Citomegalovírus: transmissão vertical e doença realidade de uma unidade
Introdução
A infecção Citomegalovírus (CMV) é uma das causas mais comuns de infecção
vírica congénita nos países desenvolvidos, sendo a principal causa infecciosa
de surdez neurossensorial na criança (1,2). Esta infecção ocorre em 1 a 4% das
grávidas (3). O risco de transmissão é particularmente elevado no caso de
primoinfecção, com uma taxa de transmissão fetal de cerca de 40% (2,4,5). A
incidência de infecção intra-uterina varia entre 0,2 a 2,4% (3), sendo a
maioria dos recém-nascidos (RN) assintomáticos (6). As manifestações clínicas
estão presentes em apenas 10% dos casos (6,7), contudo 10 a 15% das crianças
assintomáticas ao nascimento podem vir a desenvolver mais tarde manifestações
clínicas nomeadamente surdez neurossensorial, défices neurológicos, corio-
retinite, atraso do desenvolvimento psicomotor entre outras (2,5-9). O rastreio
materno pré-natal não é feito de rotina no nosso país, persistindo a dúvida da
necessidade da sua implementação (5,7,10).
No entanto, sabemos que existem hoje em dia novas terapêuticas nomeadamente o
ganciclovir e o valganciclovir que poderão limitar as sequelas a longo prazo e
que está em desenvolvimento uma vacina imunogénica (2,6,10-13).
Objectivos
Os objectivos deste estudo foram detectar a taxa de transmissão materno-fetal e
avaliar as eventuais repercussões da infecção congénita por Citomegalovírus até
àidade escolar nas crianças do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia e
Espinho.
Material e métodos
Baseamo-nos na análise retrospectiva dos processos de todos os recém-nascidos
com suspeita de infecção congénitapor CMV, que nasceram no nosso hospital no
período de 1 de Janeiro de 2001 a 31 de Dezembro de 2006.
Dado que o rastreio materno pré-natal de infecção por citomegalovírus não é
feito por rotina no nosso país, consideramos como nossa amostra os recém-
nascidos com suspeita desta infecção, ou seja, aqueles em que ocorreu
seroconversão materna durante a gestação ou, nos casos em que, após o
nascimento, o recém-nascido apresentou algum tipo de manifestação clínica ou
ecográfica sugestivadesta infecção congénita.
O estudo do estado de imunização materno baseou-se no doseamento das IgG e IgM
maternas, com determinação da avidez da IgG em todos os casos de IgM positiva
(3,5,10,14). Tal com o descrito na literatura, consideramos avidez elevada como
indicativo de infecção antiga, ou seja ocorrida há mais de 20 semanas, e avidez
baixa indicativo de infecção recente, ou seja ocorrida nas últimas 20 semanas
(3,6,14), podendo deste modo obter uma orientação relativa ao momento de
ocorrência da seroconversão (1º, 2º ou 3º trimestre). Em todos os casos foi
registado o motivo do pedido de pesquisa de CMV na urina do recém-nascido.
Todos os RN foram submetidos a avaliação clínica ao nascimento e o diagnóstico
foi feito, de forma sistemática, por cultura do CMV pelo método de Shell-Vial
ou detecção de DNA de CMV por Polimerase Chain Reaction (PCR), em amostra de
urina colhida até às 3 semanas de vida (2,6,7,10,15,16).
Na amostra populacional obtida foi avaliado a idade materna no momento do
parto, idade gestacional, somatometria do RN ao nascimento e sua relação com os
percentis para idade e sexo.
Nos casos de infecção por Citomegalovírus confirmada foram ainda analisadas as
manifestações clínicas apresentadas ao nascimento ou sequelas tardias que foram
surgindo durante o período de follow-up.
Considerou-se como clínica todas as manifestações compatíveis com infecção por
CMV (7).
Todos os RN com infecção foram submetidos a avaliação da sua repercussão sobre
os órgãos e sistemas com realização de hemograma, provas de função hepática e
estudos imagiológicos, nomeadamente ecografia abdominal, ecografia
transfontanelar e tomografia computorizada ou ressonância magnética crânio-
encefálica (6).
Foi também realizado rastreio oftalmológico e auditivo no intuito de detectar
atempadamente défices nestas áreas, tal como preconizado por outros autores
(6,7,17). O rastreio oftalmológico foi realizado através da observação do fundo
ocular periodicamente de 2 em 2 anos, considerando o diagnóstico de corio-
retinite quando estavam presentes alterações do fundo ocular sugestivas,
definidas por um oftalmologista com experiência. Em todos os casos foi também
realizado rastreio auditivo periódico nomeadamente com execução de potenciais
evocados auditivos inicialmente de 6 em 6 meses até aos 2 anos e depois
anualmente.
Em todos os casos seguidos no nosso hospital procedeuse à regularmente à
avaliação do crescimento e desenvolvimento psicomotor com o intuito de detectar
alterações precocemente.
Resultados
No período em análise nasceram, no nosso hospital, um total de 13.646 crianças.
Destas foram revistos 60 processos, correspondentes aos recém-nascidos que
foram submetidos a rastreio através da pesquisa de CMV na urina. Dos 60 casos,
o motivo de pesquisa de CMV foi a seroconversão materna durante a gestação em
53 casos, o que corresponde a 88% da nossa amostra. Os restantes 7 casos dizem
respeito a recém-nascidos que apresentaram, ao nascimento, clínica sugestiva
desta infecção.
No que se refere ao meio de diagnóstico, utilizou-se o método de Shell-Vialem
51 casos (85%), sendo que o resultado foi positivo em 12 (23,5%) e negativo em
39 casos (76,5%). Nos últimos 9 casos com suspeita de infecção o diagnóstico
foi feito pela pesquisa de CMV na urina por PCR, sendo que destes 2 casos (22%)
foram positivos e 7negativos (78%).
No total dos 60 casos incluídos no estudo tivemos, portanto, infecção congénita
por CMV confirmada em 14 casos (Tabela_1
) o que representa uma taxa de transmissão na nossa amostra de 23%.
Passando à análise dos casos com infecção confirmada, verificamos que a idade
materna variou entre os 16 e os 39 anos, sendo que 43% dos RN são filhos de
mães jovens, com idade igual ou inferior a 21 anos.
Dos 14 casos de RN com infecção congénita por CMV,a sua pesquisa foi motivada
pela clínica apresentada pelo RN em 3 casos (21%) e pela seroconversão materna
em 11 casos (79%). Destes, verificamos que a maioria (6 casos) ocorreu no 3º
trimestre (43%), ocorrendo apenas 3 casos no 2º trimestre e 2 no 1ºtrimestre.
Tendo em conta a idade gestacional tivemos 2 recémnascidos prematuros, com 32 e
34 semanas, sendo os restantes 12 recém-nascidos de termo (86%). Assim, na
nossa amostra, ao nascimento 64% RN eram assintomáticos. Os achados clínicos
encontrados incluíram doença de inclusão citomegálica (14%), restrição de
crescimento intra-uterino (14%), baixo peso (21%) e microcefalia (21%) (Tabela
1
).
Na nossa amostra todos os casos diagnosticados por seroconversão materna (79%)
trataram-se de primo-infecções por citomegalovírus. Em 21% dos casos
desconhecemos se se tratava de uma primo-infecção ou de uma reactivação de
infecção latente, assim como desconhecemos o momento de ocorrência da
seroconversão materna, dado que a suspeita de diagnóstico se colocou no período
pós-parto pela presença de manifestações clínicas, não dispondo das serologias
maternas.
Todas as crianças excepto uma, cuja vigilância foi realizada no hospital da
área de residência, foram, após a alta, orientadas para a consulta de
infecciologia do nosso hospital mantendo-se em vigilância.
Das 13 crianças com infecção congénita por CMV, 11 apresentam até à data,
crescimento e desenvolvimento adequados, mantendo em vigilância regular na
consulta.
Os restantes 2 casos (14%) apresentaram sequelas nomeadamente atraso do
desenvolvimento psicomotor, uma dos quais com surdez neurossensorial. Do ponto
de vista oftalmológico, até à data, todas as crianças apresentam exame sem
alterações.
A Tabela_2
analisa mais pormenorizadamente os dois casos que apresentaram doença de
inclusão citomegálica, não só no âmbito de diagnóstico clínico, serológico e
imagiológico, como também em termos de evolução.
Discussão
Na nossa amostra, a prevalência de infecção congénita por CMV foi de 23,3%.
Esta frequência tão elevada deve-se ao facto de tratar-se de uma população em
que a grande maioria das mulheres são seropositivas para CMV ou em que a
clínica do RN foi extremamente sugestiva desta infecção.
Tal como descrito na literatura verificamos uma alta incidência de infecção em
RN filhos de mães jovens (1,2).
No que se refere às manifestações clínicas, ao nascimento e tardias, são
variáveis em função do estado imunitário materno e do momento de ocorrência da
transmissão, sendo potencialmente mais graves no 1º trimestre. Na nossa
casuística 11 dos 14 RN apresentaram crescimento e desenvolvimento adequado
para a idade, sendo que, os 2 casos que apresentaram sequelas foram os que
tiveram doença de Inclusão Citomegálica, o que nos faz questionar a real
necessidade do rastreio seriado. Contudo, serão necessários outros estudos com
casuísticas mais alargadas para se poder inferir da efectividade da
implementação de um rastreio universal.
Dado o tamanho reduzido da amostra não se pode inferir conclusões, no entanto,
o conhecimento da realidade de cada centro poderia contribuir para avaliar a
pertinência do diagnóstico perinatal.