O uso de lubrificante na citologia cervico-vaginal: Revisão baseada na
evidência
INTRODUÇÃO
O cancro do colo do útero é o sétimo cancro mais prevalente a nível mundial,
sendo o segundo mais frequente no sexo feminino; de acordo com dados de 2002,
causou a morte a cerca de 275 mil mulheres.1 Dados portugueses de 2004 apontam
para o aparecimento de cerca de mil novos casos por ano e indicam que esta
doença é responsável pela morte de, em média, uma mulher por dia.2A
implementação de sistemas de rastreio organizado e de base populacional em
alguns países como Canadá e países do Norte da Europa tem-se reflectido numa
diminuição da incidência e mortalidade desta patologia.3
A técnica de citologia cervico-vaginal é o método de base para o rastreio do
cancro do colo do útero. É um procedimento sentido como desconfortável por
muitas mulheres, o que poderá determinar o seu não comparecimento às consultas
de rastreio.4-5 A utilização de lubrificante para facilitar a introdução do
espéculo é tida empiricamente como uma forma de minimizar o desconforto sentido
pela mulher durante o exame. Em última instância, esta facilitação pode
contribuir para uma maior adesão ao rastreio, levando a uma diminuição da
incidência da doença. Por outro lado, o uso de lubrificante é controverso e
desencorajado por vários autores,5-6 com base no pressuposto de que poderá
alterar a qualidade das citologias, mas sem um fundamento científico concreto.
O rastreio do cancro do colo do útero assume-se como uma das actividades
preventivas principais em Medicina Geral e Familiar (MGF), com resultados
comprovados de ganhos em saúde para a população feminina. A melhoria da
qualidade da técnica de rastreio em termos de conforto poderá ser encarada como
uma mais-valia na adesão das mulheres a este procedimento. O objectivo deste
estudo foi rever a evidência disponível sobre a interferência do uso de
lubrificante no resultado das citologias do colo do útero.
MÉTODOS
Foi realizada uma pesquisa sistemática nas bases de dados UpToDate, BMJ
Clinical Evidence, EBM Journal, TRIP Database, Cochrane Library, DARE,
Bandolier, National Guideline Clearinghouse, NeLH Guidelines Finder, Medline e
Índex de Revistas Médicas Portuguesas, de normas de orientação clínica,
revisões sistemáticas, meta-análises e estudos originais, publicados entre
Janeiro de 2000 e Janeiro de 2011, em inglês, francês, espanhol e português,
utilizando os termos MeSH vaginal smears e lubricants.
Os critérios definidos para inclusão de artigos nesta revisão foram: a)
População: mulheres que realizaram rastreio do cancro do colo do útero por
técnica convencional ou em meio líquido; b) Intervenção: utilização de
lubrificante aquando da colheita da amostra para citologia; c) Comparação:
utilização de água ou ausência de qualquer tipo de lubrificante aquando da
colheita da amostra para citologia; d) Resultado: alteração da qualidade das
amostras com comprometimento do resultado citológico. A existência prévia de
patologia cervical e a presença de infecção vaginal activa foram critérios de
exclusão.
Para avaliar a qualidade dos estudos e posterior atribuição do nível de
evidência (NE) e forças de recomendação (FR) foi utilizada a escala Oxford
Centre for Evidence-based Medicine ' Levels of Evidence.7 Esta taxonomia
subdivide a qualidade do estudo em cinco Níveis de Evidência (Quadro_I) e a
Força de Recomendação em quatro graus, como descrito no Quadro_II.
RESULTADOS
Da pesquisa inicial obtiveram-se 41 artigos. Destes foram excluídos os artigos
em que se verificou discordância com o objectivo da revisão, aqueles que não
cumpriam os critérios de inclusão e os artigos repetidos.
Foram seleccionados oito artigos,8-15 sete dos quais representam ensaios
clínicos controlados e aleatorizados (ECAC) (Quadro_III) e um estudo
retrospectivo (Quadro_IV).
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Foi atribuído nível de evidência 1b aos estudos de Amies et al,8 Griffith WFet
al9 e Hathaway et al,10 todos eles ECAC individuais com intervalo de confiança
estreito, população de dimensão significativa e com metodologia e resultados
bem descritos e compreensíveis. Nos primeiros dois estudos foi aplicada uma
pequena quantidade («dime-sized»1) de gel lubrificante aquoso na superfície
externa do espéculo quando da realização da citologia cervico-vaginal em lâmina
(convencional), com utilização de água como lubrificante no grupo controlo.
Relativamente ao estudo de Griffith WF, e atendendo à metodologia, as colheitas
foram realizadas por diferentes profissionais de saúde, com experiências também
díspares, pelo que esta variabilidade de profissionais pode causar um viés e
ser uma limitação do estudo. No terceiro ensaio, duplamente cego e com recurso
a citologia em meio líquido, foram colhidas duas amostras citológicas para cada
mulher, aplicando-se posteriormente e de forma aleatória uma pequena quantidade
de lubrificante directamente na espátula e escova, colocando-as de seguida no
meio líquido destinado a análise, usando-se como controlo amostras não
«contaminadas». O procedimento deste estudo em nada espelha a prática clínica
real, o que dificulta a transposição das suas conclusões para a prática médica.
Estes três estudos concluem que a aplicação de uma pequena quantidade de
lubrificante aquoso não interfere na interpretação nem altera os resultados da
citologia cervico-vaginal.
1. A quantidade de gel aplicada pelos investigadores foi descrita como dime-
sized, sendo o termo comparativo a moeda de dez cêntimos americana, que tem
cerca de 17 mm de diâmetro e 2,268 g de peso.
Aos restantes cinco estudos foi atribuído um nível de evidência 2b. No estudo
duplamente cego de Charoenkwan K et al11 concluiu-se que a aplicação de
lubrificante no colo uterino pode comprometer a avaliação da citologia cervico-
vaginal convencional; neste ensaio, houve uma primeira colheita de células
cervicais, seguindo-se a aplicação directa de lubrificante no colo uterino,
procedimento esse que não espelha a prática clínica real e que poderá ter
determinado, por efeito directo de barreira física, uma colheita celular
deficitária. Assim, embora se trate de um ensaio com uma amostra considerável,
apresenta uma metodologia de fraca qualidade.
Harer WB e colaboradores12 afirmam no seu estudo que a lubrificação do intróito
vaginal e das superfícies externas do espéculo com lubrificante facilitam o
exame e não afectam a qualidade do esfregaço citológico, efectuado pelo método
convencional com recurso a espátula e escova. A amostra utilizada foi, no
entanto, demasiado reduzida para poder obter uma significância estatística para
esta conclusão.
No ensaio de Holton T et al,13 os investigadores procederam à aplicação directa
de quantidades crescentes de dois tipos de lubrificante no meio líquido da
amostra citológica, tendo como controlo amostras não «contaminadas», e
concluíram que esta acção pode resultar numa celularidade reduzida. Neste
estudo, verificou-se que, com o lubrificante K-Y® Jelly, a contaminação apenas
se deu com as quantidades mais altas de lubrificante (0,4 e 0,5 g), enquanto
para o lubrificante Aquagel® a contaminação aconteceu com qualquer quantidade
de lubrificante. É ainda importante referir que o efeito provocado pelo
lubrificante é aquando da preparação da amostra no laboratório, preparação que
não acontece de igual forma na lâmina convencional. A reduzida dimensão da
amostra de lâminas foi, no entanto, uma grande limitação neste estudo, uma vez
que, para cada tipo e quantidade de lubrificante, apenas foram analisadas dez
amostras, que foram comparadas com amostras de controlo que não pertenciam à
mesma mulher. Para além deste facto, a forma como foram obtidos e apresentados
os resultados é pouco clara.
Gilson M et al14 realizaram um estudo com uma amostra de pequena dimensão, no
qual foram efectuadas para cada mulher duas citologias convencionais
consecutivas, com espátula e escova: a primeira sem lubrificante; a segunda com
lubrificante aquoso para os casos ou novamente sem lubrificante para os
controlos. Concluíram que uma pequena quantidade de gel lubrificante no
espéculo não altera a citologia cervico-vaginal. Apesar de ser um estudo bem
desenhado, o seu nível de evidência é limitado pela dimensão da amostra
utilizada.
O estudo conduzido por Tavernier LAet al15 é de carácter retrospectivo, com
base em registos médicos que incluíam uma análise anatomopatológica relatando a
adequação da amostra citológica, e na informação dada pelo médico em resposta a
um questionário sobre a sua prática de utilização ou não utilização de
lubrificante. Na análise concluíram que o uso de uma camada fina de
lubrificante aquoso no espéculo não compromete a adequação ou a interpretação
da citologia convencional, por não terem encontrado diferenças estatisticamente
significativas entre o uso de gel lubrificante, o uso de água para lubrificar e
a não lubrificação. Este tipo de desenho é limitado pelo possível viés de
memória dos clínicos e pelo facto de não se tratar de um ensaio clínico
aleatorizado e com ocultação.
CONCLUSÕES
O reduzido número de estudos encontrados apresenta elevada heterogeneidade,
sobretudo em termos metodológicos, relativamente ao desenho e técnicas
utilizadas, como por exemplo a quantidade de lubrificante usado e a técnica de
colheita da citologia. Todos eles apresentam resultados relativos ao uso de
lubrificantes do tipo aquoso. Os estudos cujas metodologias mais se aproximam
da prática clínica real apontam para que não haja interferência do lubrificante
no resultado das citologias do colo do útero. No entanto, é relevante ter em
consideração que alguns autores consideram ainda a possibilidade do
lubrificante diminuir a acção dos agentes fixadores após a colheita por
citologia convencional.
Embora não fosse um dos objectivos deste trabalho, é importante realçar que o
único estudo incluído nesta revisão que avaliou o grau de desconforto da mulher
não comprovou uma melhoria com o uso de lubrificante, contrariando a noção
empírica de que poderá diminuir o desconforto provocado na mulher pelo
procedimento de colheita da citologia cervico-vaginal.
Em conclusão, e de acordo com os dados obtidos, pode afirmar-se que o uso de
uma pequena quantidade de lubrificante aquoso não interfere com o resultado da
citologia cervico-vaginal (Força de Recomendação A), pelo que poderá ser um
procedimento a ter em conta nas situações avaliadas pelo clínico como sendo de
interesse para a mulher. Esta recomendação é suportada pelos três estudos com
nível de evidência elevado (1b), elaborados com rigor científico e metodologias
semelhantes, onde participou um elevado número de mulheres, sendo que dois
deles reflectem a prática clínica na técnica de colheita do material para
análise.
Apesar da questão clínica inicial desta revisão poder ser vista como tendo um
resultado orientado para a doença e não para a doente, a sua implicação prática
poderá ser útil por trazer uma opção viável para a realização de citologias de
rastreio do cancro do colo do útero em mulheres que de outra forma poderiam não
permitir esse procedimento. A decisão pela sua utilização, que a ter lugar
dever-se-á referir a um lubrificante do tipo aquoso, deve ser efectuada com
base no critério clínico do médico, orientado para cada mulher.
No futuro, serão necessários mais estudos cientificamente rigorosos, com
metodologia mais homogénea e maior poder estatístico.
Serão ainda pertinentes estudos que avaliem se a quantidade de gel interfere
com a qualidade da amostra, bem como a eventual redução do desconforto das
mulheres pela utilização de lubrificante na realização da citologia cervico-
vaginal.