Dermatomiosite na Criança: Caso Clínico
Introdução
As miopatias inflamatórias idiopáticas são distúrbios raros em idade
pediátrica. A Dermatomiosite Juvenil (DMJ) é a mais comum nesta faixa etária,
com uma incidência de 3:1000000 casos/ano e predomínio no sexo feminino1. A
idade média de diagnóstico é de sete anos, verificando-se 25% dos casos antes
dos quatro anos de idade2. Difere da forma adulta pela maior incidência de
vasculopatia e associação rara com doença maligna1,3.
Dados sobre a patogénese da DMJ sugerem tratarse de uma vasculopatia envolvendo
mecanismos de imunidade celular contra antigénios musculares, imunocomplexos
circulantes e acção do complemento. A sua etiologia poderá estar relacionada
com factores infecciosos víricos (enterovírus) ou bacterianos (estreptococo do
grupo A) assim como com factores genéticos (associação com os alelos HLA-
DRB1*0301 e HLA-DQA1*0501)1. Polimorfismos genéticos da interleucina 1 (IL-1)
parecem também ser promotores da doença4.
Os critérios diagnósticos de Bohan e Peter5são consensuais e integram dados
clínicos (fraqueza muscular proximal simétrica), lesões cutâneas típicas
(eritema heliotrópico, sinal de Gottron), laboratoriais (aumento da enzimas
musculares), electromiográficos (miopatia) e histológicos (miosite). O
diagnóstico é definitivo, quando se associam três ou quatro critérios à
presença das alterações cutâneas típicas, e provável se o doente preencher dois
critérios na presença das alterações cutâneas.
Caso clínico
Os autores descrevem o caso de uma criança de sexo masculino, com quatro anos
de idade, sem antecedentes pessoais ou familiares de relevo, que inicia queixas
músculo-esqueléticas inespecíficas em Fevereiro 2005, sendo orientado para a
Consulta de Pediatria do hospital da área de residência. Em Junho 2005 é
internado nessa instituição por lesões da mucosa oral sugestivas de estomatite
aftosa. Por manter queixas álgicas dos membros inferiores (MI), é medicado
comum anti-inflamatório não esteroide (ibuprofeno) com melhoria sintomática. É
novamente internado após um mês, por febre, anorexia, fadiga e mialgiados
músculos proximais dos MI. Apresentava sinais de artrite do joelho esquerdo e
punho direito e nódulos subcutâneos violáceos nos MI e cotovelos.
Analiticamente refere-se anemia (hemoglobina:10,1g/dl com volume globular
médio: 80fl), elevação da velocidade de sedimentação (VS: 47mm/1ªh), da
proteína C-reactiva (PCR: 11mg/l) assim como das enzimas TGO (58U/l) e
desidrogenase láctica (DHL: 356U/l). O estudo imunológico e asserologias
(Borrelia burgdorferi, Citomegalovirus, vírus da hepatite B e C, Epstein Barr,
Parvovirus B19 e Coxsackie) foram negativos. A ecografia abdominal mostrou
hepatomegalia homogénea (12,9cm), sem outras alterações. A ecografia de partes
moles e o ecocardiograma foram normais. A capilaroscopia mostrouáreas com
poucos capilares curtos e desorganizados, sugestivo de doença do tecido
conjuntivo, pelo que iniciou corticoterapia (prednisolona-1mg/Kg/dia),
verificando-se melhoria sintomática significativa.
Durante o decréscimo da corticoterapia, é novamente internado por febre e
recusa da marcha por coxalgia esquerda. A ressonância Magnética nuclear (RMN)
da região pélvica revela alterações inflamatórias inespecíficas dos feixes
musculares da raiz da coxa, com conservação da sua morfologia. Nessa altura,
verificam-se úlceras cutâneas no cotovelo (Figura_1
) e pavilhões auriculares, sendo transferido para o serviço de Pediatria do
hospital São João para apoio de reumatologia e Dermatologia Pediátricas.
Na admissão apresentava razoável estado geral, úlceras cutâneas no cotovelo
direito e pavilhões auriculares e pápulas eritematosas com descamação nas
articulações interfalângicas (IF) proximais sugestivas de calcinose cutânea e
pápulas de Gottron, respectivamente (Figura_2
). O exame músculo-esquelético mostrava diminuição da amplitude de movimentos
dos cotovelos e ancas e fraqueza muscular proximal dos membros inferiores (grau
II ) com sinal de Gower positivo. Analiticamente o hemograma era normal, sendo
de destacar elevação daVS (85mm/1ªh), PCR (92mg/l) e das enzimas musculares
séricas: TGO/ tGP (70/106U/l), DHL (320U/l), Creatinacinase (CK:51U/l) e
Aldolase (16.5U/l). O estudo imunológico mostrou um aumento das imunoglobulinas
igG e igM e o estudo de automunidade (anticorpos anti-nucleares, anti-ENA e
Factor reumatoide) foi negativo. As radiografias das ancas, joelhos e punhos e
a electromiografia ( do músculo tibial anterior não revelaram alterações. A
biópsia cutânea mostrou dermatite com sinais de hemorragia antiga e estudo de
imunofluorescência directa negativo.
Perante os achados clínicos e laboratoriais, presume-se o diagnóstico de DMJ e
o doente reinicia corticoterapia (prednisolona 1mg/Kg/dia) com melhoria clínica
e normalização dos parâmetros analíticos em quinze dias.
Seguido em Consulta de reumatologia pediátrica, manteve-se assintomático mas
com uma dose mínima de corticoide.
Discussão
A sintomatologia na DMJ é predominantemente muscular e insidiosa, mas os
sintomas constitucionais podem dominar o quadro clínico, o que geralmente
atrasa o diagnóstico de seis a oito meses em média1. Neste caso, o quadro
clínico inicial é consistente com a apresentação mais comum. Existe predomínio,
ao longo de oito meses, das queixas músculo-esqueléticas tais como fraqueza,
mialgia, artralgia e artrite (atinge até 30% dos doentes) em relação às queixas
cutâneas. A presença no último internamento de lesões cutâneas de calcinose
(presentes em 40 a 75% dos casos) indicia uma doença subjacente agressiva com
evolução arrastada6. Não há, no entanto, atingimento de outros órgãos ou
sistemas para além das clássicas alterações cutâneas e fraqueza muscular,
apesar do atingimento multissistémico ser frequente na criança1,7,8.
Analiticamente, é observado o aumento característico das enzimas musculares
séricas. O padrão é muito variável, sendo a CK a que menos se relaciona com a
actividade da doença, podendo não haver elevação na fase aguda. As enzimas
aldolase, DHL e TGO, apesar de menos específicas, reflectem melhor a actividade
da doença, pelo que é importante a sua determinação e valorização precoces7.
Anticorpos antinucleares podem estar presentes em mais de 80% dos casos; o
factor reumatóide e restantes auto anticorpos estão raramente presentes1,7,8.
A capilaroscopia periungueal é um exame não invasivo que pode revelar
alterações típicas como neste caso e auxiliar no diagnóstico e seguimento
destes doentes9. Na admissão, o doente preenchia, para além da presença do rash
típico (pápulas de Gottron), pelo menos dois critérios diagnósticos: o critério
clínico (fraqueza muscular proximal dos MI) e o laboratorial (elevação das
enzimas musculares). Não se objectivaram alterações na EMG, provavelmente pelo
facto do doente ter efectuado corticoterapia em altas doses nos três meses
anteriores. A RMN muscular, apesar de não integrar os critérios diagnósticos, é
um instrumento válido e fiável na medição da inflamação muscular na DMJ10,11.
Objectiva a presença de miosite nos casos em que não existe aumento das enzimas
musculares1. É cada vez mais usada para orientação diagnóstica, já que a
biópsia muscular, para além de ser um procedimento invasivo, pode ser negativa
em até 20% dos casos no início da doença, dado que a inflamação muscular é
habitualmente um processo focal7. Assim, numerosos casos de DMJ, tal como o que
os autores apresentam, não preenchem o critério histológico de doença e são
classificados como Dermatomiosite provável, em relação aos critérios de Bohan e
Peter.
O tratamento consiste em terapêutica de suporte e supressão da actividade
inflamatória com corticoterapia1. Os agentes modificadores de doença
(Metotrexato, hidroxicloroquina, Ciclosporina) são usados na tentativa de
reduzir o uso de corticoides ou quando estes não são suficientemente eficazes
no controlo da doença, existindo já alguns autores que preconizam o uso de
Metrotexato em primeira linha12. Os agentes biológicos tais como anticorpos
monoclonais (rituximab) e anti-TNF ainda estão em estudo1,7,8. Com tratamento
adequado, o prognóstico a longo prazo é bom, não se verificando sequelas
funcionais, para a maioria dos doentes6,13. Lesões severas da pele (calcinose),
sintomas neurológicos, gastrointestinais ou pulmonares estão associados a
prognóstico mais reservado14. A precocidade de diagnóstico e o tratamento
adequado são fundamentais, pois influenciam o prognóstico destes doentes2.
Os autores apresentam este caso pela raridade deste distúrbio na idade
pediátrica. Realçam também a forma agressiva de manifestação cutânea da DMJ
neste doente.