Clozapina e Crises Epilépticas: Três Casos Clínicos e Revisão da Literatura
Introdução
A esquizofrenia é uma doença mental grave, crónica e incapacitante. O
tratamento na maioria das situações é efectuado com antipsicóticos. Os
antipsicóticos são eficazes quer no tratamento agudo quer no de manutenção, mas
diferem entre si na farmacologia, farmacocinética, efectividade e tolerância.
Os antipsicóticos não diferem muito em relação à eficácia, à excepção da
clozapina1-3. Estão associados a um grande número de efeitos secundários como
aumento de peso, dislipidemia, hiperprolactinemia, disfunção sexual, sintomas
motores (efeitos extrapiramidias e discinésia tardia), efeitos
anticolinérgicos, sedação, hipotensão postural. O perfil exacto de efeitos
laterais depende do fármaco.
De entre os pacientes com esquizofrenia 10-20% não respondem ao tratamento
farmacológico com anti-psicóticos típicos4. Outro grupo de pacientes pode
responder, mas apresentam efeitos extra-piramidais que limitam o aumento da
dose ou apresentam discinesia tardia.
A clozapina é um antipsicótico atípico, dibenzodiazepínico que actua em vários
subtipos de receptores neurotransmissores. Tem uma forte actividade antagonista
nos receptores serotoninérgicos 5-HT2, elevada actividade nos receptores a-
adrenérgicos, colinérgicos e histamínicos e baixa afinidade para os receptores
D2, com acção preferencial dos receptores D1 e D45,6. Este fármaco tem efeitos
benéficos superiores principalmente em doentes que não respondem aos
neurolépticos ou que são particularmente sensíveis aos seus efeitos laterais7.
Os efeitos laterais da clozapina são geralmente aparentes nas fases iniciais do
tratamento e podem incluir alterações hematológicas (agranulocitose), sedação,
sialorreia, efeitos cardiovasculares e respiratórios, aumento de peso,
obstipação, convulsões, efeitos hepáticos, incontinência urinária e efeitos
neuro-musculares5,6.
Para além das crises epilépticas generalizadas tem sido também relatado que a
clozapina pode induzir mioclonias, que podem ser precursoras de crises tónico-
clónicas8,9.
Casos clínicos
Caso 1:Paciente do género feminino, de 53 anos, casada, reformada por doença
psiquiátrica. Sem história de crises epilépticas ou de traumatismo craniano,
bem como abuso de álcool e outras drogas. O diagnóstico de Esquizofrenia
Paranóide foi efectuado em 1997, altura em que foi internada pela primeira vez,
por actividade alucinatória auditiva (sob a forma de vozes na 3ª pessoa na
forma de comentário), ideação delirante de teor persecutório e auto-
referencial. Teve alta melhorada e medicada com risperidona. No período
compreendido entre 2003 e 2005 esteve internada três vezes no contexto de
descompensação psicótica subsequente a abandono da terapêutica. Foi novamente
internada em 2008,por agudização psicótica e foi medicada com olanzapina e
haloperidol decanoato.
Em Fevereiro de 2009 foi internada por sintomatologia positiva e negativa com
grande interferência na sua funcionalidade e resistente ao tratamento. Iniciou
tratamento com clozapina em doses crescentes até 250 mg/dia e mais tarde foi
introduzida a fluoxetina 20 mg/dia. Com esta medicação houve melhoria da
sintomatologia positiva, mantendo a sintomatologia negativa. A dose de
fluoxetina foi depois aumentada para 40 mg.
Após a alta do internamento transitou para Hospital de Dia, para continuidade
de tratamento. Cerca de uma semana depois iniciou movimentos rápidos
involuntários da face, tronco e membros, com dificuldades na fala, quedas
ocasionais sem alteração do esta-do de consciência. Ao exame neurológico
apresentava mioclonias de acção multifocais de predomínio facial, activadas
sobretudo com o discurso e gaguez ' prováveis mioclonias laríngeas. Realizou
vários exames comple-mentares de diagnóstico:
Electroencefalograma (EEG): abundantes descargas epileptiformes generalizadas e
multifocais. Vídeo-EEG1: abundantes descargas epileptiformes (poliponta-onda)
predominantemente generealizadas, mas também multifocais, sem predomínio de
região ou de lateralidade, na sua maioria sem manifestação clínica visível,
tendo-se identificado uma descarga que correspondeu a uma breve mioclonia
ocular/palpebral. Ressonância Magnética Nuclear (RMN) cerebral: área de
hipersinal... a traduzir alargamento do espaço peri-vascular do liquor...
Suspendeu-se a fluoxetina, e a clozapina foi reduzida para 150 mg/dia.
Simultaneamente iniciou ácido valpróico (VPA) até 750 mg/dia, tendo-se
verificado que os movimentos mioclónicos desapareceram. Apesar dos ajustes
terapêuticos mantinha-se a actividade epileptiformeno EEG (embora mais
frustres) e verificou-se agravamento da actividade alucinatória-delirante.
Repetiu vídeo-EEG: franca melhoria em relação ao anterior, ainda com alguns
surtos epi-leptiformes frustres, generalizados, sem manifestação clínica
visível.
Suspendeu-se a clozapina e introduziu-se haloperidol (20 mg/dia) e quetiapina
(600 mg/dia) com melhoria clínica. Houve uma me-lhoria progressiva nos EEG,
pelo que se sus-pendeu VPA.
Caso 2: Jovem do género feminino, de 24 anos, solteira, desempregada. Vive com
a mãe.
Sem antecedentes de epilepsia, de traumatismo craniano, abuso de álcool ou
outras drogas.
Foi internada pelo Serviço de Urgência após tentativa de suicídio. Apresentava
psicose com vários anos de evolução, não tratada. O quadro clínico era
caracterizado por comportamento desorganizado, actividade alucinatória
auditivo-verbal e delirante mal sistematizada e po-limorfa, alterações formais
do pensamento, fe-nómenos de ambivalência e ambitendência, sintomas de carácter
obsessivo com dúvida e interferência funcional significativa e ausência de
insight.
Fez tratamento com vários antipsicóticos com doses e duração adequada (ex:
olanzapina, ziprasidona, haloperidol), com refractariedade dos sintomas.
Iniciou terapêutica com clozapina, em titulação progressiva. Verificou-se
melhoria clínica com clozapina na dose de 800 mg/dia e clomipramina 100 mg/dia,
com redução progressiva da actividade alucinatória e delirante e dos sintomas
de tipo obsessivo e melhor funcionamento global.
Teve alta do internamento com o diagnóstico de Esquizofrenia Hebefrénica e
transitou nesta fase para Hospital de Dia para continuação da intervenção
terapêutica.
Teve uma crise epiléptica generalizada auto-limitada. Ao exame neurológico
apresentava mioclonias negativas distais nos membros superiores.
Foi reduzida a dose de clozapina para 500 mg/dia e de clomipramina para 75 mg/
dia e iniciou VPA (até 750 mg/dia).
O EEG apresentava ritmo de fundo lentificado (7 Hz) com lentificação frontal
sobretudo na hiperventilação.
Este ajuste terapêutico permitiu a estabilização psicopatológica, sem
recorrência de crises epilépticas e melhoria das mioclonias.
Caso 3:Género feminino, 57 anos, casada. Reformada desde os 43 anos por doença
psi-quiátrica.
De salientar que a paciente negou história de epilepsia, traumatismo craniano
bem como de alcoolismo. Iniciou o acompanhamento psiquiátrico aos 28 anos,
tendo sido estabelecido o diagnóstico de Esquizofrenia Paranóide.
A paciente tem antecedentes de 6 interna-mentos psiquiátricos por
descompensação psicopatológica (actividade alucinatória au-ditivo verbal,
cenestésica e ideação delirante de teor místico), geralmente após abandono da
medicação.
Foi admitida em Hospital de Dia, em Outubro de 2010, no contexto de
desorganização do comportamento com descuido dos cuidados básicos de higiene e
actividade delirante de teor místico, acompanhada de actividade alucinatória
auditivo-verval, alucinações tipo ce-nestésico e ideação delirante de teor
místico.
Estava medicada com haloperidol decanoato 150 mg (21/21dias) e clozapina 300
mg/dia. Foi efectuado exame neurológico, que revelou a presença de mioclonias
positivas dos membros superiores, sem outras repercussões clínicas, pelo que se
manteve a terapêutica.
Discussão
As crises epilépticas são um dos efeitos laterais possíveis da clozapina, e
parecem estar relacionadas com a dose do fármaco5,10.
A clozapina está associada a mioclonias ou crises tónico-clónicas em 3-5% dos
pacientes e o risco cumulativo ao fim de 4 anos é de cerca de 10%11. O período
de inicio no tratamento com clozapina parece ser o de maior risco para o
desenvolvimento de crises epilépticas, quando comparado com o período de
manutenção do tratamento, e cerca de metade dos casos de mioclonias ou crises
tónico-clónicas ocorrem nos primeiros 34 dias de tratamento9.
Noutras séries de casos o tempo médio de desenvolvimento de crises epilépticas
foi de 42 dias12. A titulação da dose pode ser um factor que contribui para
estes valores relativamente elevados durante a fase inicial do tratamento12. É
nesta fase que se deve prestar mais atenção à possibilidade de mioclonias e
crises tónico-clónicas generalizadas. A titulação mais lenta pode reduzir a
incidência destas crises.
No trabalho realizado por Sajatovic e Meltzer (1996)9com 148 pacientes em
tratamento com clozapina, as crises epilépticas ocorreram numa ampla gama de
doses, embora tenha havido uma tendência para os pacientes com doses mais
elevadas (> 500 mg / dia) terem crises epilépticas mais frequentes do que
aqueles com doses mais baixas.
Segundo Lieberman (1998)5, para doses inferiores a 300 mg/dia o risco de crises
epilépticas varia entre 1-2% (similar ao dos outros antipsicóticos típicos);
para doses entre 600-900 mg/dia esse risco aumenta para 5%. A maioria dos
estudos reporta crises epilépticas em doentes com doses superiores a 600 mg/dia
de clozapina.
Os factores que parecem aumentar o risco de crise epiléptica são os seguintes:
Titulação muito rápida da dose,
História prévia de alterações neurológicas,
Uso simultâneo de drogas epileptogeneas,
História de crises epilépticas.
Em relação aos tipos de crises epilépticas induzidas pela clozapina8o
tipotónico-clónica é o mais frequentemente relatado. As crises mioclónicas
constituem cerca de um quarto dos casos, de realçar que esses tipos de crises
epilépticas podem ser subestimados. As mioclonias apresentam-se como fenómenos
motores caracterizados por movimentos espasmódicos involuntários da face,
cabeça, dedos, ou do tronco. É importante considerar também que a clozapina
pode induzir mioclonias positivas e negativas, as primeiras resultam de
contracções musculares repentinas, e as negativas são devidas à interrupção
breve e repentina da actividade muscular, e podem ser preditivos do
desenvolvimento de outro tipo de crises epilépticas13. O desenvolvimento de
mioclonias (positivas ou negativas) é frequentemente um precursor das crises
tónicoclónicas. As mioclonias negativas podem ser difíceis de reconhecer, pois
muitas vezes são interpretados como flexão mioclónica dos joelhos em vez de uma
perda do tónus muscular ou, pode até ser-lhes atribuída uma causa psicogénica.
As mioclonias laríngeas, que se podem apresentar como gaguez, também podem ser
induzidas pela clozapina e ser um precursor das crises tónico-clónicas14.
O equívoco de diagnóstico de esquizofrenia e epilepsia é relativamente comum,
principalmente quando a epilepsia leva à psicose (ictal ou interictal), embora
diagnósticos independentes também possam ocorrer no mesmo paciente.
Langosh e Trimble (2002)10relataram o tratamento de 6 pacientes com epilepsia e
psicose resistente. Em todos eles houve uma melhoria significativa dos sintomas
psicóticos com a clozapina e em nenhum dos casos houve um aumento da frequência
das crises epilépticas. Segundo estes autores o tratamento eficaz da psicose
também pode contribuir para a redução da frequência das crises epilépticas,
quer pelo aumento da adesão à terapêutica, quer pela redução dos distúrbios
emocionais. Recomendam que por causa dos riscos potenciais deste fármaco, o
tratamento com antiepilépticos deve ser revisto, bem como todos os outros
fármacos prescritos antes do início da clozapina10.
Vários trabalhos têm estudado a importância de (EEG) durante o tratamento com
clozapina na determinação de actividade epiléptica15-18.
Embora a frequência de lentificação no EEG com a clozapina seja detectada em
cerca de três quartos dos pacientes, e a actividade epileptiforme em cerca de
um terço, a incidência de crises epilépticas generalizadas emergentes no
tratamento da esquizofrenia com clozapina varia entre 1,3% e 2,8%10,12,19.
As alterações electroencefalográficas e as crises epilépticas estão
relacionadas com a dose. Para além disso, o risco de crises epilépticas aumenta
com a titulação rápida da dose, electroconvulsivoterapia recente ou traumatismo
craniano e com o uso conco-mitante de fármacos que reduzam o limiar
convulsivante10.
Wong e Delva (2007)8consideram controversa a utilização do EEG como indicador
de risco da actividade epiléptica. Alguns autores sugerem que as alterações do
EEG induzidas pela clozapina não devem ser utilizadas como um prenúncio de
crises epilépticas. Nos casos apresentados por Silvestri et al15, as descargas
epileptiformes interictais mostraram apenas uma associação limitada com a
ocorrência de crises clínicas. Welch et al16sugeriram que o EEG é um indicador
sensível de toxicida de pela clozapina ;e que as alterações no EEG como o
desenvolvimento de pontas e ondas agudas indicam um alto risco de crise
epiléptica20.
Em suma, não há consenso sobre como interpretar os dados do EEG, como guia para
determinar a dose ideal declozapina8.
Durante o tratamento com clozapina é importante ter-se em consideração a
medicação concomitante do paciente. Isto porque várias drogas podem afectar o
nível plasmático da clozapina e também podem afectar de forma independente o
limiar convulsivo. Deve ter-se cuidado com fármacos que aumentem os níveis
plasmáticos da clozapina, dado que podem aumentar o risco de crises
epilépticas. Os fármacos que reduzem os níveis plasmáticos de clozapina pode
induzir as crises epilépticas se forem suspensos abruptamente. Quando os
medicamentos que podem aumentar o limiar convulsivo (por exemplo, um
antiepiléptico) são interrompidos, a dose do medicamento em questão deve ser
reduzida lentamente e o paciente observado cuidadosamente.
Os antidepressivos tricíclicos têm efeito anticolinérgico, que pode ser
exacerbado por outro anticolinérgico (por exemplo por antipsicóticos)21. Eles
diminuem o limiar convulsivo, mas a probabilidade de induzir convulsões é
relativamente baixa e está relacionada com a dose (0,48% para doses inferiores
a 250 mg/ dia e 2,1% para pacientes com doses superiores a 300 mg/dia)22.
Apesar disso podem ser utilizados nos pacientes com risco acrescido de
convulsões (por exemplo por epilepsia ou lesão cerebral), as doses iniciais
devem ser mais baixas do que o habitual e os aumentos subsequentes devem ser
gradativos23.
O tabaco induz uma enzima responsável pelo metabolismo da clozapina, o
citocromo P450 CYP1A216. A cessação tabágica pode, assim, resultar em elevação
dos níveis plasmáticos de clozapina e na indução de crises epilépticas. Nos
casos descritos por Skogh et ale McCarthy, quinze pacientes apresentaram crises
epilépticas directamente depois de pararem de fumar8.
Numa revisão levada a cabo por De Leon, concluiu se que os fumadores podem ter
aumento dos níveis de clozapina de 50% após a cessação tabágica, que pode
persistir por até 4 semanas. Outro estudo com 11 pacientes24revelou que as
alterações plasmáticas da clozapina após a cessação tabágica podem ser muito
amplas. As orientações Maudsley (8 ª edição)21afirmam que os fumadores
necessitam de maiores doses de clozapina do que os não fumadores e prevêem que
a redução da dose deste fármaco após a cessação tabágica pode ser necessária25.
As terapias de substituição com nicotina não afectam significativamente o
metabolismo da clozapina26.
Para minimizar o risco de crises epilépticas emdoentes com clozapina, os
autores sugerem5,8,27:
Realização de um EEG antes da elevação da dose acima dos 600mg/dia, Aumento
gradual da dose (12,5 a 25 mg a cada 2 a 4 dias), Utilização da menor dose
possível de clozapina.
As Guidelines Maudsley (10ª edição)21sugerem a utilização profiláctica de um
antiepiléptico para doses de clozapina superiores a 600 mg/dia (ou níveis
séricos declozapina superiores a 500 µg/L).
Relativamente ao tratamento de crises epilépticas induzidas pela clozapina e
após a ocorrência da primeira crise epiléptica a dose de clozapina deve ser
reduzida (cerca de 40-50% para manter efeito terapêutico da clozapina). Os
outros factores associados com as crises epilépticas, como fármacos
proconvulsivantes, privação de sono e abstinência alcoólica, devem ser
devidamente avaliados e as condições clínicas devidamente tratadas. Se houver
uma 2ª crise epiléptica, deve ser considerado o tratamento com um
antiepiléptico8,28. O valproato de sódio é o antiepiléptico mais frequentemente
utilizado8. A lamotrigina29, a gabapentina30,31, o topiramato32e o clonazepam
foram igualmente úteis e são menos susceptíveis de alterar o nível plasmático
de clozapina. Em cada sete casos, seis apresentam uma melhoria dos movimentos
bruscos das mioclonias com clonazepam entre 1,5 a 3mg/dia em duas semanas. No
caso apresentado por Praharaj (2010)28houve uma completa supressão das
mioclonias em duas semanas com ao tratamento com clonazepam 1 mg/dia.
Em geral, a carbamazepina deve ser evitada, pelos efeitos hematológicos
adversos aditivos e também porque diminui os níveis plasmáticos de clozapina6.
Conclusão
A clozapina é um antipsicótico com benefícios clínicos significativos na
esquizofrenia resistente. Um dos efeitos laterais possível é a ocorrência de
mioclonias e crises tónico-clónicas. Os clínicos devem estar atentos à história
prévia de crises epilépticas do paciente e utilização concomitante de drogas
epileptogénicas.
Para minimizar o risco de crises epilépticas em doentes com clozapina, alguns
estudos sugerem: aumento gradual da dose (12,5 a 25mg a cada 2 a 4 dias),
utilização da menor dose possível de Clozapina e a realização de um EEG antes
da elevação da dose acima dos 600mg/dia.