998). É razoável assumir que os valores de pH medidos neste trabalho
não tiveram influência significativa na intensidade corante e na concentração
de antocianinas, que se apresentam adiante, dada a pequena variação entre
locais e castas. A acidez do mosto decresce ao longo do processo de maturação,
sobretudo porque os ácidos mais importantes, málico e tartárico, se degradam e
o ácido málico mais intensamente com o aumento da temperatura ambiente (Peyrot
des Gachons et al., 2005; González-Fernández et al., 2012). A baixa acidez dos
mostos na RDD justifica assim a prática enológica comum da adição de ácido
tartárico durante o processo de vinificação.
A intensidade corante (quantidade de cor) (Quadro_3) foi significativamente
superior nos mostos provenientes do grupo A em relação ao B. A tonalidade
corante (matiz da cor) (Quadro_3) foi também significativamente diferente entre
os dois locais, tendo sido o mosto proveniente do grupo B o que teve os valores
mais elevados. Entre as castas não houve diferença significativa quanto à IC. A
TN teve o valor mais elevado de TC em relação à TF e TR.
Contudo, registou-se uma interacção significativa entre castas e locais. A TN
produziu mostos com IC significativamente mais elevados no grupo B (1,53) do
que no A (1,37); já a TF produziu mostos de grande IC no grupo A (1,91) e mais
baixos em B (1,11). A TR teve um comportamento igual em ambos os locais.
Em relação à TC também se verificou uma interacção significativa entre castas e
locais. A TN e a TR não evidenciaram diferenças significativas entre os grupos
A e B, respectivamente, 1,28 e 1,21 para a TN e 1,06 e 1,11 para a TR. Houve
uma diferença significativa entre locais para a TF, 0,94 no grupo A e 1,24 no
B.
Os valores de IC e CT são bastante superiores aos reportados por outros autores
que trabalharam em zonas mais frias do que o Douro (Somers e Verette, 1988;
Cliff et al., 2007) mas similares aos obtidos em outros climas quentes (Marquez
et al., 2013). É expectável que os vinhos produzidos por estes mostos sejam
mais ricos em cor e com tonalidades predominantemente de castanho e azul.
Embora a cor seja dependente do pH (Harbertson e Spayd, 2006), os valores de pH
obtidos nos mostos deste trabalho são muito próximos uns dos outros e pouco se
diferenciam dos valores mencionados por inúmeros autores.
A cor é uma das características sensoriais dos aspectos organolépticos mais
importantes dos vinhos predispondo o consumidor à aceitação ou rejeição do
produto e por isso pode afectar o preço do vinho (Cadot et al., 2012b;
González-Neves et al., 2014).
A cor dos mostos e dos vinhos depende sobretudo da sua composição fenólica,
sendo as antocianinas responsáveis pelas cores azuis e vermelhas (Puértolas et
al., 2010; González-Neves et al., 2014), embora as antocianinas não tenham
naturalmente aquelas cores mas quando se encontram em meios ácidos (pH por
volta de 3,5) 6% das antocianinas adquirem-nas (Darias-Martı́n et al., 2001).
No Quadro_3 apresentam-se os valores de antocianinas totais dos mostos
produzidos neste trabalho. A sua concentração é significativamente mais elevada
no grupo A relativamente ao B e a TF mostrou uma concentração cerca de 30%
superior às outras duas castas, entre as quais não se verificaram diferenças
significativas. A interacção entre locais e castas foi significativa com
comportamentos distintos para a TN e TF. Os valores elevados de concentração de
antocianinas na TF foram conseguidos no grupo A (321,5), sendo os mais baixos
entre as castas no grupo B (128,4). A TN conseguiu a concentração mais elevada
no grupo B (191,5) e o valor mais baixo entre as castas no grupo A (111,3). A
TR teve um comportamento uniforme em ambos os locais, respectivamente,150,5 no
grupo A e 156,1 no B. Apesar das grandes diferenças na concentração de
antocianinas, as cores não tiveram igual variação o que se pode explicar pelo
facto de que apenas uma parte reduzida das antocianinas adquire cores azuis e
vermelhas em meios ácidos, ou porque se terá atingido o nível máximo de
saturação.
As antocianinas do bago da Vitis vinifera são essencialmente 3-monoglucosidos
de cinco agliconas: malvidina, peonidina, petunidina, cianidina e delfinidina
(Brouillard et al., 2003), sendo as responsáveis pelo escurecimento das uvas
tintas após o pintor (Ryan e Revilla 2003). A biossíntese dos compostos
fenólicos é sensível à radiação solar reflectindo o papel destes compostos na
fotoprotecção das plantas (Koyama et al., 2012), logo, a concentração de
compostos fenólicos na película da uva aumenta com a intensidade da radiação
(Pollastrini et al., 2011).
Os valores de concentração de antocianinas foram neste trabalho superiores aos
obtidos noutras castas que cresceram em regiões de menor quantidade de radiação
solar (Marquez et al., 2013, 2014) mas foram semelhantes aos obtidos por outros
autores com as castas 'Touriga Franca' e 'Touriga
Nacional' no Douro (Mateus et al., 2002) os quais também encontraram uma
relação positiva e significativa entre o clima e a concentração de
antocianinas. O valor mais elevado obtido no grupo A pode dever-se a condições
microclimáticas mais favoráveis à biossíntese e acumulação de antocianas, mas
há que ter em conta a adaptabilidade das castas. A este respeito, a casta TF
provavelmente tem maior capacidade que as outras duas castas para biosintetizar
e acumular antocianinas.
Conclusões
Áreas pequenas e relativamente próximas na Região Demarcada do Douro parecem
ter variações meso e microclimáticas suficientemente importantes para
influenciar as características de produção e dos mostos das castas que nelas
são utilizadas. Neste sentido, essas áreas podem definir-se como terroir
vitícolas distintos.
As castas 'Touriga Nacional', 'Touriga Franca' e
'Tinta Roriz' mostraram comportamento distinto na sua produção e
características dos mostos em função do terroir em que se desenvolviam.
Deverá haver necessidade de ajustar a gestão das vinhas e dos solos no terroir
identificado como grupo A, bem como as vinhas constituídas por encepamentos de
TN dado que o seu vigor ou expressão vegetativa está desequilibrado em relação
à sua produção.