A Manobra de Carnett
INTRODUÇÃO
Os síndromos dolorosos abdominopélvicos crónicos
têm causas e apresentações clínicas muito variadas
explicando a longa e interminável lista de exames
auxiliares e complementares de diagnóstico a que em
regra cada um destes pacientes é submetido. A tendência
para considerar as vísceras abdominais como ponto de
partida de toda a dor abdominal crónica, particularmente
quando em ausência de tumorações perceptíveis relega
para plano secundário, com tendência ao olvido, as
causas parietais. A minorização de algumas manobras
exploratórias semiológicas em favor da plétora de exames
subsidiários hoje disponível ajuda a complicar o conjunto
e a atrasar o diagnóstico. Este facto faz com que se
submetam doentes a exames não apenas dispendiosos,
como incómodos e perfeitamente desnecessários e inúteis
(1).
O propósito deste trabalho é chamar a atenção para
a simplicidade e utilidade da manobra de Carnett na
identificação de dores com origem na parede abdominal,
onde se incluem as nevralgias dos perfurantes abdominais
anteriores, problema frequentíssimo nas consultas de
ginecologia mas que em regra passa desapercebido por
não identificado.
DESCRIÇÃO
A manobra de Carnett foi descrita em 1926 com a
finalidade de diferençar as dores parietais das viscerais
abdominais (2). Tal como proposta originalmente, du-
rante o exame do doente, em posição supina, é identificado, com a maior precisão possível, o ponto de maior
intensidade dolorosa abdominal. Depois e, enquanto se
mantém a pressão, solicita-se ao paciente que cruze os
braços sobre o peito e se mobilize para se sentar, sendo
interrompido o movimento que realiza quando a meio do
respectivo trajecto. A manobra é considerada positiva se
a dor persistir ou, mais caracteristicamente, aumentar de
intensidade.
Na prática, atendendo ao esforço a que obriga a
descrição inicial, recorre-se a uma pequena modificação
que consiste em solicitar ao paciente apenas a elevação
da cabeça (1,3), sem apoio dos membros, com a vantagem
de não distorcer a anatomia abdominal ao sentar-se (3).
Segundo Freeman (4) o simples pinçamento da pele
e do tecido celular subcutâneo dará os mesmos resultados
sem os seus inconvenientes.
CASO CLÍNICO
Doente de sexo feminino, na quarta década da vida,
que consulta por dor intermitente em picada na região
baixa do abdómen, sempre localizada à mesma área. É
portadora de um conjunto de exames realizados, todos
normais, mas numa ecografia pélvica foi identificada uma
formação cística ovárica, a qual se supõe poder ser a
causa da dor.
O exame ginecológico não põe em evidência nenhuma
alteração significativa, mesmo ao toque, verificando-se
durante a realização de ultrassonografia que a
compressão ovárica com a sonda transvaginal provoca
desconforto, sensação que é porém totalmente distinta
da “picada” que a doente sente espontaneamente e que
motivou a realização do exame.
A exploração abdominal permite identificar um ponto
de dor à compressão, na linha semilunar, 3 dedos de
través acima do púbis, cuja intensidade aumenta significativamente com a manobra de Carnett modificada e regride
quase totalmente com a infiltração com 15 cm3 de lidocaína
a 1%.
DISCUSSÃO
O caso descrito é exemplo paradigmático, o qual, com
as previsíveis variações topográficas e de intensidade,
se encontra com extrema frequência nas consultas de
ginecologia, embora apenas ocasionalmente como
sintoma predominante.
A chamada “dor abdominal inespecífica” define-se
com base numa duração mínima de 7 dias e por se lhe
não descobrir justificação orgânica, sendo o quadro doloroso abdominal mais frequente em cirurgia (5). Dentro
deste grupo se insere a dor de origem parietal, definida
como dor fixa ou localizada e superficial ou limitada a
ponto ou área de diâmetro inferior a 25 mm ou um sinal
de Carnett positivo (6), que representa entre 15 e 20%
das situações de dor que recorrem a serviços especializados ou de urgência (7), e que não é diagnosticada com a
devida frequência por não ser procurada. Representa,
aliás, uma causa importante de consumo de meios
complementares, já que a sucessiva negatividade de uns
origina o recurso a outros de forma sequencial mas
quase interminável.
As causas parietais comuns que justificam uma
manobra positiva são a lesão muscular, a miosite ou a
compressão nervosa, sendo esta sem dúvida a predominante. Idênticos problemas podem justificar a existência
de dor pélvica crónica (8).
Os nervos perfurantes abdominais anteriores são
ramos parietais que correm perpendicularmente aos planos musculares da profundidade para a superfície. O seu
trajecto originalmente rectilíneo ou em baioneta (9), pode
modificar-se pela retracção musculo-aponevrótica que
em menor ou maior grau ocorre após laparotomia. O uso
de vestuário demasiado apertado pode funcionar como
factor desencadeador (9). Os ramos mais frequentemente
afectados pela compressão extrínseca são os que se
localizam lateralmente aos músculos rectos a diversos
níveis, sobretudo nas fossas ilíacas e hipocôndrio direito
(1), e que motivam o que as consulentes frequentemente
referem como “picadas nos ovários”, sobretudo em
resposta ao movimento ou ao esforço.
Nas nevralgias crónicas por compressão, sobretudo
nas pós-cirúrgicas, como após herniorrafia inguinal, a
dor, ao contrário da pós-operatória, manifesta-se não de
forma isolada mas em associação a parestesia, hipostesia
e disestesia, podendo ter intensidade variável e ser
mesmo perturbadora (10).
Aplicada às nevralgias dos perfurantes, a manobra de
Carnett baseia-se na identificação dos pontos álgicos de
maior intensidade que correspondem em princípio ao
ponto de emersão dos nervos afectados, semiologicamente também chamado sinal de Tinel. É quase cerca
de 4 vezes mais frequente na mulher do que no homem,
e surge em particular nas que foram submetidas a
laparotomia (1,6).
Deve salientar-se que o facto da manobra de Carnett
evidenciar comprometimento da parede não exclui
naturalmente as situações em que haja envolvimento do
peritoneu parietal, o que não pode ser verdadeiramente
considerado como resultado positivo falso (1).
A procura duma causa parietal deve ser cuidada
particularmente quando os sintomas e os sinais não se
enquadram num conjunto sugestivo de patologia
intraabdominal (11). A técnica de localização do “ponto
doloroso” com a “ponta dum dedo” é importante para sugerir uma causa parietal tanto mais que a maioria
corresponderia aos locais de emergência dos ramos
cutâneos anteriores dos nervos intercostais através da
bainha dos rectos em situação medial em relação à linha
semilunar (11). Segundo Hall e Lee (11) quando sob tensão pode mesmo sentir-se uma pequena depressão na
bainha dos rectos a qual na sua opinião corresponderá
ao orifício de emergência nervosa, mas que parece ser
dificilmente perceptível.
Nos casos em que as manobras dão resultados
duvidosos deve pesquizar-se sistematicamente a
celulalgia abdominal, através da palpação suave mas
firme da prega cutâneoadiposa suprapúbica, e que pode
pôr à evidência um problema psicossomático (8).
TRATAMENTO
A verdade é que a simples compreensão do problema
pelo doente é suficiente como terapêutica em muitos dos
casos (3), fenómeno suportado pelo facto de, segundo
alguns autores, o quadro resultar fundamentalmente
duma somatização de desequilíbrios psicológicos (8), o
que reforça o interesse de se realizar um correcto
diagnóstico. As aplicações quentes locais poderão ainda
facilitar a descompressão neuronal pelo relaxamento
muscular que induzem.
A terapêutica consiste preferencialmente na infiltração
do “ponto doloroso” através duma agulha 21 “gauge” com
uma mistura de 1 ml lidocaína e corticóide de acção
prolongada. Serão de esperar respostas favoráveis em
mais de 75% dos casos (1,6,12). Deve salientar-se que
os pontos de atingimento nervoso se localizam num
plano profundo em relação à bainha anterior dos rectos,
o que é importante para que a infiltração de anestésico se
realize adequadamente, sobretudo nos obesos (11).
Quando se pratica a infiltração anestésica do ponto
doloroso devem realizar-se revisões cada 4 semanas
com repetição do tratamento se necessário (1).
Nos casos de dor persistente relacionada com uma
cicatriz cirúrgica deve realizar-se a sua remoção (1). A
neurotomia é o tratamento mais agressivo e por isso em
regra considerado de última linha, excepto nas nevralgias
secundárias às herniorrafias inguinais em que parece
consituir a modalidade de eleição.
CONCLUSÃO
Em toda a paciente com dor persistente intermitente
referida a um ponto ou área fixa da parede abdominal
deve pôr-se a hipótese de a sua causa poder ser devida
a dor neuropática. A realização da manobra de Carnett
permite a identificação do problema que é facilmente
confirmado pela repetição da prova após infiltração com
anestésico local. Esta constitui-se frequentemente mesmo
em solução terapêutica.