Falando Sobre Saúde
COMENTÁRIO
Falando Sobre Saúde
Manuel Cardoso de Oliveira1
1 Escola de Estudos Pós-Graduados e de Investigação, Universidade Fernando
Pessoa, Porto
Correspondência
Nos últimos anos tem havido uma pressão de crescente intensidade para que as
instituições de Saúde melhorem a qualidade dos seus desempenhos. Trata-se de
uma questão de grande complexidade com uma componente multidisciplinar
acentuada que, por isso mesmo, exige pessoas especialmente preparadas e com
formação cultural e profissional adequadas. Satisfazer estas exigências num
ambiente sem as estruturas indispensáveis, onde ainda predominam comportamentos
pouco propícios para a mudança, é uma tarefa organizacional de grande
susceptibilidade e de resultados visíveis morosos. Felizmente que nos vamos
distanciando da aplicação pura e dura das regras de outros mercados no mercado
especial da Saúde.
Torna-se indispensável identificar as áreas em que a inovação é necessária e
encontrar novas ideias e soluções para os problemas. As instituições que
cumprirem este programa irão prosperar, as outras correm sérios riscos de
definhar. A inovação, alguém disse, é uma prática de gestão, uma disciplina com
ferramentas e processos específicos. Para que mais atempada e eficazmente todos
os responsáveis fiquem mais capazes para esses desempenhos é fundamental que se
cultivem e aprendam com quem os possa ajudar. O amadorismo com que se
seleccionam líderes para os mais diversos níveis das organizações de Saúde tem
tido efeitos nefastos cujas consequências se vão fazer sentir por muitos anos.
Sem ignorar o passado, temos de nos virar para o futuro e optar por novos tipos
de pensamento. Os desempenhos, no que à Qualidade Clínica diz respeito, são um
imperativo estratégico muito semelhante ao da Segurança, que com a Qualidade
tem uma relação muito directa. São tarefas de grande exigência que não mais
pode ser delegada na gente da qualidade, sem qualquer ofensa, como é óbvio,
para esse sector que, sem estar altamente colocado nas hierarquias das
instituições, desempenha trabalho de muito mérito.
Os países anglo-saxónicos, uma vez mais, tomaram a dianteira nestas
iniciativas, mas em todo o mundo se começa a pensar mais intensamente nesta
problemática. É que proporcionar às populações melhores cuidados de Saúde,
gastando menos, é um enorme desafio que só quem estiver muito familiarizado com
estas temáticas pode enfrentar. A verdade é que alguns países estão já a
desenvolver programas para populações seleccionadas em que estes objectivos
estão a ser cumpridos, esperando-se que essas experiências possam ser
multiplicadas, servindo de exemplo. Mesmo reconhecendo a dificuldade de
transpor conhecimentos adquiridos em determinados contextos para outros com
variáveis diferentes, a verdade é que há ensinamentos muito úteis que devem ser
adaptáveis a diferentes realidades.
O IOM, ao debruçar-se sobre a causalidade dos erros, dizia que o problema era
essencialmente com os sistemas e não com as pessoas, pelo que seria necessário
redefinir aqueles. Trata-se de uma tarefa ciclópica que também exige que as
pessoas façam profundas mudanças, especialmente nos comportamentos, pois elas
são um componente dos sistemas e talvez até o componente mais importante.
O facto de se verificar nos sistemas de Saúde autoritarismose hierarquias
excessivas condiciona bloqueios que dificultam as melhores soluções. Daí que
voltemos à questão da necessidade de lideranças esclarecidas, desde a
frontlineaté ao topo, o que infelizmente nem sempre acontece. Espartilhados
pela pulverização do poder, e obrigados a satisfazer clientelas, é confrangedor
o comportamento de muitos responsáveis, o que só tarda as melhores soluções.
Como já salientámos, nas organizações de Saúde embricam-se profundamente
diversas áreas do saber, o que nos leva à necessidade de criar grupos
multidisciplinares que facilitem a concretização dos objectivos delineados. Mas
para que assim seja é indispensável criar infra-estruturas que suportem as
acções a desenvolver. Muitos dos profissionais da Saúde sabem que os simples
processos de intenção falham por não terem sido criados espaços e novas
estratégias organizacionais a tempo para que a sustentabilidade das iniciativas
esteja garantida. É ainda necessário preparar pessoas para o desempenho
correcto das suas atribuições, criando programas de ensino e treino que
sensibilizem e tornem competentes os profissionais selecionados para o
desempenho dessas tarefas. Eles, pela natureza das funções que exercem, devem
estar muito próximos dos topos da hierarquia das instituições, à semelhança da
colocação do Departamento de Qualidade Clínica junto ao Conselho de
Administração dos Hospitais.
É importante operacionalizar as estratégias de mudança organizacional, para não
dar razão a um alto responsável do NHS quando disse que nestes últimos anos as
numerosas estratégias desenvolvidas só tiveram um coisa em comum: é que não
tiveram consequências práticas de relevo. É sabido que os médicos, que têm
visto o seu estatuto de autoridade e poder seriamente ameaçados, deveriam ser
aqueles que mais lucidamente se deveriam comprometer, pois essa é a orientação
que lhes poderá devolver o prestígio perdido.
Vem a propósito lembrar que mesmo com recursos significativos e lideranças
determinadas demora muito tempo a criar o processo de mudança e que, depois
desta, as suas consequências práticas são também demoradas. Tal facto só deve
ter uma consequência inteligente: mais do que desmoralizar as hostes, antes as
devem estimular para que se faça bem e em tempo oportuno o que deve ser feito.
Como dissemos, em íntima ligação com a Qualidade está a Segurança. A Segurança
em Unidades de Saúde merece também tratamento individualizado. Construir uma
cultura de Segurança é um enorme desafio e, como tal, exige também que se criem
estruturas e capacidades organizativas adequadas, para o que é necessária uma
grande determinação. Espera-se assim contribuir para que os Hospitais e outras
Unidades de Saúde sejam lugares mais seguros e menos frustrantes, lugares onde
se possa trabalhar com mais gosto e eficiência e ainda que os recursos humanos
e materiais neles investidos possam ser um investimento com retorno.
Não se pode falar de Saúde sem referir a crise de confiança que está instalada
em muitas áreas dos respectivos Sistemas. Também este tema merece tratamento
diferenciado tal a sua importância estratégica. Necessitamos de melhoras a
nível dos cuidados, pois a falta de confiança gera consequências preocupantes '
discriminação da Qualidade dos desempenhos, aumentos dos custos e dos conflitos
e ineficiências organizacionais.
Nestes diversos cenários ' Qualidade Clínica, Segurança, Confiança, está bem
patente a sua interdependência e o valor da accountability, governancee
empowerment.Há que reconhecer o valor de medir tudo o que for mensurável '
estruturas, processos e outcomes. Mas há também que atender à qualidade de vida
dos nossos doentes, conceito que por vezes é esquecido. Estas diferentes
perspectivas acarretam uma outra exigência: a de dispormos de profissionais
competentes. Dada a importância deste tópico, aconselhamos a seguir a
orientação do Accreditation Council for Graduate Medical Education(ACGME)
quanto aos tipos de competência que estão mais em causa e o modo de os medir,
orientação que tem sido seguida por alguns pioneiros nesta área.
A adulteração das lideranças é uma das mais poderosas barreiras à obtenção de
bons resultados, como temos vindo a denunciar. Para além das considerações
anteriores, é ainda oportuno lembrarmos uma outra ferramenta tantas vezes
referida e tão poucas vezes contemplada ' a investigação.
Possuir conhecimentos científicos e organizacionais é uma realidade nem sempre
atingida e em fluxo contínuo. É necessário criar novos conhecimentos, mediante
uma investigação deliberada e estruturada de modo a reformular a prática médica
de acordo com o seu ritmo vertiginoso de mudança. Com a criação de conhecimento
e do seu ciclo até a acção, mover-nos-emos da evidência para a prática de um
modo mais expedito.
Correspondência
Manuel Cardoso de Oliveira
Escola de Estudos Pós-Graduados e de Investigação Universidade Fernando Pessoa
Praça 9 de Abril, 349 4249-004 Porto, Portugal. Email: maco0410@gmail.com