Inquérito sobre asma e actividade sexual na prática clínica alergológica
INTRODUÇÃO
A asma é uma doença inflamatória crónica das vias aéreas que deve ser sempre
tratada com o objectivo terapêutico de se conseguir um controlo total/óptimo da
doença1. De uma forma sintética podemos considerar que esse controlo se traduz,
em primeiro lugar, pela ausência de sintomatologia que limite a vida dos
doentes nas suas variadas formas e, em segundo lugar, por uma função
respiratória normal ou quase normal.
Existem vários estímulos que frequentemente são desencadeantes de crises de
broncospasmo, particularmente em doentes não totalmente controlados. As
infecções respiratórias, a exposição a alergénios relevantes para esse
indivíduo, o stressemocional ou o exercício físico são alguns dos
desencadeantes mais reconhecidos1. É, por isso, habitual que os
imunoalergologistas responsáveis pelo acompanhamento de doentes asmáticos
questionem, de forma sistemática, o efeito de vários desses estímulos na
indução de sintomatologia brônquica, a fim de avaliar o grau de controlo
existente e se há necessidade de implementar medidas terapêuticas adicionais
para melhorar esse controlo.
A actividade sexual é uma situação que compreende vários dos desencadeantes
acima identificados e que, por isso, pode estar associada com a indução de
crises de broncospasmo2-7, uma vez que:
a) se trata de um exercício físico que pode ser intenso, frequentemente com
hiperventilação significativa, e que muitas vezes pode até ser o único tipo de
exercício físico intenso praticado por doentes sedentários;
b) pode envolver algum grau de ansiedade/stressemocional, particularmente em
fases iniciais dos relacionamentos dos casais ou se existirem outros problemas
concomitantes que afectem a vida do casal;
c) pode envolver exposição significativa a alergénios, particularmente aos
ácaros existentes nos colchões e/ou roupas de cama mas dependendo obviamente
dos locais onde a actividade sexual se desenrole; dentro das possíveis
exposições alergénicas há ainda a referir as hipóteses relativamente raras de
alergia ao sémen, de possível exposição ao látex ou ainda de possível exposição
a antigénios de fármacos ou a alergénios alimentares que o parceiro sexual
tomou ou ingeriu e que se podem expressar nas secreções, originando assim um
contacto e a subsequente reacção de hipersensibilidade (connubial allergy).
No entanto, e apesar de ser um aspecto que, pelo exposto acima, pode ser
clinicamente relevante questionar, é curioso verificar que na literatura
existem muito poucos dados sobre a actividade sexual como factor desencadeante
de crises de asma3-7 ou sobre as limitações à actividade sexual que os doentes
asmáticos eventualmente sentem8,9. De forma semelhante, em vários sitesda
Interneté referido que os médicos que tratam doentes asmáticos geralmente não
abordam quaisquer questões relacionadas com queixas respiratórias durante a
actividade sexual. E na PubMedtambém não encontrámos nenhum artigo que
investigasse as atitudes dos médicos de doentes asmáticos relativamente a este
assunto. Atendendo a esta relativa ausência de dados nacionais ou
internacionais procurámos determinar, no presente estudo sobre asma e
actividade sexual, se os imunoalergologistas portugueses inquiriam
habitualmente os seus doentes asmáticos sobre a actividade sexual como
desencadeante de crises e quais os seus pontos de vista relativamente a alguns
aspectos do diálogo entre médicos e doentes asmáticos quanto às eventuais
questões relacionadas com a actividade sexual desses doentes.
MATERIAL E MÉTODOS
O presente trabalho consistiu num estudo de opinião de médicos
imunoalergologistas sobre asma e actividade sexual, cujo objectivo foi avaliar
até que ponto é que estes médicos consideravam relevantes e inquiriam sobre
questões relativas à eventual sintomatologia desencadeada pelo esforço em
doentes asmáticos, nomeadamente questões relativas ao esforço durante a
actividade sexual.
O estudo foi desenvolvido em Setembro de 2010, tendo os questionários (Anexo_1)
sido realizados por telefone, e-mail ou fax, de acordo com a disponibilidade do
médico. Os médicos contactados foram médicos que constam da base de
investigadores do Grupo KeyPoint e/ou cujos contactos estão disponíveis
onlineou nas páginas amarelas. Considerando, de acordo com dados da Direcção
Geral de Saúde / Ordem dos Médicos, que existia à data um total de 211
imunoalergologistas, uma frequência esperada de resposta de 50/50, um nível de
significância de 0,05, uma potência do estudo de 80% e um erro amostral de 7%,
definiu -se uma dimensão de amostra de 100 imunoalergologistas.
Foi realizada uma análise descritiva de todas as variáveis, sendo utilizadas
medidas de estatística descritiva e frequências absolutas e relativas para as
variáveis categóricas.
As respostas foram analisadas de acordo com o sexo e o grupo etário dos médicos
inquiridos (<50 anos e ≥50 anos de idade) através da utilização do Qui -
Quadrado. O cruzamento entre questões foi efectuado através da utilização do
Qui-Quadrado. Foi considerado um nível de significância de 0,05. A análise foi
realizada utilizando o software SPSS versão 15.0.
RESULTADOS
Foram obtidos 101 questionários, total e validamente preenchidos. A maioria
(52%) dos imunoalergologistas eram do sexo masculino, e a média de idades foi
de 51,5±7,9 anos (8,9% com idade menor que 40 anos; 32,7% com idade entre 40 e
49 anos; 43,6% com idade entre 50 e 59 anos; 14,9% com idade igual ou superior
a 60 anos).
Relativamente ao hábito de questionar os(as) doentes asmáticos(as) sobre o
esforço em geral (questão 1) verificou-se que praticamente a totalidade dos
médicos (98%) questiona sempre os seus doentes e que todos consideram essa
questão relevante (questão 2). Já quanto ao questionar especificamente sobre o
esforço associado à actividade sexual (questão 3), só 11% é que questionam este
aspecto de uma forma sistemática, apesar de 96% dos inquiridos o achar
relevante (questão 4) (Quadro 1).
Quadro 1.Distribuição das respostas às questões 1 a 4
Nas respostas às questões 1 a 4 não se verificaram quaisquer diferenças
significativas entre médicos de diferentes sexos ou com diferentes idades.
Na Figura 1 indicam -se as percentagens de respostas referentes à auto-
avaliação do à-vontade dos clínicos para, durante a consulta, efectuar questões
sobre a sintomatologia eventualmente desencadeada pelo esforço associado à
actividade sexual (questão 5): mais de 90% dos clínicos consideram estar à-
vontade ou completamente à-vontade para efectuar estas questões. Verificaram-se
diferenças significativas por sexo (p=0,031) e por grupo etário (p=0,035),
sendo os imunoalergologistas do sexo masculino e os imunoalergologistas com
idade superior a 50 anos os que afirmaram estar mais à-vontade para efectuar
estas questões.
Figura 1.Distribuição das respostas à questão 5, segundo o sexo e a idade dos
médicos
Relativamente às questões sobre se o à-vontade seria diferente consoante se
tratasse de um ou de uma doente (questão 6) ou se se tratasse de uma pessoa
mais nova ou mais velha (questão 7), registaram -se as respostas apresentadas
no Quadro 2: verifica -se que as médicas imunoalergologistas se consideram mais
à-vontade para questionar doentes do sexo feminino (p<0,001), enquanto os
médicos imunoalergologistas acham estar igualmente à vontade para questionar
asmáticos ou asmáticas sobre este assunto. Relativamente à questão 7, os
clínicos consideraram -se mais à-vontade para questionar doentes mais jovens,
não se verificando diferenças significativas entre as respostas dos médicos de
diferentes sexos e/ou idades (p>0,05).
Quadro 2.Distribuição das respostas às questões 6 e 7
Verifica-se que cerca de 2/3 dos médicos pensa que é importante para os doentes
poder discutir eventuais queixas que possam ocorrer durante a actividade sexual
(questão 9) e que essa pergunta não constitui uma intromissão na sua vida
privada (questão 8). Praticamente todos os médicos consideram relevante que os
seus doentes tenham a sua asma bem controlada para não terem quaisquer sintomas
respiratórios desencadeados pela actividade sexual (questão 11); no entanto, só
cerca de 44% dos médicos é que crê que os seus doentes referirão
espontaneamente estes aspectos (questão 10) (Quadro 3).
Quadro 3.Distribuição das respostas às questões 8 a 11
Em nenhuma destas quatro últimas questões se verificou qualquer diferença
significativa entre as respostas dos médicos de diferentes sexos e/ou idades
(p>0,05).
No entanto, os médicos que acham que este tipo de perguntas pode ser
considerado como uma intromissão na vida privada afirmam mais frequentemente
que a maioria dos doentes não consideraria importante poder referir essas
queixas (p=0,036). É ainda de referir que os médicos que consideram importante
que os doentes possam referir essas queixas são os que consideram, em maior
percentagem, que a maioria desses doentes não as referirá espontaneamente
(p=0,013).
DISCUSSÃO
O presente estudo envolveu 101 médicos imunoalergologistas e pretendeu avaliar
até que ponto é que os médicos consideram relevantes e efectuam questões
relativas à eventual sintomatologia desencadeada pelo esforço durante a
actividade sexual em doentes asmáticos.
Embora 99 dos 101 imunoalergologistas refiram que costumam fazer sempre ou
quase sempre perguntas sobre a tolerância ao esforço ou sobre se o esforço
desencadeia alguns sintomas brônquicos nos doentes com asma (100% dos médicos
afirma ser esta uma informação importante do ponto de vista clínico), a
percentagem dos médicos que refere fazer habitualmente perguntas
especificamente sobre o esforço associado à actividade sexual é muito mais
reduzida: apenas 11% afirmam questionar regularmente (sempre ou quase sempre)
estes aspectos e mais de metade dos clínicos (53%) refere que só raramente ou
mesmo nunca os questiona. Contudo, e apesar de pouco questionada, 96% dos
clínicos considera esta informação importante.
Este facto torna imediatamente evidente uma nítida contradição, traduzida pelo
facto de a maior parte dos imunoalergologistas não abordar um aspecto que
contudo considera relevante. E esta mesma contradição é também sublinhada pelas
respostas à última pergunta do questionário, em que 97% dos médicos inquiridos
acha ser relevante para os seus doentes asmáticos terem a sua asma diariamente
bem controlada, para que o esforço da actividade sexual não lhes cause
quaisquer sintomas brônquicos limitativos. No entanto, parece óbvio que será
difícil saber se o esforço da actividade sexual causa sintomas brônquicos se
essa questão não for colocada.
Esta atitude de alheamento, no que diz respeito às questões relativas à vida
sexual dos doentes, também tem sido documentada em outras áreas da Medicina
como é o caso da Cardiologia, apesar de ser uma área em que é extensamente
reconhecido que a actividade sexual pode desencadear um enfarte10 e que os
doentes que sofreram recentemente um enfarte agudo do miocárdio deverão ter
algumas precauções quanto aos esforços em geral e ao esforço durante a
actividade sexual, em particular.
Alguns estudos, efectuados em países tradicionalmente considerados abertos
relativamente às questões da sexualidade em geral, têm demonstrado que os
profissionais de saúde das unidades de coronários raramente fornecem, aos
doentes ou aos cônjuges, informação oral ou escrita sobre os aspectos
relacionados com reabilitação cardíaca e a actividade sexual. Verifica-se que
esta falta de informação ocorre muitas vezes por falta de preparação desses
profissionais para discutir e/ou aconselhar os doentes nesta área específica11-
13, por preconceitos por parte dos profissionais de saúde em relação à
sexualidade dos seus doentes ou por medo e/ou vergonha de discutir a
sexualidade12. Inclusivamente, um estudo sérvio que analisou como é que médicos
e doentes cardíacos se sentiam durante um questionário sobre a actividade
sexual12 até revelou um significativo maior grau de desconforto por parte dos
profissionais de saúde do que por parte dos doentes, o que novamente vem
sublinhar os aspectos anteriormente discutidos. De forma semelhante, estudos de
países latinos mostraram que a maior parte dos doentes internados por síndrome
coronário agudo não tinha recebido, durante o seu internamento, informação
considerada suficiente relativamente a possíveis alterações na sua actividade
sexual e que a maioria desejaria ter recebido essa informação, considerando-
a importante, particularmente quando se tratava de doentes mais novos14,15.
No presente questionário verificou-se serem poucos (<10%) os médicos que
admitem estar pouco à-vontade para questionar sobre o esforço durante a
actividade sexual, o que contrasta claramente com a realidade da prática
clínica. Ou seja, parece haver uma realidade teórica em que é afirmado não
haver qualquer problema em abordar essas questões e depois uma realidade
prática em que, de facto, essas questões não são feitas. Esta não
consciencialização de que existe um problema, que também é reforçada por não
existirem nenhumas perguntas específicas sobre a actividade sexual nos
questionários de qualidade de vida mais utilizados na asma, poderá também
contribuir para a persistência desse mesmo problema.
É interessante salientar que são as médicas que, em maior proporção, admitem a
existência de um maior à-vontade relativamente a inquirir doentes do mesmo
sexo. Por outro lado, os médicos que afirmam ter menos à'vontade para inquirir
sobre a actividade sexual são os que também afirmam que se sentem mais à-
vontade para inquirir doentes com menos de 40 anos. Ambas as situações são,
quanto a nós, mais próximas da realidade dos factos e apontam, de certa forma,
para a existência de ideias pré-concebidas e para uma falta de preparação dos
médicos para activamente questionarem os seus doentes asmáticos sobre os
efeitos que a actividade sexual tem na asma e, ainda menos, sobre os efeitos
que a asma tem na actividade sexual e no grau de satisfação sexual dos doentes
e dos seus parceiros.
Relativamente a estes aspectos não se pode deixar de salientar os poucos
estudos que abordam especificamente este problema e que mostram, por um lado,
que a asma, particularmente a asma não controlada ou a asma de maior duração,
tem uma significativa interferência na vida sexual dos doentes8,9,16 e, por
outro lado, que medidas que se associam a um melhor controlo da asma também se
associam a diminuição da interferência da asma na vida sexual17.
Um outro dado interessante do presente inquérito é a percentagem de médicos
(14%) que acha que este tipo de questões poderia ser considerada como uma
intromissão na vida privada dos doentes, sendo estes os médicos que, na sua
maioria, também pensam não ser muito importante para os doentes discutir este
tipo de queixas.
Contudo, nos diversos estudos atrás citados e em inquérito que efectuámos a
doentes asmáticos (dados não apresentados), a realidade é que são os próprios
doentes a quererem ter mais informação por parte dos profissionais de saúde e,
em mais de 50% dos casos, a admitirem terem tido queixas e não as terem
referido ao médico por motivos que vão desde a vergonha em abordar esse
assunto, não achar importante referi-lo ao médico ou pura e simplesmente devido
ao facto de nada lhes ter sido perguntado sobre esse assunto.
Esta percepção de que os doentes asmáticos provavelmente não irão relatar
espontaneamente as eventuais queixas relacionadas com a actividade sexual é
referida por 37% dos médicos no presente inquérito (sendo que 19% dos
inquiridos não se pronunciam sobre esta questão); contudo 44% dos médicos
afirmam ser sua opinião que se houver problemas da esfera da vida sexual os
doentes os referirão por sua livre iniciativa, esquecendo-se de que na asma,
tal como em outras doenças crónicas, se o médico não questionar, pró-activa e
especificamente, os pontos sobre os quais pretende obter informação (número de
crises nocturnas, número de crises diurnas, consumo de fármacos de alívio, etc)
na maior parte dos casos não conseguirá reunir dados clínicos relevantes para
poder decidir se há necessidade ou não de alterar a terapêutica de base ou
implementar novas medidas terapêuticas que possam contribuir para melhorar a
qualidade de vida (incluindo a vida sexual) dos doentes com asma.
CONCLUSÕES
O presente estudo demonstra que, ao contrário das queixas relacionadas
genericamente com o esforço que são habitualmente perguntadas, a maior parte
dos imunoalergologistas não questiona habitualmente os seus doentes asmáticos
adultos sobre queixas respiratórias durante a actividade sexual, apesar de
considerarem relevante essa questão, quer em termos clínicos quer no que diz
respeito à utilidade de um bom controlo de base da asma para que a doença não
interfira significativamente com a actividade sexual.
Em contraste com estes dados, o facto de mais de 90% dos clínicos se considerar
à -vontade ou completamente à-vontade para efectuar estas questões, apesar de
as não efectuar na prática, sugere que ainda há muito a fazer no sentido de
tornar os imunoalergologistas mais capacitados e mais conscientes da
necessidade de questionar pró-activamente, de forma fácil e natural, os doentes
asmáticos sobre a eventual interferência da asma na sua vida sexual.