O Paradoxo Moçambicano
COMENTÁRIO
O Paradoxo Moçambicano
1Ana Cláudia Carvalho
1Serviço de Doenças Infecciosas, Hospital de São João, Porto Serviço de Higiene
e Epidemologia, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
Correspondência
Vais adorar! Era o que me diziam todos com quem falei antes de ir para
Moçambique e que já lá tinham estado.Vais adorar! Impressionava-me a certeza
indubitável com que o afirmavam, a mesma que esperaria sentir se em vez disso
dissessem: o mar é salgado. Assim, verdade inquestionável. Parti tranquilizada
e, achava eu, pronta para o que iria encontrar. Os meses de preparação teórica
em saúde internacional e doenças tropicais que tinha feito pouco antes no ITM
(Prince Leopold Institute ofTropical Medicine) em Antuérpia deram-me uma
segurança adicional e entrei no avião como se também eu tivesse asas.
Sabia que Moçambique era ainda um dos países mais pobres do mundo; sabia que o
ratio médico/habitante era um dos mais baixos do mundo; sabia que a prevalência
da infecção pelo VIH era uma das mais altas do mundo. Sabia isso e mais ainda,
conhecimento transformado em números.
Mas o primeiro dia bastou para perceber que essa matemática de pouco me servia.
A terreino solo, voo abortado. Os números não contavam a história da pobreza
que se vestia de buracos na roupa, da pobreza que comia no chão e dormia na
terra sem almofada, da pobreza que caminhava todos os dias descalça. Os números
não explicavam como é que é possível fazer medicina com um médico por distrito,
e é, transferindo tarefas para enfermeiros ou técnicos e agentes de medicina
formados ao longo de um a quatro anos. São eles que asseguram a prestação de
cuidados nos postos de saúde periféricos e são eles que nos centros de saúde e
hospitais distritais observam a maioria dos doentes, seja nas consultas, no
banco de socorros ou nas enfermarias. Os números não explicavam como é possível
trabalhar num hospital onde o abastecimento de água é irregular, onde os
fármacos disponíveis se contam pelos dedos e os meios auxiliares de
diagnósticos se resumem à determinação de hematócrito, aos exames directos para
pesquisa de plasmódio ou de M.tuberculosis, à realização de radiografia e pouco
mais, e é . Os números não explicavam porque é que a prevalência da infecção
peloVIH atinge em algumas zonas os 30% ou porque é que a prevenção da
transmissão mãe-filho está ainda tão longe do desejado, e está.
Os algarismos são iguais em qualquer parte do mundo, mas os números são também
feitos de crenças e tradições que marcam diferenças que não se podem apagar,
escarificações ancestrais feitas na alma colectiva de um povo. Por isso se
procura agora a Moçambicanização da mensagem, juntamente com a descentralização
e a integração dos programas de aconselhamento e de rastreio da infecção
peloVIH, de tratamento, de prevenção da transmissão vertical. Por isso se
procura aumentar o poder das mulheres, envolver a comunidade, os chefes de
aldeia e os curandeiros.
O esforço feito nos últimos anos é notável. Muito dependente de ajuda externa,
como comprovam as dezenas de organismos, parcerias público privadas e
organizações não governamentais presentes em Moçambique de que o Banco Mundial,
a ONUSIDA, a UNICEF são apenas alguns exemplos; mas sempre com um envolvimento
forte das estruturas e recursos humanos locais, numa demonstração clara do
empenho no desenvolvimento do país. Em 2003 apenas 3% das mulheres grávidas
eram testadas para o VIH e apenas em 12 locais na capital era possível ter
acesso a terapêutica antiretrovírica. Em 2008 a percentagem de mulheres
grávidas testadas tinha subido para 47% e contavam-se em mais de 200 as
estruturas sanitárias que disponibilizavam medicação. Ainda longe da meta, é
certo, mas distante também do ponto de partida. Caminho a desbravar a savana,
tapete de terra vermelha a desenrolar Moçambique.
Em muitas pessoas encontrei uma passividade estranha que as parecia mergulhar
num conformismo anestésico. Talvez ainda convencidas de que tinham esgotado
todos os créditos da esperança com os pedidos de liberdade e de paz que tinham
feito durante anos: na guerra colonial primeiro, no conflito interno depois.
Aceitavam tudo como se fosse um destino inalterável. Mas também encontrei
muitas pessoas cheias de entusiasmo, comprometidas com a construção de um país
menos pobre, menos doente, mais justo. Fiquei surpreendida com a simpatia dos
moçambicanos e com a forma como me trataram, como me fizeram sentir em casa,
entre família, tornando claro que a guerra foi contra o regime, não contra os
portugueses. A nossa ligação com Moçambique vê-se nos edifícios, ouve-se no
português mais musical, sente-se.
Vivi dias eternos, feitos de dor e riso. Escrevi por urgência. Para suportar,
algumas vezes, para recordar, sempre. Partilho agora um pouco da minha
experiência. Porque agora já sei. A mim, quando me perguntarem sobre Moçambique
vou dizer: No início vai ser difícil. Vai ser duro, forte, intenso. Lá o sol
nasce no mar e morre na terra. Ao contrário. Todos os dias. Nissico nissico,
como se diz em Xangana. Vais sentir que voltas ao passado cheio de futuro nos
bolsos. Vais ficar sem fôlego, a dançar ou simplesmente deslumbrado com a
paisagem. No fim, no fim sim, vais adorar.
Maputo, 28 Julho 2010
Tudo tem duas faces. As moedas, as cidades, as pessoas. O meu avô tinha vários
passatempos mas a numismática sempre foi o que mais me fascinou. Por isso o
ajudava na limpeza e catalogação. Tentava imaginar por onde as moedas teriam
andado, que histórias contariam, se pudessem. Depois cresci e compreendi que o
principal desígnio de uma moeda era outro. Hoje, se pudesse, recolhia todas as
moedas. E depois lavava-as com uma escova e pasta de dentes antes de as
envernizar e deixar a secar ao sol. Hoje, se pudesse, guardava todas as moedas
do mundo, só para colecção. E talvez amanhã descobríssemos outra moeda de
troca.
Manhiça, 2 Agosto 2010
Maputo ficou para trás hoje. A cidade das acácias que marcam presença em todas
as ruas. É uma cidade muito bonita. Não tanto pelo que é hoje, mas porque é
impossível não olhar para aquelas ruas de passeios planos e largos, para os
edifícios sólidos e com fachadas harmoniosas, para os parques com sombras
majestosas e recantos de sonho e não imaginar o que forame o que poderão um dia
vira ser. Dá vontade de sacudir a cidade, como um tapete, e depois pôr tudo no
sítio, já limpo e arranjado. Percebo agora porque brilham os olhos de quem
recorda uma infância vivida em Lourenço Marques. A estação foi recuperada, com
emoraesteano100 anos. Linda! Lá dentro existe agora um espaço transformado em
restaurante e local para exposições e concertos ao vivo. O antigo teatro Gil
Vicente embora degradado oferece ainda noites de jazz. Perto, o centro cultural
franco moçambicano fervilha ao lume com tempero de teatro, música e exposições.
E uma esplanada que convida a criar raízes. A cidade é ainda mais bonita ao
Domingo, liberta do trânsito caótico. Anoitece muito cedo e aqui em Manhiça a
noite é ainda mais escura. Mas também com mais estrelas. Cheguei ainda de dia e
mal pousei as coisas parti à descoberta. E do cimo do planalto vi o horizonte,
fronteira sem guarda entre o céu azul e a terra castanha doce de cana por onde
o rio Incomati deslizou, aproximando-se, curvando-se e afastandose novamente
deixando um rasto líquido. Foi amor à primeira vista. Deslumbramento
taquicardizante que fez parar o tempo por alguns segundos. Hoje tive a sensação
de recuar no tempo, vendo dois meninos a brincar com carrinhos feitos de arame
enquanto me fitavam com um misto de curiosidade e timidez. Aproximei-me. Gastam
muita gasolina, perguntei, fazen doar sério de dúvida. Riram-se, com aquele
riso de quem descobre (mais uma vez) que os grandes não sabem tudo.Com o riso
confiante de quem detém a verdade. Não, estes não gastam, respondem-me como se
me revelassem um segredo! As crianças são sábias em qualquer parte do mundo!
Manhiça, 6 Agosto 2010
Como todos os dias que terminam grandes também este foi inesperado. Acordei com
luz, calor e vozes, como todos os dias. Com a luz que atravessa a rede
mosquiteira e pinta o quarto de dourado, como calor que forma gotas no pescoço,
com as vozes das mulheres que mesmo em frente, do outro lado da porta já lavam
lençóis e mágoas enquanto esperam a hora para matabichar. Tomei um banho rápido
depois de conseguir expulsar a maioria dos mosquitos que se refugiaram no
chuveiro durante a noite. E ainda com o cabelo a pingar tomei um café e um pão
com queijo que a Matilde preparou calmamente, como todos os dias desde que
cheguei ao Centro de Investigação em Saúde de Manhiça (CISM), um verdadeiro
formigueiro construído sob o sol africano. E pouco depois já ia rumo a Maragra,
Malavela, Palmeira,lha Josina. O Sr Germano guiava o jipe e guiava-me a mim
porentre caminhos de areia e casas de caniço. Casas sem janelas, sem divisões,
sem cantos, com chão feito de terra pisada. Cimento duro feito de areia, suor,
lágrimas e ranho de criança. Muito! À voltada casa na terra penteada quase
sempre uma esteira estendida. Quase sempre uma criança a mamar. Ou só sentada,
a estar. Quase não vi velhos com idade, só velhos novos. Cheirei suor e doença
e caca de galinha, beijei recém nascidos (beija bébé mana mulungo*), vi
descascar amendoim, preparar água de arroz, fazer gorros de lã. Vi mulheres a
lavar roupa, no chão, meninos a jogar futebol com caricas, no chão, meninas a
fazerem tranças sentadas nas esteiras, no chão. Gente que vive da terra, na
terra. Da terra que dá a mandioca, fica melhor cozida, fiquei a saber quando me
ofereceram uma num dos postos de saúde. Alguns vazios, à espera dos doentes
referenciados da parteira tradicional e do curandeiro. Em Palmeira há uma
bomba de água mesmo ao lado do posto de saúde que serve a população. Do posto
via e ouvia as dezenas de crianças e mulheres que se juntavam a cumprir o
diário ritual em busca de água. E fui-me aproximando. As vozes diminuindo.
Quando lá cheguei ouvia só o silêncio. Olhares abertos, vivos e curiosos. Disse
ditchilé (bom dia) e foi uma risada só. Mulungo a falar xangana! Depois
juntaram-se à minha volta, primeiro as crianças, depois as meninas já
adolescentes. Uma delas foi-se aproximando, devagar, devagarinho, olhando
fixamente até ganhar coragem para num movimento fugaz tocar o meu cabelo. Foi
como se queimasse, tal a rapidez com que retirou a mão. Peguei na mão dela e
coloquei-a novamente sobre o meu cabelo, com calma. É diferente não é? O teu
também é muito bonito! Depois foi o delírio com a máquina fotográfica! A
descoberta congelada a cores de si próprios motivou gritos e gargalhadas. Uma
das mulheres, grávida, jurou não mais tirar a camisola amarela que vestia,
sentindo-se abençoada por aquela caixa tão especial. Pensamento mágico, puro,
primitivo! This is Africa!
Manhiça, 13 Agosto 2010
Não consigo adormecer. Penso no João. Embrulhado em quatro ou cinco capulanas,
por cima da cama do hospital que nunca é desfeita. E deve ter os pés gelados,
como tinha hoje de manhã. E deve estar a dormir. Espero que esteja a dormir. O
João tem 8 anos, mais ou menos, que a data de nascimento nunca se sabe ao
certo. Pesa 10kg e nesse seu corpo frágil, pequeno, quase imóvel, só os olhos
denunciam a idade. Um olhar de pacífico desespero que não pestaneja. Um olhar
que mergulhou em mim silenciosamente, sem salpicos. A mãe morreu com
tuberculose, o João ainda não teria um ano. A avó olhou por ele como sabia, não
sabendo. E esta semana trouxe-o ao hospital. Com 7 anos de atraso. O João está
no quarto 10 onde são tratadas as crianças com malnutrição grave. E ao
contrário da maioria tem a sorte de não ter escrito no processo as iniciais SP,
de ser o positivo. Tem a sorte de só ter uma tuberculose disseminada. O azar de
não ter sorte nenhuma! Ah que raiva! Não consigo encontrar uma resposta. E o
olhar que mergulhou em mim vai descendo. E eu não consigo arrancar-lhe um
sorriso, mesmo com um balão verde. Com as bolas de sabão conquistei um aceno de
cabeça a pedir mais balões transparentes que rebentavam sem fazer barulho. Hoje
enchi-me de esperança quando percebi que tentava falar. O que foi João? Pão.
Foi o que disse. Pão. E o olhar que mergulhou em mim afogou-me. Não sei nadar
neste mar.
Maputo, 31 Agosto 2010
Vocês europeus não acreditam na magia africana mas ela existe. Eu já vi muitas
vezes, disse-me o Luís. E passou a explicar, com exemplos. Das mulheres de Tete
que enfeitiçam os homens que nunca mais regressam do Norte, do mau olhado
transformado em paralisia que um colega de trabalho mais velho lançou por
inveja ao mais novo que subiu na carreira. Ele não conseguia andar. Eu vi. E
tudo começou depois dele começar a conduzir o carro que tinha sido do outro, do
mais velho. Os médicos disseram que não encontravam a causa, que não tinham
mais nada a fazer. Então a família levou ele a um curandeiro que fez uns
tratamentos e disseque ele ia ficar bem mas não podia voltar a trabalhar mais
naquela empresa. E ele ficou bem. É magia africana. Como é que explicas? Os
médicos disseram que não havia nada a fazer! Como é que explicas?
Maputo, 3 Setembro de 2010
Ainda não parti e já tenho saudades. Não quero esquecer-me de nada. Mesmo do
que me fez sofrer. De tudo, quero lembrar-me de tudo. Do sabor do ricoffe, da
matapa, do caril de camarão da Rita. Da mandioca, do caju, da 2M bem gelada.
Quero lembrar-me do cheiro dos campos de cana-de-açúcar a arder, do cheiro de
urina e suor das capulanas que embrulhavam corpos doentes, magros, abandonados,
adiados. Quero lembrar-me dos risos espontâneos e ruidosos das crianças que
gritavam mulungo enquanto tocavam com um dedo na minha pele virada do avesso. E
da caixa de música que com cinco meticais despertava o ritmo ondulante e
sensual de Moçambique. Não quero esquecer as águas quentes do Índico, o pôr-do-
sol sobre a cidade de Maputo, a visão deslumbrante do Incomati, morada de
crocodilos e hipopótamos que me arrebatou desde o primeiro dia. Não quero
esquecer as estradas feitas de areia ou buracos, as palmeiras, as mangueiras,
as acácias. E a língua, o português feito simples, musical. Estou a pedir folha
de chã. Hei-de trazer. Não me vou esquecer da simpatia genuína, o interesse
desinteressado da gente boa. Não quero esquecer as lições de história do Jorge,
a companhia maternal da Ana, os momentos de camaradagem que vivi com a Reyes, o
Miguel, a Olivia, a Nilsa, a Gemma. Nem as histórias que ouvi feitas de
curandeirismo e tradições. Não quero esquecer o passo lento, o ritmo calmo que
delicia tantas vezes quantas as que desespera. Hei-de trazer. E trazem. Como
vão trazer o futuro. Parece que está tudo por fazer. Nos primeiros dias no
hospital quase paralisei. Mas rapidamente transformei desespero em motivação.
Quase tudo está por fazer, é verdade. Mas isso também quer dizer que se pode
fazer de novo, bem. Acreditando que o paraíso pode ser aqui.Com mangas em vez
de maçãs.
Hei-de voltar.
Correspondência
Ana Cláudia Carvalho Serviço de Doenças Infecciosas Hospital de São João Al.
Prof. Hernâni Monteiro 4200-319 Porto, Portugal. Email: claudiac@med.up.pt
Notas
*
Palavra em dialecto local (xangana) que designa indivíduo de raça branca