Hipersensibilidade a anti-inflamatórios não esteróides em doentes asmáticos com
idade pediátrica
INTRODUÇÃO
Os anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) são a segunda causa mais frequente
de reacções de hipersensibilidade (HS) a fármacos, depois dos antibióticos
beta-lactâmicos, o que resulta em parte do seu elevado consumo pela população
geral1. Denominam-se reacções de HS as reacções adversas imprevisíveis
resultantes da exposição a doses habitualmente toleradas de um determinado
fármaco2. Estas constituem uma pequena fracção do largo espectro de reacções
adversas a fármacos e podem classificar-se em alérgicas ou não alérgicas.
De uma forma simplificada, os mecanismos de HS aos AINEs podem ser de dois
tipos: 1) dependente da dose e da potência inibidora sobre a ciclooxigenase
(COX)-1, com desvio do metabolismo do ácido araquidónico no sentido da via da 5
-lipoxigenase, diminuindo os níveis de prostaglandinas anti-inflamatórias
(especialmente a prostaglandina (PG) E2) e aumentando os níveis de cisteinil -
leucotrienos; este é o mecanismo responsável pela reactividade cruzada entre
AINEs e o mais frequente (ex. doença respiratória exacerbada pela aspirina '
DREA, urticária / angioedema em doentes com ou sem urticária crónica); 2)
independente da dose, específico de um só fármaco ou família, mediado por um
mecanismo imunológico e com o necessário período de sensibilização prévio,
presente em aproximadamente 1-2% dos doentes que tomam AINEs3,4.
A prevalência de HS a AINEs na população geral varia entre 0,6 -2,5%1,5,6,
sendo semelhante quando se considera uma população com idade pediátrica7,
embora com predomínio de reacções cutâneas neste grupo etário4. Esta
prevalência aumenta em alguns subgrupos de doentes, estando descrita em 20-40%
dos doentes com urticária crónica8, 36% dos doentes com polipose nasossinusal9
e numa percentagem variável de doentes com asma brônquica (AB). Neste último
subgrupo, a prevalência de HS a AINEs é muito discrepante entre estudos,
variando de acordo com a metodologia usada, nomeadamente com o grupo etário e
com os critérios usados para definir o diagnóstico de AB e de HS a AINEs
(história clínica ou prova de provocação).
Assim, quando definida pela história clínica, a prevalência de HS a AINEs em
doentes asmáticos varia entre 3-16%9-11, aumentando para 6,8-19% quando
diagnosticada por prova de provocação10,11. Em crianças asmáticas com idade
inferior a 10 anos, esta prevalência foi reportada como infrequente, enquanto
entre os 10 e os 20 anos foi de 10%4. Numa metanálise de 5 estudos com doentes
asmáticos em idade pediátrica (0 -18 anos), a prevalência de HS a AINEs
comprovada por prova de provocação oral com ácido acetilsalicílico (AAS) foi de
5% (0-14%)12. A noção geral é a de que a HS a AINEs em idade pré-escolar é
extremamente rara, com a prevalência nos adolescentes a aproximar-se da dos
adultos13. Contudo, na idade pediátrica, os dados publicados são escassos.
O objectivo deste estudo foi avaliar a frequência de HS a AINEs, reportada por
inquérito telefónico em doentes com idade pediátrica e AB confirmada por prova
de broncodilatação positiva.
MATERIAL E MÉTODOS
Doentes
Procedeu-se a uma análise retrospectiva das espirometrias efectuadas no período
de 1 de Agosto de 2008 a 30 de Novembro de 2010. Incluíram-se todos os doentes
com idade compreendida entre os 6 e os 17 anos, com clínica de AB de acordo com
os critérios do GINA 200714, confirmada por prova de broncodilatação positiva.
Estudo funcional respiratório
As espirometrias foram realizadas num pneumotacógrafo Vitalograph Compact®, no
Laboratório de Função Respiratória do Serviço de Imunoalergologia do Hospital
de Dona Estefânia. As provas de broncodilatação foram consideradas positivas
quando, após administração de 400 μg de salbutamol em câmara expansora, se
verificou um aumento do volume expiratório máximo no primeiro segundo (FEV1) ou
da capacidade vital forçada (FVC) ≥ 12% e 200 mL.
Questionário
Todos os pais / cuidadores dos doentes que cumpriam os critérios de inclusão
foram contactados por via telefónica e inquiridos sobre a ocorrência de
reacções adversas a fármacos, nomeadamente a AINEs. Sempre que uma reacção
adversa a AINEs era reportada, eram questionados mais detalhes: o motivo da
toma, o AINE implicado, a idade da criança aquando da primeira reacção e
caracterização da mesma (tempo de início após a toma e manifestações clínicas),
a toma posterior do mesmo fármaco e eventual reprodutibilidade da reacção, se
estavam sob evicção do fármaco implicado e se toleravam algum AINE alternativo.
Recolha de dados através da consulta de processos
A colheita de dados demográficos e clínicos foi complementada através da
consulta do processo clínico dos doentes que responderam ao inquérito
telefónico. Consideraram -se atópicos os doentes com sensibilização documentada
(através de doseamento de IgE específica sérica ou através de testes cutâneos
por picada) a pelo menos um dos aeroalergénios ou alimentos testados2.
RESULTADOS
Durante o período de 1 de Agosto de 2008 a 30 de Novembro de 2010, 184 crianças
com idades compreendidas entre os 6 e os 17 anos e com clínica de AB
apresentaram, pelo menos, uma prova de broncodilatação positiva. Foi possível
aplicar o inquérito telefónico a 111/184 (60,3%), sendo que nos restantes 39,7%
os números estavam indisponíveis, incorretos ou as chamadas não foram
atendidas. Em 6 dos 111 doentes contactados não foi possível consultar o
processo por dados insuficientes na sua identificação. Dos 105 restantes não
foi possível aceder ao resultado dos testes de sensibilidade cutânea por picada
em 2 por não estarem disponíveis no processo. A caracterização demográfica e
clínica dos 111 doentes encontra'se no Quadro 1.
Quadro 1.Caracterização demográfica e clínica dos 111 doentes que responderam
ao inquérito telefónico
Dos 111 doentes inquiridos, 11 (9,9%) reportaram pelo menos uma reacção adversa
a fármacos: 9 com AINEs, 4 com antibióticos beta lactâmicos e um com
aminofilina. Em 3 destes 11 doentes foi reportada reacção adversa a dois
fármacos, um AINE e um antibiótico beta-lactâmico.
Assim, neste grupo de doentes, observámos uma frequência de reacções adversas a
AINEs de 8,1% (9/111), todas sugestivas de reacções de HS. Dos 9 doentes com
reacções reportadas aos AINEs, 3 confirmaram a sua reprodutibilidade noutra
ocasião. Em todas as reacções o ibuprofeno foi o AINE implicado, tendo sido
administrado por febre. À data do inquérito telefónico, todos os doentes se
encontravam sob evicção de ibuprofeno, tolerando paracetamol.
Todas as reacções descritas foram imediatas (em menos de 1 hora após a toma),
tendo em 7 ocorrido nos primeiros 30 minutos após a toma. Cinco doentes
apresentaram manifestações respiratórias de forma isolada: em 3 o ibuprofeno
foi o factor desencadeante de uma exacerbação de asma (2 referiram
reprodutibilidade da reacção) e noutros 2 foi factor de agravamento de uma
exacerbação já estabelecida.
Um doente com mais de duas reacções adversas ao ibuprofeno referiu vómitos em
todos os episódios, com sintomas respiratórios associados apenas quando a toma
ocorreu durante uma exacerbação de asma, com noção de agravamento clínico. Dois
doentes apresentaram urticária aguda isolada; por fim, num doente foi descrito
quadro concomitante de urticária aguda e início de exacerbação de asma. As
reações de HS a AINEs ocorreram com uma idade mediana de 2 anos (P25: 1,8 anos;
P75: 5,75 anos), variando entre os 9 meses e os 9 anos. Os dados demográficos e
clínicos destes 9 doentes encontram-se no Quadro 2.
Quadro 2. Dados demográficos e clínicos dos 9 doentes que reportaram reacção de
HS a AINEs
Dos 111 doentes, 4 (3,6%) estavam sob evicção de AINEs por recomendação de
terceiros, dado o diagnóstico de asma, apesar de negarem qualquer reacção
adversa prévia com este grupo farmacológico.
DISCUSSÃO
Apesar de descritas como mais frequentes em adultos, as reacções de HS a AINEs
podem surgir em qualquer idade4, sendo estes fármacos de uso comum em idade
pediátrica, sobretudo no tratamento de processos febris e inflamatórios agudos.
A frequência reportada de HS a AINEs no nosso estudo (8,1%), cujas reações
ocorreram abaixo dos 10 anos em todos os doentes, aproxima -se daquela apontada
para o grupo etário dos 10 aos 20 anos (10%)4, contrariando os dados que
descrevem as reacções de HS a AINEs como infrequentes em crianças asmáticas com
idade inferior a 10 anos.
Os sintomas respiratórios foram a manifestação mais reportada pelos pais /
cuidadores dos nossos doentes, estando presentes em 7/9 (77,8%), sendo que em 5
(55,6%) foram a única manifestação de HS ao ibuprofeno. Por outro lado, as
manifestações cutâneas foram apontadas por 3/9 (33,3%). Estes resultados vão ao
encontro do predomínio dos sintomas respiratórios em doentes asmáticos descrito
na literatura, enquanto os sintomas cutâneos parecem predominar na população
geral15. A prevalência de reacções respiratórias a AINEs em crianças asmáticas
varia entre 0-28% em alguns estudos12,16-18. Na nossa amostra, a frequência de
reacções respiratórias foi de 6,3% (7/111). Dada a maior frequência descrita
das reacções a AINEs mediadas pela inibição da COX-1 e sendo estes doentes
asmáticos, é provável que os sintomas respiratórios reportados correspondam a
DREA, embora a confirmação dependa da demonstração de HS cruzada a outros
AINEs. Tendo em conta que nem todos os AINEs estão autorizados para uso
pediátrico, não é surpreendente que o ibuprofeno tenha sido o AINE implicado em
todas as reacções.
Nos últimos anos, o AAS tem sido menos usado neste grupo etário devido à maior
frequência de efeitos secundários, nomeadamente a síndrome de Reye, pelo que
tem indicações mais restritas (ex. doença de Kawasaki, antiagregante
plaquetar)4. O paracetamol, com a sua fraca actividade inibidora da COX-1, é
considerado como uma boa alternativa terapêutica neste grupo etário, sendo
habitualmente tolerado, tal como reportado por todos osmnossos doentes. O seu
efeito antipirético e analgésico resulta da sua acção a nível do sistema
nervoso central, onde inibe selectivamente a COX-3, uma enzima mais
recentemente descoberta e que se encontra apenas no cérebro e na espinhal
medula19. Há, contudo, casos descritos de reacções adversas ao paracetamol,
quer específicas deste fármaco20, quer por reactividade cruzada com outros
AINEs21. A incidência de HS cruzada com o paracetamol está estimada em 7% (0 -
16%) dos doentes com HS a AINEs12. Casos de DREA por paracetamol estão
descritos, sobretudo em doentes intolerantes a doses baixas de AAS, já que a
probabilidade de HS ao paracetamol por reacção cruzada com outros AINEs parece
estar inversamente relacionada com a dose de AAS necessária para desencadear a
reacção22,23.
No nosso estudo, 3,6% dos doentes estavam sob evicção de ibuprofeno por
recomendação de terceiros, apesar de nunca terem tido qualquer reação adversa a
AINEs. À medida que as possíveis reacções a AINEs em asmáticos vão sendo do
conhecimento geral, verifica -se uma tendência para recomendar a sua evicção
neste grupo de doentes, frequentemente desnecessária. Tentando contrariar esta
ideia, alguns autores abordaram o efeito broncodilatador dos AINEs em alguns
doentes asmáticos, com melhoria da sua sintomatologia respiratória24. Apesar do
mecanismo responsável por este efeito broncodilatador não estar esclarecido,
estudos in vitroapoiam a hipótese de os AINEs suprimirem de forma mais
significativa a produção monocitária de PGF2α (efeito broncoconstritor)
comparativamente à de PGE2 (efeito broncodilatador)25. No entanto, não há
nenhuma diferença clínica que nos permita distinguir estes doentes daqueles que
pioram. Em 2001, Levy S et alpublicaram guidelinespara o uso de analgésicos em
doentes asmáticos26.
Estrada et alencontraram um predomínio do género masculino (59,8%) em asmáticos
com idade pediátrica27, embora em asmáticos adultos esteja descrita uma maior
prevalência do género feminino (61 -73,3%)28,29. Apesar de, geralmente, a
atopia não constituir um factor de risco para a ocorrência de HS medicamentosa,
alguns autores descreveram que a HS a AINEs está positivamente associada com a
presença de atopia30. Neste grupo de doentes, o predomínio do género masculino
e a elevada frequência de atopia resultam da sua associação com asma no grupo
etário pediátrico, não permitindo analisar a sua relação com a HS a AINEs.
Seria importante submeter estes doentes a prova de provocação diagnóstica, de
modo a confirmar a verdadeirafrequência de HS a AINEs e de DREA. Relativamente
à DREA, a sua frequência poderá ficar subdiagnosticada quando baseada na
história clínica, comparativamente ao diagnóstico por prova de provocação31.
Alguns estudos apontam para que a HS a AINEs seja um factor de risco para uma
maior gravidade de AB29,32,33. Este risco é maior no caso de DREA, aumenta com
o avançar da idade29 e a evicção de AINEs não impede a persistência e
progressão da inflamação da mucosa das vias aéreas ao longo do tempo13. Tendo
em consideração este factor de risco, os doentes com HS a AINEs confirmada,
sobretudo aqueles com DREA, deveriam ser mantidos sob vigilância, de modo a
acompanhar a eventual progressão para uma forma mais grave de AB.
Embora a incidência de polipose nasossinusal seja muito rara em crianças com HS
a AINEs, a sua prevalência é de 37-61% quando se tornam adultos, sendo
importante vigiar o seu aparecimento9,27,34.
CONCLUSÕES
No nosso estudo com doentes asmáticos em idadepediátrica, a frequência
reportada de HS a AINEs (8,1%) contraria os dados que descrevem estas reacções
como infrequentes abaixo dos 10 anos de idade. Seria importante confirmar esta
frequência através da realização de provas de provocação e em estudos de
maiores dimensões.
Contudo, estes resultados não permitem recomendar a evicção de AINEs nas
crianças com asma. O paracetamol parece ser uma alternativa terapêutica segura.