Osteomielite Multifocal Crónica Recorrente: Uma Entidade a Reconhecer!
Introdução
A Osteomielite Multifocal Crónica Recorrente (OMCR) é uma entidade clínica
descrita a primeira vez por Giedion em 1972 e caracterizada por lesões ósseas
não piogénicas, multifocais, que apresentam um curso ondulante de exacerbações
e remissões1,2. A sua incidência é baixa, correspondendo a 2 a 5% de todas as
osteomielites. Afecta mais o sexo feminino (5:1) e é mais frequente a sua
apresentação entre os 4 e os 14 anos de idade.2
A sua etiologia não está totalmente esclarecida, todavia, alguns autores
acreditam tratar-se de uma doença auto-inflamatória, dada a frequente
associação à doença de Crohn, artropatias seronegativas, psoríase e
vasculites.3,4,5Não está, no entanto, ainda excluída a possibilidade de uma
causa infecciosa ser directa ou indirectamente responsável pelas alterações
imunológicas inerentes.6A OMCR partilha ainda muitas características com a
síndrome SAPHO (sinovite, acne, pustulose, hiperostose e osteíte) do adulto,
pelo que muitos autores sugerem pertencer a um contínuo do mesmo espectro
clínico.3Recentemente foi sugerida uma origem genética dada a maior incidência
em gémeos monozigóticos e a associação fenotípica a mutações nos genes LPIN2
nos humanos e PSTPIP2 no rato.3,5
Geralmente os doentes referem dor e limitação da mobilidade, de evolução
insidiosa e duração variável (dias a anos), apresentando ainda, por vezes, ao
exame objectivo, sinais inflamatórios locais. Os sintomas gerais como febre,
emagrecimento e astenia são pouco comuns, podendo contudo surgir manifestações
em outros órgãos, nomeadamente pele, olho, pulmão e intestino.1Os estudos
analíticos não mostram elevação dos marcadores de infecção/inflamação e os
doseamentos de auto-anticorpos e de marcadores tumorais são negativos.7
As metáfises dos ossos longos são os locais mais frequentemente envolvidos
embora possa também ocorrer atingimento da clavícula, coluna vertebral e
pelve.2inicialmente, nos exames radiográficos, as lesões ósseas podem ser muito
ténues ou inespecíficas, sendo necessária a ressonância magnética nuclear (RMN)
para a sua melhor caracterização.1todavia, com a progressão da doença, podem
tornar-se evidentes alterações líticas e escleróticas na radiografia
convencional.8 Pode ainda ser necessário o recurso à cintigrafia óssea e à RMN
de corpo inteiro para identificar outras lesões activas, não sintomáticas.1
A nível histológico, a OMCR cursa com alterações inflamatórias caracterizadas,
na fase inicial, por infiltração granulocítica e, posteriormente, por
substituição destas células por linfócitos, plasmócitos e monócitos, com
progressiva formação de fibrose e hiperostose.9,10Os estudos microbiológicos do
fragmento ósseo são obrigatoriamente negativos.7
A OMCR é um diagnóstico de exclusão e, como tal, é primordial a diferenciação
com outras patologias mais comuns de apresentação semelhante: neoplasias,
osteomielite bacteriana, artrite idiopática juvenil, fractura óssea,
osteoporose, hipofosfatasia.11 No entanto, mesmo após exclusão de outras
patologias, nem sempre é fácil a sua identificação, pelo que têm sido propostos
diferentes critérios de diagnóstico (Tabela_1).2,7
Nestes doentes, está recomendada terapêutica anti-inflamatória, contínua ou
intermitente.12 Os anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) são os fármacos de
primeira-linha (remissão em 85% dos doentes), seguindo-se a sulfasalazina e os
corticoesteróides, e, nas formas graves e refractárias, terapêutica
imunossupressora, bifosfonatos ou bioterapias.4,7,12 Os antimicrobianos são
ineficazes e não estão indicados.4 O prognóstico da OMCR é geralmente bom;
todavia, em cerca de 25% dos doentes os sintomas podem persistir além da
puberdade e, dada a ocorrência desta doença durante a fase de maior
crescimento, com as lesões a localizarem-se preferencialmente junto às fises,
podem surgir complicações graves como fusão prematura das epífises e
deformidades ósseas.1,13,14 É, desta forma, fundamental que seja mantida
vigilância destes doentes até ao final do crescimento somático.
Caso clínico
Apresenta-se o caso clínico de uma doente do sexo feminino, de 10 anos de
idade, sem antecedentes patológicos de relevo, conduzida a um serviço de
urgência Pediátrico por apresentar início súbito de dor lombar intensa com
escoliose associada, com cinco dias de evolução, sem febre ou outras queixas.
Na anamnese foi negada a ocorrência de traumatismo, infecção prévia, vacinação,
viagens recentes e ingestão de lacticínios não pasteurizados. Ao exame físico,
era apenas evidente escoliose, dor à palpação das apófises espinhosas de L3 a
L5, contractura dos músculos paravertebrais e limitação da flexão lombar. O
hemograma, a proteína C reactiva e a velocidade de sedimentação apresentavam-se
dentro dos parâmetros normais. As culturas bacterianas, a pesquisa de auto-
anticorpos, as serologias de sífilis e brucelose e os marcadores tumorais foram
negativos. Na radiografia da coluna lombar não foram identificadas alterações
mas na RMN era evidente lesão no corpo de L5 (Figura_1,_imagem_A). A histologia
da biópsia da lesão óssea mostrou alterações inflamatórias, com focos de tipo
granulomatoso e microabcessos. Os estudos bacteria-nos e micobacterianos ósseos
foram negativos e o mielograma e a fenotipagem normais. Progressivamente, e
apenas com terapêutica sintomática (AINEs), verificou-se melhoria da
sintomatologia. Cerca de 4 meses depois iniciou queixa de gonalgia à esquerda,
que condicionava claudicação. Ao exame objectivo apresentava ainda posição
antálgica escoliótica e dor à palpação da apófise espinhosa de L5 e sacro. Os
exames analíticos e culturais foram, uma vez mais, negativos. A RMN da coluna
lombossagrada revelou regressão da lesão do corpo de L5 mas aparecimento de
edema na asa direita do sacro. A cintigrafia óssea (Figura_1,_imagem_B) mostrou
focos de hiperfixação nas articulações coxofemoral esquerda e sacroilíaca
direita. Atendendo à persistência da negatividade de processos patológicos
infecciosos, neoplásicos e reumatológicos mais comuns, e ao atingimento
multifocal inflamatório ósseo, com flutuação da sintomatologia e das lesões,
foi sugerido o diagnóstico de Osteomielite Multifocal Crónica Recorrente e
iniciado tratamento com indometacina, com melhoria franca dos sintomas e das
lesões. Após 4 anos de seguimento a doente permanece assintomática.
Discussão
A lombalgia, com ou sem escoliose, é relativamente frequente na adolescência,
principalmente no sexo feminino, traduzindo maioritariamente alterações
funcionais. No entanto, a sua instalação súbita, sobretudo quando de grande
intensidade, obriga a uma avaliação minuciosa para exclusão de quadros menos
benignos, nomeadamente tumorais, traumáticos, infecciosos e inflamatórios. De
facto, devem ser sempre considerados os tumores primários (osteoma osteóide, )
ou secundários (metástases, invasão leucémica), os traumatismos compatíveis com
fractura do complexo discovertebral, os processos infecciosos (osteomielite,
discite) e as patologias inflamatórias (espondiloartropatias), o que justifica
a diversidade dos estudos complementares (RMN, biópsia, mielograma, estudos
microbiológicos, imunológicos ) efectuados na avaliação inicial da doente.
A OMCR, embora frequentemente associada a lesões dos ossos longos, pode atingir
os corpos vertebrais e condicionar posição escoliótica, deformidades, colapso
vertebral e compressão medular. Na nossa doente, apesar do envolvimento de duas
das estruturas ósseas menos frequentemente atingidas na OMCR, coluna e pelve,
verificou-se evolução adequada, com resolução da dor, das alterações posturais
e imagiológicas.
A OMCR é considerada uma doença pouco frequente, porém, dado o seu carácter
oscilante e o facto de se tratar de um diagnóstico de exclusão, é possível que
a sua verdadeira incidência esteja subestimada. tal como aconteceu no presente
caso clínico, a abordagem inicial comportou a realização de múltiplos exames
complementares, analíticos e imagiológicos, alguns deles invasivos, na
tentativa de um esclarecimento das lesões ósseas inespecíficas. Perante a
negatividade de todo o percurso diagnóstico e sobretudo na presença de três
critérios major (lesões ósseas multifocais, biópsia óssea estéril com sinais de
inflamação, lesões ósseas líticas nos exames radiológicas) e vários critérios
minor de Jansson, foi considerada a hipótese de uma Osteomielite Multifocal
Crónica Recorrente. A suspeita desta entidade evitou a repetição ulterior de
exames complementares mais invasivos e a instituição mais assertiva da
terapêutica, que se revelou eficaz na resolução do quadro clínico.