Os serviços de saúde pública e o sistema de saúde
Introdução
O século xx está indissociavelmente marcado por avanços notáveis do estado de
saúde das populações e, muito em particular, nos países e regiões mais
desenvolvidos do Globo. Os ganhos na esperança de vida à nascença no último
século corresponderam, em países como os Estados Unidos, a quase 30 anos e a
mais de 22 anos no resto do Mundo (Khaliq e Smego Jr, 2007).
Dos 30 anos de quantidade média de vida ganhos durante o século xx, apenas 5
anos (i.e., menos de um quinto do total) são atribuíveis aos serviços de saúde
(Turnock, 2004).
Não obstante a sua relevância, a Saúde Pública é uma área de conhecimento e
intervenção mal compreendida pelo público em geral e mesmo pelos seus
profissionais (Turnock, 2004).
O envelhecimento global da população é, simultaneamente, uma das maiores
conquistas da Humanidade e um dos seus maiores desafios (WHO, 2002) pela
sobrecarga assistencial e comunitária decorrente das doenças crónicas e da
incapacidade associada. A elevada prevalência de idosos coloca Portugal como um
dos países mais envelhecidos do Mundo (Almeida, 2004a).
Se considerarmos apenas a segunda metade do século xx, dos 7,5 anos de aumento
da esperança de vida observados durante este período, cerca de metade são
atribuíveis aos cuidados médicos e de saúde (Bunker, 2001) fracção claramente
superior à estimada para todo o século xx.
Alguns autores consideram que uma vez supridas as necessidades básicas em saúde
(relacionadas com as condições de vida, nutrição e intervenções em saúde
pública facto verificado na generalidade dos países e regiões mais
desenvolvidos), os cuidados médicos tornam-se o principal determinante da
esperança de vida, sendo seu impacte substancialmente maior do que o ambiente
social ou os estilos de vida (Bunker, 2001).
Face ao custo crescente dos cuidados de saúde («explosão de custos»), a
sustentabilidade do sistema de saúde assume-se, pois, como um dos principais
desafios da Saúde Pública global.
A reorganização dos serviços de saúde pública em curso no nosso País (Fevereiro
de 2009) é contextualmente propícia à discussão de um modelo conceptual de
Saúde Pública à luz dos desafios enunciados.
O modelo a adoptar deverá salvaguardar o indispensável equilíbrio entre
compreensividade/exaustividade (comprehensiveness) e compreensibilidade
(comprehensibility), tendo em vista a sua fácil adopção pelos diversos actores
da Saúde Pública incluindo o público em geral.
Saúde Pública: definições e conceitos
A Saúde Pública, enquanto objectivo, existe desde as primeiras civilizações
quando os governantes assumiram a responsabilidade política de salvaguarda da
saúde das populações das primeiras cidades, designadamente através da
construção de sistemas de esgotos para drenagem de efluentes domésticos e
aquedutos para fornecimento de água ou através de intervenções ambientais como
a drenagem de pântanos (Almeida, 2004b).
Estas medidas tiveram como finalidade gerir o maior desafio de sempre da
Humanidade: a sedentarização (Almeida, 2004b). Além do risco acrescido de
transmissão de doenças infecciosas, a sedentarização resulta em impacte
ambiental decorrente da utilização dos solos e das diversas actividades
humanas, sendo tanto maior esse impacte potencial quanto maior a dimensão do
aglomerado populacional (Almeida, 2004b).
Terá sido há cerca de 4000 anos que se iniciou o planeamento em saúde pública,
quando as primeiras cidades do Vale do Indo desenharam (e construíram) os
primeiros sistemas cobertos de esgotos (Rosen, 1993).
Não obstante a Saúde Pública enquanto objectivo, remontar há milhares de anos
atrás, a sua emergência enquanto corpo organizado do conhecimento deu-se em
meados do século xix, tendo tido como um dos seus mais notáveis impulsionadores
o cirurgião John Simon (1816-1904), o primeiro Director-Geral da Saúde (Chief
Medical Officer)do Reino Unido (Pickstone, 2001).
A Saúde Pública pode ser definida de acordo com as suas diversas dimensões que
reflectem as suas diversas imagens societais (Turnock, 2004). De acordo com
Turnock (2004), são cinco as imagens societais da Saúde Pública
simultaneamente suas dimensões:
Saúde Pública como sistema social;
Saúde Pública como profissão;
Saúde Pública como método de intervenção (i.e., corpo de conhecimento teórico
e prático);
Saúde Pública como serviço público, assegurado por agências e organismos do
Estado;
Saúde Pública como saúde do público (i.e.,desfecho pretendido).
Atendendo a que a Saúde Pública integra o conhecimento oriundo das mais
diversas áreas, incluindo daquelas que são consideradas as suas ciências
básicas (epidemiologia, biostatística, ciências ambientais, ciências económicas
e ciências comportamentais) os seus profissionais divergem quer no que diz
respeito à formação de base, quer no que diz respeito às actividades
desempenhadas (Turnock, 2004).
Não obstante a epidemiologia ser a área de conhecimento basilar da Saúde
Pública, um epidemiologista não é por inerência um seu actor; só o é quando
dispõe da capacidade para aplicar o conhecimento epidemiológico no controlo dos
problemas de saúde identificados (Almeida, 2008a). O valor máximo da
epidemiologia só é alcançado quando os seus contributos científicos são
colocados ao serviço da Saúde Pública e resultam na melhoria da saúde das
populações (Koplan, Thacker e Lezin, 1999).
A Saúde Pública consiste, antes do mais, numa prática (Turnock, 2004), ainda
que alicerçada na evidência científica. A sua natureza pluridisciplinar é,
simultaneamente, uma força e uma fraqueza: é uma fraqueza atendendo à ausência
de cultura comum, mas é uma força face à diversidade de determinantes de saúde
e consequente necessidade do concurso de diversas áreas do conhecimento e
intervenção na resolução dos problemas identificados (Turnock, 2004).
Desta forma, mais do que um grupo profissional, a Saúde Pública deve ser
entendida como um «movimento» (Turnock, 2004). Trata-se duma perspectiva
adequada se considerarmos a natureza sistémica da Saúde Pública e a sua
dimensão de desfecho pretendido («saúde do público»).
O objectivo de reduzir a doença e manter a saúde das populações (Fee, 1991 cit.
por Almeida, 2004b) decorre do comprometimento da sociedade na melhoria da
saúde e bem-estar das populações (Rychetnik et al., 2004) mediante a
«externalização» dos benefícios do conhecimento científico ao maior número
possível de indivíduos (Turnock, 2004).
A Saúde Pública, enquanto prática, decorre da intersecção entre o conhecimento
disponível e os valores societais (aceitabilidade de um problema de saúde),
sendo a intervenção planeada quando, à luz do conhecimento e instrumentos
tecnológicos disponíveis, um determinado problema de saúde «atravessa» a
fronteira do aceitável face à sua vulnerabilidade técnica em determinada época
ou contexto societal (Turnock, 2004).
Assim, aquilo que é aceitável numa sociedade em determinado momento pode,
posteriormente, deixar de o ser em virtude dos ganhos científicos e
tecnológicos entretanto obtidos. Em contrapartida, países ou regiões diferentes
podem ter limiares de aceitabilidade diferentes relativamente ao mesmo problema
de saúde em função do respectivo nível de desenvolvimento científico e
tecnológico.
Este carácter contextual inerente à Saúde Pública encontra-se expresso na
definição de Gonçalves Ferreira (1912-1994), uma das maiores referências da
Saúde Pública nacional, na sua obra «Saúde Pública: Higiene, Medicina
Preventiva, Medicina Social, Administração e Legislação Sanitária»: «Não é
fácil dar uma definição sucinta e clara de Saúde Pública, porque o seu
significado varia com o período histórico e o grau de evolução da sociedade a
que diz respeito. Tem como característica essencial o estudo e a solução dos
problemas que interessam a saúde dos indivíduos integrados no meio em que vivem
(...)» (Ferreira, 1963).
Este Autor considera, na mesma obra, que a Saúde Pública tem como «objectivo
essencial o estudo e resolução dos problemas de saúde que condicionam a saúde
dos indivíduos integrados no seu meio ambiente» definição que realça a sua
dimensão ecológica.
De facto, a Saúde Pública pode ser entendida como a procura de equilíbrio entre
os indivíduos e o seu ambiente (Wenzel, 1998). Esta perspectiva assenta numa
estratégia de salvaguarda da saúde mediante a gestão de riscos ao invés da sua
evicção, na maior parte das vezes não exequível. Pretende-se, assim, uma «co-
habitação» pacífica (mas dinâmica) entre o ambiente e os indivíduos (Almeida,
2004b).
Os serviços de saúde pública exibem um fraco protagonismo social e mesmo
desconhecimento e falta de consideração por parte do público em geral, seu
beneficiário primordial (Turnock, 2004; Almeida, 2008a). Por outro lado, nem
sempre a sua missão é clara aos olhos dos seus profissionais, oriundos das mais
diversas áreas do conhecimento, com formações e práticas distintas mas com uma
missão (aglutinadora) comum (Turnock, 2004).
A estratégia major de intervenção em Saúde Pública consiste na prevenção
(Turnock, 2004; Aschengrau e Seage III, 2008) que tem como resultado os não-
acontecimentos (Turnock, 2004). Tal explica, porventura, a fraca visibilidade
dos serviços de saúde pública e dos seus profissionais, uma vez que a
causalidade entre uma intervenção preventiva e o seu desfecho (não-
acontecimento) é mais difícil de evidenciar aos olhos do público em geral do
que a relação causal entre uma intervenção terapêutica e um desfecho favorável
(tratamento ou cura) (Almeida, 2008a).
Os decisores políticos são actores essenciais da Saúde Pública não só porque
detêm os recursos mas porque os serviços de saúde pública, pela sua natureza,
dependem do poder político. A natureza política da Saúde Pública propicia
conflitualidades com o poder político de que dependem os seus serviços, quando
estes identificam necessidades de saúde e tornam, desta forma, os indivíduos e
as comunidades mais conscientes dessas mesmas necessidades (Turnock, 2004).
Note-se, no entanto, que a acção política é necessária quer a nível do
planeamento (planeamento normativo), quer ao nível da alocação e
disponibilização de recursos e serviços.
Atendendo a que é obrigação dos governos zelar, de forma activa, pela protecção
da saúde dos seus cidadãos (Aschengrau e Seage III, 2008), a Saúde Pública e o
poder político estão «condenados» a ser parceiros.
Doença crónica e novo paradigma de cuidados de saúde
As doenças crónicas (ou de evolução prolongada) são um grupo heterogéneo de
doenças que emergem na meia-idade, estando associadas a padrões não-saudáveis
de consumo (Yach et al., 2006). O tabagismo, o complexo dieta-actividade física
e o abuso de álcool são os factores de risco primordiais de doença crónica,
traduzidos em «riscos intermediários» como a hipertensão arterial ou a
hiperglicemia (Yach et al., 2006).
As doenças crónicas caracterizam-se por um longo período de latência, factores
de risco comuns (actuando de forma independente mas sinérgica), ocorrência
concomitante de duas ou mais doenças (co-morbilidade) e, não obstante a baixa
«taxa» de cura, uma elevada preventibilidade (Yach et al., 2006).
Os principais determinantes das doenças crónicas são o envelhecimento, a
urbanização, o desenvolvimento económico e a globalização, sendo certo que o
desenvolvimento económico e a urbanização podem ser, igualmente, determinantes
de saúde (Yach et al., 2006).
Nos EUA estima-se que quase 90% dos idosos padecem de, pelos menos, uma doença
crónica e destes, 25% padecem de quatro ou mais doenças crónicas, sendo que
estas doenças representam três quartos das despesas em saúde naquele país
(Bodenheimer e Grumbach, 2007).
Em 2006 os países da OCDE/OECD gastaram cerca de 9% do PIB em cuidados de saúde
contra 7% em 1990 e 5% em 1970. Em idêntico ano o nosso País despendeu 10,17%
do PIB em cuidados de saúde (OECD, 2007), valor superior ao do conjunto dos
países da OCDE e, em termos individuais, ao de países com indicadores de saúde
semelhantes.
Note-se que os gastos totais em saúde em Portugal em 1970 correspondiam a
apenas 3% do seu PIB, i.e., consideravelmente menos do que em países como a
Itália ou a Espanha (Barros e Simões, 2007), pelo que a «explosão de custos»
verificada no nosso País desde então foi muito mais acentuada.
A «explosão de custos» verificada no sector da saúde nos últimos 40 anos
(Zweifel e Dreyer, 1997) é atribuível não só ao envelhecimento da população
simultaneamente uma das maiores conquistas da Humanidade e um dos seus maiores
desafios (WHO, 2002) mas também à inovação tecnológica do sector hospitalar,
à alteração da estrutura familiar (institucionalização dos idosos) e às
expectativas acrescidas relativamente aos cuidados de saúde (Clewer e Perkins,
1998).
Os hospitais são unidades de saúde da maior relevância no sistema de saúde, não
só do ponto de vista financeiro (representam mais de 50% do total da despesa em
saúde) mas também do ponto de vista organizacional (McKee e Healy, 2000).
O sector hospitalar, hegemónico no sistema de saúde, faz uso das mais recentes
tecnologias e dispõe de profissionais altamente diferenciados, estando as
instituições hospitalares vocacionadas para a gestão de situações agudas,
exigindo um volume intensivo de recursos limitados a um período de tempo
relativamente curto.
O controlo individual das doenças crónicas (efectividade) depende da adesão à
terapêutica, sendo esta condicionada pela qualidade da interacção médico-
doente. Quanto mais efectiva esta interacção («aliança terapêutica»), maior a
satisfação dos doentes e maior a probabilidade de adesão à terapêutica e
desfecho clínico favorável (Schillinger, Villela e Saba, 2007).
O modelo tradicional de cuidados de saúde assenta na prestação de cuidados
episódicos (terapêuticos) na sequência de doenças agudas (Dever, 2006), sendo o
doente remetido a um papel passivo, de receptor de cuidados médicos.
Os doentes constituem o recurso mais desvalorizado do sistema de saúde se
atentarmos ao facto de que, no que diz respeito às doenças crónicas, estes são
os mais importantes prestadores de cuidados (Bodenheimer e Grumbach, 2007).
As interacções utentes-profissionais de saúde transitaram de uma centralidade
no profissional de saúde para uma centralidade no cidadão. Enquanto que a
abordagem tradicional, centrada no profissional de saúde, tinha como
pressuposto que a informação disponibilizada era condição suficiente para
alterar comportamentos e tinha por objectivo a adesão às recomendações do
prestador, a abordagem colaborativa é baseada no conceito de auto-eficácia como
«motor» de mudança, tendo como objectivo aumentá-la (Bodenheimer e Grumbach,
2007).
O cidadão deixa de ser exclusivamente receptor ou destinatário de cuidados para
ser considerado, também, como (auto)prestador de cuidados e, assim, se evolui
duma perspectiva dicotómica e exclusiva do sistema de saúde (prestadores versus
doentes) para uma perspectiva inclusiva e em continuum.
Este continuum vai desde o auto-prestador estrito na doença (por exemplo,
mediante a prestação de auto-cuidados em situações clínicas banais) até ao
receptor estrito de cuidados de saúde (por exemplo em situações clínicas graves
que impliquem cuidados altamente diferenciados e em que a participação do
doente no processo de tomada de decisão não seja exequível).
No que diz respeito à gestão das doenças crónicas, o doente localiza-se no
intervalo entre estas duas situações extremas, variando a sua posição relativa
em função da gravidade e do grau de capacitação relativamente a essa doença.
Os cuidados domiciliados (home-based care), incluindo os cuidados de longa
duração, têm vindo a expandir-se rapidamente em todo o Mundo (WHO, 2000). Tal
pode ser explicado pelos seguintes factores (Tarricone e Tsouros, 2008):
expectativas crescentes dos consumidores de saúde relativamente à escolha de
serviços («voice and choice»);
alterações demográficas (envelhecimento acentuado da população);
alterações societais (fragmentação do núcleo familiar e emprego feminino);
alterações epidemiológicas (transição epidemiológica e prevalência das
doenças crónicas);
inovação tecnológica e científica (que tornam possível a prestação de
cuidados high tech em contexto domiciliar);
prioridades políticas (desinstitucionalização dos doentes e contenção de
custos).
Este será, porventura, um dos maiores desafios que os sistemas de saúde dos
países e regiões mais desenvolvidos vão ter de enfrentar nas próximas décadas:
assegurar a prestação de cuidados médicos de qualidade em meio domiciliar
retornando, desta forma, ao modelo baseado nas consultas domiciliares, de que
os «Joões Semana» foram os seus mais ilustres praticantes.
Espectro de cuidados de saúde: da promoção da saúde aos cuidados diferenciados
O espectro dos cuidados de saúde consiste em quatro estádios fundamentais
(Brown, 2006):
Manter-se saudável (staying healthy);
Melhorar (getting better);
Gerir a doença e incapacidade (managing disease and disability);
Lidar com o fim de vida (coping with end of life).
As funções básicas do sistema de saúde são as seguintes (Brown, 2006):
Saúde Pública (i.e. melhoria do nível de saúde das populações);
Auto-cuidados (incluindo auto-cuidados de saúde, auto-cuidados de emergência
e auto-gestão da doença crónica);
Cuidados primários (cuidados de primeiro contacto);
Cuidados diferenciados (specialty care).
A Saúde Pública, enquanto comprometimento social, visa promover a saúde,
prevenir a doença e a morte prematura e, desta forma, prolongar a vida (com
qualidade). Trata-se, pois, de uma definição que enfoca no desfecho pretendido,
decorrente de esforços concertados da sociedade.
Os auto-cuidados (self-care) consistem nas acções empreendidas pelos indivíduos
tendo por finalidade a manutenção da saúde e a gestão de problemas de saúde
banais e doenças crónicas, sem que tal exclua a interacção com os profissionais
de saúde/equipa de cuidados de saúde e sua eventual intervenção (UK. National
Health Service, 2009).
Trata-se dos cuidados mais abrangentes, porque enquadráveis em todos os
estádios do espectro de cuidados desde a promoção da saúde (staying healthy)
até à gestão do fim de vida.
Os cuidados de saúde primários, «porta de acesso» ao sistema de saúde, assentam
na continuidade e compreensividade, sendo prestados aos cidadãos em contexto
familiar e comunitário e tendo por missão satisfazer a maioria das necessidades
de saúde (USA. Institute of Medicine, 1996).
A sustentabilidade deste «sub-sistema» de saúde é um dos seus aspectos
primordiais, traduzida na prestação de cuidados eficientes, porque de baixo
custo, resultantes da assunção, pelos generalistas («omnipracticiens» em
Francês e «general practitionners» em Inglês), da função fundamental de
referenciação de doentes com situações clínicas complexas e que cursam com
custos de diagnóstico e tratamento elevados (filtering role) (Bodenheimer e
Grumbach, 2007).
A carência de generalistas tem como consequência a procura, pelo público, de
especialistas para suprir as necessidades de saúde de nível primário
(Bodenheimer e Grumbach, 2007).
Os cuidados diferenciados estão, em termos institucionais, associados aos
hospitais, sendo percepcionados pelo público em geral como «expoentes máximos»
do sector da saúde. A hegemonia dos hospitais sobre o sistema de saúde decorre
da sofisticação tecnológica e da gestão de situações clínicas complexas e do
facto de entre os seus profissionais se encontrar a «élite» médica, com
relacionamentos políticos privilegiados (McKee e Healy, 2000).
Esta última característica explica a resistência às mudanças que afectam os
interesses destas instituições (McKee e Healy, 2000).
Se é um facto que foi a evolução tecnológica e a especialização profissional
associada que deram relevância societal aos hospitais, também é um facto que
essa mesma evolução poderá ditar a sua «sentença de morte» enquanto local
prestador de cuidados associados a tecnologias de saúde.
A telemedicina e a miniaturização de dispositivos tecnológicos, por exemplo,
tornaram possíveis cuidados diagnósticos diferenciados em locais remotos ou a
prestação de cuidados de saúde associados a tecnologia no domicílio. A evolução
tecnológica poderá inviabilizar os hospitais enquanto pólo tecnológico de
saúde, aglutinador de equipamento de elevados custos, e levar à criação de
hospitais virtuais (McKee e Healy, 2000).
Auto-cuidados e auto-gestão
Os auto-cuidados (self-care) consistem nas acções empreendidas pelos indivíduos
tendo por finalidade a manutenção da saúde e a gestão de problemas de saúde
banais e doenças crónicas (UK. National Health Service, 2009).
A auto-gestão (self-management) «diz respeito às tarefas diárias que um
indivíduo executa ou não para prevenir, controlar ou reduzir o impacte de uma
doença crónica» (Bodenheimer e Grumbach, 2007). Daqui se depreende que todos os
indivíduos fazem «auto-gestão»: o que os distingue depende da qualidade das
suas decisões, i.e. se são conducentes, ou não, à melhoria da sua saúde ou a
desfechos clínicos favoráveis (Bodenheimer e Grumbach, 2007).
Assim, podemos falar de auto-gestão «positiva» (ou «apropriada») quando as
atitudes e comportamentos empreendidos são conducentes à saúde (ex. adopção e
manutenção de estilos de vida saudáveis) e de auto-gestão «negativa» (ou
«inapropriada») quando a tomada de decisão implica a adopção de comportamentos
que acarretam risco acrescido de doença ou acidente (riscos auto-impostos).
A auto-gestão apropriada pressupõe um conhecimento adequado da condição ou
doença que se pretende prevenir ou controlar e a auto-motivação necessária à
escolha e adopção de comportamentos salutogénicos (Bodenheimer e Grumbach,
2007).
No âmbito do auto-controlo das doenças crónicas temos, como exemplo, a
monitorização da glicemia capilar e a administração de insulina pelo diabético,
e como exemplo de gestão/tratamento de problemas de saúde banais, que não
requerem, à partida, intervenção profissional, as constipações ou os pequenos
ferimentos e contusões.
Já o apoio à auto-gestão (self-management support) diz respeito às intervenções
educativas e de apoio tendo em vista aumentar as competências e confiança
(self-efficacy) dos doentes relativamente à resolução dos seus problemas de
saúde (USA. Institute of Medicine, 2003).
Desta forma, o apoio à auto-gestão consiste nas acções dos prestadores de saúde
tendo em vista capacitar indivíduos em termos de auto-gestão da sua doença
(Bodenheimer e Grumbach, 2007).
O apoio à auto-gestão implica as seguintes intervenções por parte do
profissional de saúde: auxiliar os doentes a tornarem-se informados sobre a sua
condição (mediante a provisão de informação e o treino de competências) e
promover uma atitude «activada», tornando o indivíduo o actor principal no que
diz respeito à prevenção e gestão apropriada da doença (Bodenheimer e Grumbach,
2007).
A literacia em saúde, definida como o grau de capacidade individual em obter,
processar e interpretar informação básica em saúde e em serviços de saúde
incluindo a navegabilidade no sistema de saúde vem substituir na sociedade
global da informação e conhecimento a tradicional «educação para a saúde»
enquanto estratégia de capacitação em saúde (Almeida, 2008b).
Existe uma relação directa entre literacia em saúde e o nível de saúde. Os
indivíduos com níveis limitados de literacia em saúde, quando comparados com
aqueles com níveis adequados, apresentam um pior nível de saúde, menor consumo
de cuidados preventivos, maiores taxas de hospitalização e maior probabilidade
de um controlo inapropriado da doença crónica (Paasche-Orlow e Parker, 2007).
A capacitação (empowerment)em saúde assume-se como um instrumento estratégico
de promoção da saúde numa sociedade global, encarando o cidadão como o seu
principal recurso (Almeida, Tereso e Pimentel, 2009).
Ao relacionar-se com os dois níveis «extremos» de prevenção em saúde a
prevenção primordial (factores de risco associados a estilos de vida) e a
prevenção quaternária (prevenção da iatrogenia) a capacitação em saúde
contribui para formar cidadãos informados na saúde e na doença (Almeida, 2005).
Modelo CLINECS
Durante muitas décadas, a prática da medicina era norteada pelo prestígio de um
clínico ou de uma instituição: é a chamada medicina baseada na eminência
(«eminence-based medicine)(Watchter, 2008) à qual sucedeu a medicina baseada na
evidência («evidence-based medicine»).
A medicina baseada na evidência ou, traduzindo mais propriamente, a medicina
baseada na prova (Almeida, 2005) consiste na «utilização conscienciosa e
explícita da melhor evidência disponível para a tomada de decisão relativa a
doentes individuais» (Canada. CEBM, 2009).
Note-se que a EBM não é incompatível com a experiência e o julgamento clínicos,
bem pelo contrário; o que mudou foi o paradigma de identificação das melhores
práticas, em resultado da «explosão» de ensaios clínicos nas últimas décadas
(Watchter, 2008).
Assim, a EBM resulta da integração da melhor evidência científica disponível
com a expertise clínica, o conhecimento fisiopatológico e as preferências do
doente tendo em vista a tomada de decisão clínica (Greenberg et al., 2005).
Recentemente, a EBM evoluiu para uma perspectiva integradora com a economia da
saúde naquilo a que se chamou medicina baseada no valor («value-based
medicine),sem quetenha feito a «ligação» entre a EBM e a prática clínica diária
(Portzsolt e Kaplan, 2006).
Portzsolt e Kaplan (2006) propuseram o conceito CLINECS, acrónimo que resulta
da fusão das disciplinas que contribuem para a avaliação de serviços de saúde
úteis (i.e.,valorizados pelo doente ou outros elementos da sociedade): prática
clínica, epidemiologia clínica (validade, eficácia e efectividade da
intervenção), economia da saúde (eficiência, pagamentos e reembolsos),
psicologia, ética e filosofia (valor e justiça).
O valor é entendido como uma alteração percepcionada (pelo consumidor) e
quantificável do estado de saúde (Portzsolt e Kaplan, 2006).
Desta forma, a prática clínica deve transitar da prática baseada na evidência
científica (ou na prova) para a prática baseada não só na evidência científica
(obtida a partir da epidemiologia clínica) mas também na integração de
elementos de avaliação económica, psicológica e ética culminando na valoração
da intervenção do ponto de vista do destinatário da intervenção.
Modelo de cuidados crónicos
O modelo de cuidados crónicos («Chronic care model») de Wagner e cols. (2001) é
um modelo tridimensional de prestação de cuidados de saúde aos doentes
crónicos, assente em três pilares ou dimensões fundamentais a comunidade e
seus recursos, o sistema de saúde (incluindo o seu financiamento e o apoio à
auto-gestão) e a instituição prestadora sendo os seus elementos individuais
interdependentes (Bodenheimer e Grumbach, 2007).
Este modelo tem como finalidade última a interacção satisfatória e de qualidade
entre doentes informados e «activados» e equipas preparadas e proactivas,
visando os melhores desfechos clínicos possíveis (Bodenheimer e Grumbach,
2007).
A criação de equipas pluridisciplinares (responsáveis por cuidados preventivos
e pela prestação de cuidados de rotina), a gestão de cuidados (care management)
e os cuidados planeados (planned care)são algumas das estratégias preconizadas
tendo por finalidade a gestão apropriada da sobrecarga assistencial decorrente
das doenças de evolução prolongada (Bodenheimer e Grumbach, 2007).
No caso da doença cardíaca, da diabetes e da asma, existe evidência obtida por
metanálise quanto à redução de custos associados quando da implementação de
programas de gestão de doenças crónicas, sendo esta redução tanto maior quanto
maior a gravidade da doença (Bodenheimer e Grumbach, 2007). Tal resultou,
fundamentalmente, da redução das taxas de hospitalização destes doentes
(Krause, 2005).
Saúde Pública como sistema
Um sistema é um conjunto de componentes individuais que operam de forma
concertada por forma a atingir os objectivos da totalidade (Churchman, 1968).
Um sistema é uma abstracção (não tem existência real), sendo os sistemas
imaginados pelo Homem para alcançar determinados objectivos (Durán, 1989).
Atendendo à interligação entre os elementos individuais de um sistema, qualquer
alteração sofrida por um componente individual afecta, de algum modo, a
totalidade do sistema; mesmo que tais alterações sejam imperceptíveis, são
detectáveis à luz da lógica que preside à organização do sistema (Durán, 1989).
O sistema de saúde inclui todas as acções que possam contribuir para a melhoria
da saúde e, desta forma, inclui todos os actores, instituições ou recursos que
executam acções em saúde (Murray e Evans, 2003).
A função da Saúde Pública, enquanto sistema social, consiste em assegurar as
condições necessárias à saúde dos indivíduos (USA. Institute of Medicine,
1988). Tendo em consideração os múltiplos determinantes de saúde, os serviços
de saúde e a tecnologia médica apenas podem assegurar a satisfação de
necessidades imediatas e individuais de saúde (USA. Institute of Medicine,
1988).
O sistema de saúde pública é afectado, nas suas múltiplas dimensões (missão,
estrutura, processo e resultados), pelo ambiente exterior i.e., pelo meio
social, económico e político em que se insere tratando-se, desta forma, de um
sistema aberto (Handler, Issel e Turnock, 2001).
O «macro-contexto» é o nível supra-sistémico que tem implicações (directas ou
indirectas) no funcionamento do sistema de saúde pública, incorporando,
designadamente, as «forças» exteriores ao sistema de saúde pública e as
preferências e valores sociais relativamente aos produtos e serviços de saúde
pública disponibilizados (Handler, Issel e Turnock, 2001).
De acordo com Turnock (2004), as principais características da Saúde Pública
são as seguintes:
Baseada na justiça social (distribuição equitativa de benefícios e fardos
colectivos);
Natureza política (serviços de saúde pública dependentes do poder político
enquanto agências e serviços do Estado);
Agenda dinâmica (adequada a problemas emergentes);
Ligação aos governos (decorrente da sua natureza política e da obrigação dos
governos de zelar, de forma activa, pela saúde dos seus cidadãos);
Baseada na Ciência (ciências biomédicas e ciências sociais);
Prevenção como estratégia major (carácter prospectivo);
Natureza pluridisciplinar (ausência de cultura comum mas estratégias
colaborativas).
Em 1993, Van Dyke desenvolveu um modelo piramidal de avaliação do desempenho de
programas de saúde na área materna e infantil («health care pyramid»)que
categorizava os serviços disponibilizados (Issel, 2009).
O modelo de Van Dyke foi adaptado pelo US Public Health Service (1994) sob a
designação de «pirâmide da saúde pública», apresentando quatro níveis (Issel,
2009):
o nível inferior (base), correspondente à infra-estrutura do sistema de saúde
essencial ao seu funcionamento adequado ' incluindo a liderança e supervisão do
sector, planeamento e avaliação, recursos humanos, recursos tecnológicos e de
informação e leis e regulamentação pertinente;
um nível intermédio-inferior, correspondente aos serviços de base
populacional (i.e., disponibilizados à população de uma área de influência
determinada) é o caso dos programas de vacinação e dos programas de rastreio;
um nível intermédio-superior correspondente aos serviços de apoio («enabling
services») às intervenções em saúde (ex. programas na área social que facilitam
o acesso ou adesão a determinado serviço ou intervenção individual);
o nível superior (topo da pirâmide) correspondente aos serviços de saúde
directos, i.e., que têm um efeito directo ou relativamente imediato sobre a
saúde dos indivíduos (ex. cuidados médicos).
O modelo piramidal, além de acentuar a relação hierárquica entre os diversos
níveis descritos, permite evidenciar o seu «impacte» relativo em termos de
população abrangida. Assim, o nível superior da pirâmide (serviços de saúde
directos) é aquele que diz respeito a uma menor proporção de indivíduos da
população (Issel, 2009).
A existência de múltiplos determinantes de saúde, primariamente societais,
torna relevantes políticas de saúde em vez de políticas «sanitárias» (i.e.,
limitadas ao sistema de serviços de saúde), que evoluíram para o conceito de
«saúde em todas as políticas» («Health in All Policies») enunciado em 2006
durante a Presidência Finlandesa da União Europeia.
A saúde em todas as políticas (HiAP) é uma estratégia que consiste no reforço
da ligação entre as políticas de saúde e as políticas dos restantes sectores da
sociedade, tendo por objectivo melhorar a saúde, bem-estar e o desenvolvimento
económico através de intervenções planeadas e executadas fundamentalmente por
esses sectores (Ståhl et al., 2006).
Trata-se, pois, de uma estratégia de gestão integrada dos determinantes
societais de doença, assente no sistema social enquanto construção teórica.
Os componentes do sistema de saúde pública
Avedis Donabedian foi uma das maiores referências mundiais em investigação em
qualidade em saúde e sistemas de saúde. Nascido em 1919 em Beirute e falecido
em 2000, este médico de saúde pública (MD pela Universidade Americana de
Beirute e MPH pela Universidade de Harvard), professor da Escola de Saúde
Pública da Universidade de Michigan, revolucionou o pensamento em sistemas de
saúde (Frenk, 2000).
Em 1966, Donabedian introduziu os conceitos de estrutura, processo e resultado
(outcome), inaugurando o actual paradigma de avaliação da qualidade dos
cuidados de saúde (Frenk, 2000).
De uma forma simplificada, a «tríade de Donabedian» classifica as medidas de
qualidade na forma como os cuidados são organizados («estrutura»), no que foi
feito («processo») e no resultado sobre o doente («outcome») (Watcher, 2008).
O sistema de saúde pública apresenta os seguintes componentes (Handler, Issel e
Turnock, 2001; Turnock, 2004):
Missão: inclui os objectivos (goals) em determinado momento ou período de
tempo e a forma como são operacionalizados a um nível conceptual (i.e.,
mediante um conjunto de funções-chave);
Capacidade estrutural (infra-estruturas): inclui os recursos (humanos,
físicos, materiais, fiscais e de informação), bem como as relações necessárias
a desempenhar as funções e serviços essenciais em saúde pública;
Processo(práticas e outputs): práticas ou processos necessários e suficientes
para assegurar a efectividade das funções e serviços essenciais em saúde
pública (ex. programas de saúde);
Resultados (outcomes): correspondem às alterações no estado de saúde dos
indivíduos, comunidades ou populações, secundárias às intervenções (outputs).
Fornecem informações sobre o desempenho global do sistema (i.e., grau de
atingimento da sua missão, traduzido em termos de efectividade, eficiência e
equidade).
Todos estes componentes são afectados pelo macro-contexto, nível supra-
sistémico que inclui as forças e fenómenos da sociedade que afectam, directa ou
indirectamente, o sistema da saúde pública (Handler, Issel e Turnock, 2001).
A inclusão deste componente supra-sistémico evidencia a natureza dinâmica e
aberta do sistema de saúde pública, traduzido na interacção com um conjunto de
factores externos à sua missão (Handler, Issel e Turnock, 2001).
A literatura anglo-saxónica nem sempre é consistente no que diz respeito à
terminologia adoptada relativamente ao modelo de Donabedian: assim, em vez de
outputs, há autores como Fos e Fine (2005) que utilizam a expressão «outcomes
intermediários» ou de processo (process outcomes), correspondendo os «outcomes
finais» ou de saúde (final health outcomes) aos resultados finais.
O resultado de uma intervenção (outcome) pode ser distinguido em função do seu
âmbito individual (end result) e populacional (impact) (Donabedian, 1974);
outros autores consideram outcome como sinónimo de efeito inicial na saúde e o
impacte (impact) como o efeito a longo prazo (Rossi, Freeman, Lispey, 1999 cit.
por Issel, 2009).
À excepção dos processos, correspondentes às práticas ou serviços essenciais em
saúde pública, todas as outras dimensões do sistema de saúde (incluindo os
outputs) são relativamente fáceis de identificar e compreender (Turnock, 2004).
Trata-se de um aspecto crítico se atentarmos a que o processo
(throughput)corresponde à forma (ou «mecanismo») como os recursos (inputs) são
transformados em serviços («outputs»).
Face aos componentes do modelo acima descrito, temos como pressuposto
fundamental a definição prévia das funções básicas da Saúde Pública, bem como
dos serviços considerados essenciais. As funções essenciais dos serviços de
saúde pública nos Estados Unidos são as seguintes (Turnock, 2004):
Diagnóstico da situação(assessment);
Desenvolvimento de políticas e programas de saúde (policy development)
«tomada de decisão»;
Execução ou implementação (assurance) i.e., intervenção sobre os
determinantes negativos de saúde («instituição da terapêutica»).
Dentre os dez serviços essenciais em saúde pública naquele país, de acordo com
o US Public Health Service (1994), destacam-se a monitorização do estado de
saúde da população (identificação de problemas de saúde), a investigação de
problemas e ameaças à saúde das comunidades, a informação, educação e
capacitação em saúde, o desenvolvimento de políticas e planos de apoio aos
esforços da comunidade, a avaliação da efectividade, acessibilidade e qualidade
dos serviços de saúde e fazer cumprir as leis e regulamentos de protecção e
salvaguarda da saúde (Turnock, 2004).
Cabe, ainda, aos serviços de saúde pública, promover o contacto (quando
apropriado) com os serviços de saúde e assegurar a prestação de cuidados de
saúde quando não estão, de outra forma, disponíveis (Turnock, 2004).
Sistema de saúde pública em Portugal continental
A reorganização da administração central do Estado levou à extinção, em Junho
de 2007, dos centros regionais de saúde pública, tendo as suas atribuições
transitado para os recém-criados departamentos de saúde pública das
administrações regionais de saúde (artigo 15.o do Decreto-Lei n.o 222/2007, de
29 de Maio).
Aqueles serviços regionais de saúde pública, criados em 1999, tinham como
missão assegurar a vigilância epidemiológica, a monitorização da saúde da
população e a promoção da saúde através de programas específicos de intervenção
(número 1 do artigo 2.o do Decreto-Lei nº 289/99, de 29 de Setembro). As suas
atribuições incluíam a avaliação do impacte das intervenções em saúde e o apoio
técnico e funcional aos serviços locais de saúde pública (artigo 7.o do
Decreto-Lei n.o 289/99, de 29 de Setembro).
Não obstante o legalmente previsto no número 1 do artigo 6.o do Decreto-Lei n.o
289/99, de 29 de Setembro («autonomia técnica e administrativa e dotações
próprias, orçamental e de pessoal»), os centros regionais de saúde pública
(CRSP) dependiam, em termos orçamental e de pessoal, das respectivas
administrações regionais de saúde (ARS), pelo que a sua integração nas ARS não
se traduziu em perdas funcionais naqueles sectores gestionários
Em 2008 é publicado o diploma que cria os agrupamentos de centros de saúde
(ACES), e consequentemente, um nível intermédio de serviços de saúde pública
inexistente até então correspondente às unidades de saúde pública (USP).
Estas unidades funcionais, de nível supra-local, «agregam» os profissionais de
saúde pública dos centros de saúde integrantes do respectivo ACES, tendo a
missão de «observatório» de saúde da área geodemográfica correspondente (artigo
12.o do Decreto-Lei n.o 28/2008, de 22 de Fevereiro).
Além deste modelo gestionário de âmbito populacional (clusters de centros de
saúde), existe um modelo gestionário que inclui, não só unidades de cuidados
primários de saúde, mas também unidades hospitalares de uma determinada área de
influência: são as unidades locais de saúde (ULS) pessoas colectivas de direito
público de natureza empresarial (artigo 4.o do Decreto-Lei n.o 183/2008, de 4
de Setembro).
Este modelo gestionário teve a sua «experiência-piloto» na ULS de Matosinhos,
criada ao abrigo do Decreto-lei n.o 207/99, de 9 de Junho (Decreto-Lei n.o 183/
2008).
Aguarda-se (Fevereiro de 2009) a publicação de um pacote legislativo relativo à
organização dos serviços de saúde pública e Autoridades de Saúde, bem como a
regulamentação das USP1.
Discussão e conclusões
As doenças crónicas e a incapacidade associada são um dos maiores problemas da
saúde pública mundial e resultam não só do envelhecimento da população mas
também da globalização de factores de risco relacionados com estilos de vida.
A valorização da qualidade de vida em detrimento da quantidade de vida, a
redução de custos associada (uma vez que boa parte, ou mesmo a totalidade, são
suportados pelas famílias) e a existência de tecnologia que possibilita a
prestação de cuidados domiciliados de qualidade deram significância aos
cuidados domiciliados (home-based care) no contexto dos sistemas de saúde e,
consequentemente, aos doentes e suas famílias enquanto «clientes» e não meros
«utentes».
Atendendo a que as doenças crónicas ou de evolução prolongada estão associadas
a riscos auto-impostos (self-created risks) e que o controlo destas doenças
assenta na adesão à terapêutica e na sua auto-gestão apropriada, o cidadão
capacitado na saúde e na doença revela-se como um recurso inestimável para o
sistema de saúde.
Um novo paradigma de cuidados de saúde, redireccionados para a gestão das
doenças de evolução prolongada e para os cuidados domiciliados, terá que
valorar o doente e a comunidade em que este se encontra inserido como recurso
do sistema de saúde: só assim se poderá assegurar a sua sustentabilidade.
A capacitação em saúde assume-se, pois, como uma estratégia da maior
pertinência visando dotar o sistema de saúde de parceiros activos na gestão da
saúde (promoção da saúde) e da doença (auto-cuidados). O modelo de cuidados
crónicos preconiza a integração da comunidade e seus recursos no planeamento e
gestão das doenças crónicas.
Os hospitais do futuro presentemente «hegemónicos» financeira e
estruturalmente no sector da saúde necessitarão de menos camas mas de mais
blocos operatórios e áreas afins (cirurgia de ambulatório), bem como de mais
espaços destinados à prestação de cuidados integrados para doenças frequentes
(Waghorn, McKee, Thompson, 1997).
A sua hegemonia enquanto local de concentração de tecnologia médica encontra-se
ameaçada pela evolução tecnológica (miniaturização) que permite deslocar, para
outros locais como os domicílios, equipamento sofisticado outrora só disponível
nos hospitais.
Por outro lado, os hospitais não estão vocacionados para a prestação de
cuidados de longa duração, mas antes para a gestão de situações agudas
(incluindo as decorrentes da agudização de doenças crónicas), requerendo uma
abordagem intensiva mas, necessariamente, limitada a períodos de tempo
relativamente curtos.
A fraca visibilidade social da Saúde Pública não obstante os ganhos em saúde
observados no último século estarem largamente associados a intervenções do seu
âmbito resulta duma estratégia de intervenção essencialmente preventiva
(traduzida em «não-acontecimentos» de difícil nexo de causalidade) e do facto
de não fazer uso do arsenal tecnológico de outras especialidades (Almeida,
2008a).
A Saúde Pública enquanto sistema social está relacionada com a saúde do público
(resultado), na medida em que os resultados decorrem dos esforços concertados
da sociedade. Cabe ao sistema de saúde pública liderar o sector da saúde a um
nível estratégico (identificação de problemas e selecção de prioridades em
saúde) e participar na sua regulação, assegurando a liderança intelectual
indispensável à efectividade do processo regulatório (disponibilização de
evidência em saúde pública).
Tendo em vista a compreensão pelo público em geral e, mesmo, pelos seus
praticantes (profissionais) da missão e funcionamento da Saúde Pública,
considera-se relevante a adopção do modelo conceptual sistémico baseado na
tríade de Donabedian conforme preconizado por Turnock.
Ao assumir-se como uma estratégia de clarificação da missão e funcionamento da
Saúde Pública, integrando as suas diversas imagens societais, o modelo
conceptual sistémico de saúde pública visa facilitar a compreensão, pelos seus
profissionais e pelo público em geral, de qual a missão dos serviços de saúde
pública permitindo, igualmente, a avaliação do seu desempenho.
O peso crescente dos cuidados médicos e institucionais de saúde como
determinantes de saúde nas sociedades em que se encontram satisfeitas as
necessidades básicas em saúde pública como a alimentação adequada, o
saneamento e a higiene pessoal implica um redireccionamento dos serviços e
intervenções em saúde pública para o sistema de serviços de saúde, tendo em
vista assegurar a sua eficiência e efectividade global e específica (equidade).
O papel de «triagem» (filtering role) dos médicos dos cuidados de saúde
primários, longe de ser menorizável, é da maior relevância para a
sustentabilidade do sistema de saúde, ao assegurar a prestação de cuidados de
baixo custo à generalidade dos doentes (cost shifting)e a referenciação das
situações clínicas complexas que cursam com custos elevados para os
cuidados diferenciados.
Atendendo a que os cuidados diferenciados são parte integrante e relevante do
sistema de saúde, a efectividade dos serviços de saúde pública implica um
posicionamento de topo, porque abrangente da totalidade do sistema de saúde.
Os médicos especialistas em saúde pública terão, assim, de reforçar as suas
competências em epidemiologia do planeamento/epidemiologia dos serviços de
saúde por forma a assumirem de forma efectiva a função de «médicos do sistema
de saúde».
Tal não significa, no entanto, que sejam secundarizadas as competências
tradicionais relativas, designadamente, à vigilância em saúde pública das
doenças transmissíveis e à gestão das ameaças directas à saúde das populações.
Areforma em curso dos cuidados de saúde primários, ao criar unidades de saúde
pública a um nível de agrupamento, «reposicionou» estes serviços para um nível
geodemográfico superior sem que, no entanto e no caso dos ACES, os deixe de
enquadrar no nível primário de cuidados de saúde.
Este enquadramento sistémico não potencia a capacidade de intervenção dos
serviços de saúde pública ao nível do sistema de saúde e, muito em particular,
no que diz respeito ao sector hospitalar tradicionalmente refractário a
«intromissões» do exterior ao que acresce, nestes casos, o facto de serem
oriundas de um nível de cuidados organizacionalmente inferior.
Tendo em consideração o exposto e a relevância do sector hospitalar no sistema
de saúde, deverão os serviços de saúde pública ultrapassar as fronteiras do
nível primário de cuidados de saúde onde se encontram «acantonados» desde há
várias gerações e estabelecer uma articulação funcional efectiva com o sector
hospitalar.
O desenho de um modelo conceptual sistémico da Saúde Pública nacional baseado
na tríade de Donabedian está dependente da publicação, iminente à data de
Fevereiro de 2009, de regulamentação relativa aos serviços de saúde pública e
autoridades de saúde e consequente explicitação da missão e funções primordiais
dos serviços de saúde pública.