Perfil de diversidade da comunidade estafilocócica da pele em doentes com
dermatite atópica
INTRODUÇÃO
A pele é um ecossistema complexo e dinâmico habitado por uma grande variedade
de microrganismos.
A barreira exercida pela pele é essencial para a sobrevivência, impedindo a
perda de humidade e lesão por agentes infecciosos ou tóxicos. A pele humana
possui uma microfl ora residente que pode diferir consideravelmente de acordo
com o local do corpo humano, sendo que nenhum outro órgão tem uma microfl ora
com uma composição tão específi ca como a pele1. A população principal da
microfl ora residente consiste em espécies de SCN, Propionibacteriumacnese
espécies de Malassezia. A estabilidade deste grupo de microrganismos é baseada
num equilíbrio constante com o sistema imunológico2,3.
A dermatite atópica (DA) é uma doença cutânea inflamatória crónica
imunologicamente mediada. Clinicamente caracteriza-se por surtos e remissões de
lesões intensamente pruriginosas e de localização variável5. Nas últimas
décadas a sua prevalência duplicou nos países industrializados6,7, acarretando
custos socioeconómicos elevados.
A sua patogénese é complexa, resultando da acção de diversos factores
ambientais (alergénios, agentes infecciosos) em indivíduos geneticamente
predispostos. Mutações no gene que codifica a filagrina, uma proteína do
citoesqueleto da queratina, estão associadas à DA, particularmente em doentes
que subsequentemente desenvolvem rinite e/ou asma alérgicas8. Ao contrário da
pele de indivíduos saudáveis, a pele dos doentes com DA apresenta deficiências
do sistema imunológico inato, quer celular (neutrófilos, células dendríticas
plasmocitóides), quer de mediadores solúveis (quimiocinas envolvidas no
recrutamento de linfócitos T, péptidos antimicrobianos, entre outros)4.
Estes doentes apresentam maior predisposição para colonização e infecção por S.
aureus(em zonas com ou sem lesão aparente) que pode exacerbar o estado da
doença9. Embora tradicionalmente o S. aureustenha sido considerado um
colonizador normal da pele em indivíduos saudáveis, estudos recentes10 parecem
discordar desta afirmação. A patogenicidade do S. aureusé atribuível aos
potenciais factores de virulência, como: proteínas de superfície que promovem a
sua colonização, factores de superfície que inibem a fagocitose por células
imunitárias, exotoxinas que danificam tecidos do hospedeiro (enterotoxinas
estafilocócicas A-G, toxina da síndrome do choque tóxico, exfoliatinas) e
resistência inerente ou adquirida a agentes antimicrobianos11.
A topografia da pele e respectivos microambientes são determinantes importantes
da estrutura da comunidade microbiana em locais específicos. A DA envolve
preferencialmente a região antecubital e poplítea ' locais que abrigam grupos
semelhantes de organismos mas com composições distintas no seio da comunidade
microbiana residente10. Estes resultados sugerem que as comunidades microbianas
podem contribuir para as predilecções de algumas patologias cutâneas em locais
estereotipados. A caracterização da comunidade estafilocócica residente na pele
de indivíduos com DA é fundamental para esclarecer a sua relevância na
patogénese da doença. O objectivo deste trabalho foi caracterizar numa
perspectiva molecular a biodiversidade da comunidade estafilocócica residente
na pele e alguns factores de virulência associados em doentes com DA e sua
comparação com indivíduos saudáveis.
MATERIAL E MÉTODOS
Amostra populacional
Foram incluídos 6 doentes (com idades entre 5 e 35 anos) com diagnóstico médico
de DA moderada a grave com lesões de DA no momento da observação mas sem
evidência clínica de infecção, sem tratamento com corticoides tópicos,
inibidores da calcineurina, imunossupressores sistémicos ou antibióticos nas
duas semanas prévias. Cinco dos doentes eram atópicos, sensibilizados a
alergénios inalantes (ácaros e pólenes de gramíneas), três dos quais com
diagnóstico prévio de asma. Um dos doentes apresentava concomitantemente
alergia alimentar (anafilaxia a frutos secos). Foram incluídos 21 indivíduos
saudáveis (com idades entre 18 e 24 anos) sem diagnóstico prévio de doenças do
foro dermatológico, rinite e asma alérgica.
Colheita das amostras
Foram colhidas amostras da fossa poplítea e antecubital nos dois grupos, sendo
que nos doentes com DA foram recolhidas amostras em locais de lesão de DA (13
amostras).
As amostras foram colhidas em dias independentes e transportadas imediatamente
para o laboratório sob refrigeração. No dia de recolha das amostras não foi
requerido aos indivíduos analisados nenhuma preparação prévia da pele. A
superfície total de pele amostrada em cada zona foi de 25 cm2 utilizando a
técnica da zaragatoa.
As amostras recolhidas foram inoculadas em Baird Parker Medium (Lab M,
Lancashire, Reino Unido) a 37 °C durante 24 a 48 horas.
Estirpes de referência
As estirpes de referência utilizadas no Multiplex-PCR foram: S. aureusATCC
25923, S. epidermidisATCC 14990, S. capitissubsp. capitisATCC 27840, S.
hominissubsp. HominisATCC 27844 e S. haemolyticusATCC 29970. Os controlos
positivos utilizados na detecção dos genes produtores de toxinas, a partir de
estirpes referência de S. aureusforam: R5371/00 (SEA, SEG, SEH, SEI, SEM, SEN,
SEO, SEU e TSST -1), R5460/00 (SEB, SEG, SEH, SEM, SEN, SEO, SEU e TSST -1),
FRI 472 (SED, SEG, SEJ, SEM, SEN, SEO e SER), 3169 (SEC, SED, SEJ, SEL, SEO,
SER e TSST-1) e FRI 913 (SEA, SEC, SEE, SEL, SEK, SEQ e TSST-1) fornecidas
gentilmente pelo Prof. Løvseth (Secção de Alimentação e Microbiologia de
Alimentos, Veterinária Nacional Institute, Ullevålsveien, Oslo, Noruega).
Identificação molecular
Multiplex -PCR: A colecção dos isolados totais foi submetida à tecnologia de
Multiplex -PCR. O ADN celular foi isolado pelo método da guanidina-
isotiocianato como descrito11.
O processo de amplificação foi efectuado num termociclador Techne TC -512
(Cambridge, Reino Unido) usando um volume total de reacção de 25 μL contendo 4
μL de ADN (50 ng/μL), 2,5 μL de uma mistura de 5 primers(0,5 μM cada primer),
12,5 μL da NZYTaq 2x Green Master Mix e 6 μL de água estéril. Os
primersutilizados na reacção de Multiplex e os produtos de amplificação obtidos
estão descritos no Quadro_1. As condições de amplificação foram: desnaturação
inicial à temperatura de 94 ºC durante 2 minutos e 30 segundos, seguido de 35
ciclos de amplificação a 94ºC durante 1 minuto, 50ºC durante 1 minuto e 15
segundos e 72ºC durante 1 minuto, ao que se seguiu uma extensão final a 72ºC
durante 5 minutos.
Os produtos PCR resultantes foram analisados por electroforese em gel de
agarose a 2%.
Sequenciação do gene sod A: Os isolados não identificados por Multiplex foram
identificados por sequenciação parcial do gene sodA, como descrito12.
Factoresde virulência
Testes fenotípicos:O teste da coagulase foi realizado por inoculação de cada
isolado em 0,5 mL de plasma de coelho (Biomérieux, Marcy -l'Etoile, França) e
incubação a 37°C com leitura de coagulação a 30 minutos e 24 horas. A enzima
desoxirribonuclease (DNase) foi detectada em meio gelose DNase (Pronadisa,
Madrid, Espanha) com incubação a 37°C durante 24 horas. De forma a determinar o
tipo de hemólise, inoculou-se cada estirpe em meio gelose sangue de carneiro
(Biomérieux) e as placas foram incubadas a 37°C durante 24 horas.
Detecçãode enterotoxinas por Multiplex-PCR:os primersusados para as
enterotoxinas e a toxina da síndrome do choque tóxico e as condições do
Multiplex-PCR foram preparados como descrito em Hwang etal.5.
RESULTADOS
Identificação molecular
Após isolamento das estirpes das placas de Baird Parker Medium foram obtidos
uma colecção total de 238 isolados, dos quais 196 e 42 foram provenientes de
indivíduos com DA e indivíduos saudáveis, respectivamente.
A colecção dos isolados totais foi avaliada por tecnologia de Multiplex -PCR
(Figura_1). A identificação molecular baseou-se na amplificação de sequências
específicas para as espécies-alvo: S. aureus, S. epidermidis, S. capitis, S.
hominise S. haemolyticus, resultando em produtos PCR de 723 bp, 124 bp, 208 bp,
866 bp e 271 bp, respectivamente.
Todos os primersamplificaram com sucesso os genes-alvo na reacção de PCR sem
produção de bandas inespecíficas.
A tecnologia de Multiplex implementada permitiu identificar 216 (90,7%) dos
isolados totais. Os restantes isolados (n=22) foram identificados por
sequenciação parcial do gene sodA.
O padrão total de identificação das estirpes isoladas está descrito na Figura
2. As estirpes prevalentes em doentes com DA foram o S. aureus, com 71 (36,2%)
isolados, seguido por S. epidermidiscom 59 (30,1%) e S. hominiscom 54 (27,6%).
Em indivíduos saudáveis foi encontrado uma maior biodiversidade de espécies com
um total de 8 espécies identificadas. S. epidermidis, S. aureus, S. capitis, S.
hominis, S. haemolyticus, S. saprophyticus, S. lugdunensise S. warneri(Figura
2). Dessas espécies, as mais prevalentes foram o S. warnericom 10 (23,8%) e o
S. saprophyticuscom 9 (21,4%) isolados.
Na DA nota-se uma redução da heterogeneidade no número de espécies
identificadas (n=4) e paralelamente um aumento significativo na proporção de
cada uma das espécies identificadas.
Factores de virulência
Detecçãodas enterotoxinas:Foi utilizado um ensaio de Multiplex-PCR (Figura_3)
que permitiu a detecção dos 19 genes que codificam as enterotoxinas
estafilocócicas (SEA-SEE, SEG -SER e SEU) e a toxina da síndrome do choque
tóxico5.
Os resultados da detecção dos genes das enterotoxinas e da toxina da síndrome
do choque tóxico estão apresentados na Figura_4. Na detecção dos genes
produtores de toxinas foram avaliados 21 dos isolados provenientes de doentes
com DA e identificados com S. aureus. Foram encontradas 7 enterotoxinas
diferentes nos 21 isolados. Em 76% (16/21) dos isolados foi detectada a
presença de pelo menos um gene produtor de enterotoxina. As toxinas encontradas
com maior frequência foram a SEG (14/21), SEM (15/21), SEN (15/21) e SEO (14/
21), sempre encontradas juntas no mesmo isolado, com excepção de uma única
estirpe. Neste estudo, foram ainda detectadas, mas com uma taxa menor de
incidência, a SEA (6/21), SEL (7/21) e SEU (1/21). De acordo com o seu perfil
genético, foram encontrados 7 genótipos com combinações diferentes de
enterotoxinas (resultados não apresentados).
Testes fenotípicos:Incluíram a detecção da actividade de coagulase e DNase,
assim como a avaliação da actividade hemolítica em placa de gelose sangue. A
grande maioria dos isolados (68,1%) demonstrou ser coagulase e DNase negativo.
No que diz respeito à actividade hemolítica, 67% dos isolados não apresentaram
actividade hemolítica e 33% demonstraram β-hemólise. Não foi detectada α-
hemólise nos isolados totais.
DISCUSSÃO
A DA é uma doença inflamatória cutânea classicamente associada à colonização e
infecção por um grupo de microrganismos específicos. A caracterização detalhada
do microbioma cutâneo nesta patologia é fundamental para uma abordagem
terapêutica adequada.
No presente estudo, a metodologia molecular permitiu caracterizar de forma
eficaz e abrangente o perfil da microflora estafilocócica residente na pele. A
microflora identificada foi distinta nos dois grupos, notando-se uma
heterogeneidade nas espécies identificadas entre os indivíduos com DA e
indivíduos saudáveis.
Verificou-se uma redução da diversidade bacteriana nos indivíduos com DA
relativamente aos indivíduos saudáveis com 4 e 8 espécies identificadas (Figura
2), respectivamente.
A DA tem sido associada a uma prevalência elevada de colonização da pele por
estirpes de S. aureus, o que está intimamente relacionado com a gravidade da
doença8.
O S. aureusfoi a estirpe prevalente no contexto da DA com 71/196 isolados. Do
grupo de 6 indivíduos analisados com DA, 4 (67%) estavam colonizados por S.
aureus. Outros autores13,14demonstraram que até cerca de 80% dos doentes com DA
podem estar colonizados por S. aureus. No grupo de 21 indivíduos saudáveis, 5
(24%) estavam colonizados por estirpes de S. aureus, resultados que estão de
acordo com o previamente descrito15.
Também ocorreram flutuações em outras espécies de bactérias presentes na pele.
O S. epidermidise o S. homi nissão espécies comuns na pele de indivíduos
saudáveis e têm sido considerados microrganismos comensais, com a capacidade de
inibir o S. aureus16. A proporção destas duas espécies também aumenta
consideravelmente nos indivíduos com DA, sugerindo uma visão diferente sobre a
relação da comunidade estafilocócica com a DA. Estas espécies de estafilococos
podem compartilhar uma relação mutualística ou comensal para melhorar a
resistência comum a peptídeos antimicrobianos. Alternativamente também foi
sugerido como sendo um mecanismo compensatório de aumento destas estirpes de
Staphylococcuscoagulase negativos com o intuito de controlar o S. aureus8.
Existem várias linhas de evidência apoiando o conceito de que as toxinas com
capacidade de superantigénios desempenham um papel na patogénese da DA. Estes
superantigénios podem penetrar a barreira da pele e contribuir para a
persistência e exacerbação da inflamação alérgica da pele17. Do ponto de vista
clínico, mais do que 50% dos doentes com DA são colonizados por estirpes de S.
aureusque secretam, pelo menos, um superantigénio14.
Neste estudo, em 16/21 (76%) estirpes de S. aureusisoladas de indivíduos com DA
foram detectadas exotoxinas, com combinações diferentes de quatro ou mais
enterotoxinas. Estudos prévios demonstraram que 30 a 60% das estirpes de S.
aureusisoladas de indivíduos com DA eram toxigénicas13,14. Os genes
predominantes foram o SEM, SEM, SEG e SEO. Estes genes são conhecidos como
componentes normais do operão egc(SEG, SEI, SEM e SEN com SEO ou SEU), de modo
que este elemento genético móbil foi frequentemente detectado5e pode ser
considerado uma possível fonte de genes com actividade superantigénica. Mempel
etal.18
também identificou a presença do operão egcem estirpes de S. aureusisoladas de
doentes com DA. De notar ainda que das enterotoxinas clássicas (SEA -SED),
apenas a SEA foi identificada em 6/21 (28,5%) isolados. Alguns estudos apontam
a SEB19 ou a SEC20 como as toxinas preferencialmente associadas com a DA, no
entanto, neste estudo não foram detectados os genes produtores destas toxinas.
Esta caracterização deveria também ser alargada às estirpes de SCN isoladas
neste estudo, de modo a verificar a taxa de incidência de estirpes de SCN
toxigénicas nos isolados totais e realçar melhor o papel de estipes de SCN no
contexto da DA.
CONCLUSÕES
Existe uma maior diversidade de espécies estafilocócicas em indivíduos
saudáveis comparativamente aos doentes com DA na nossa população. As estirpes
prevalentes em doentes com DA foram o S. aureus, seguido do S. epidermidise S.
hominis. A relação entre as diversas espécies da comunidade estafilocócica
cutânea é complexa e ainda não está completamente esclarecida. Poderá ter
sentido no futuro imunomodular a pele com espécies comensais não patogénicas?
A possibilidade de estabelecer para cada doente com DA o seu perfil
estafilocócico tem importantes e potenciais implicações clínicas: dirigir a
terapêutica antimicrobiana de forma específica, tailor -madeà comunidade
microbiana daquele doente e não de forma empírica.
Em estudos futuros a caracterização do perfil de virulência de espécies SCN
provenientes de doentes com DA poderá esclarecer o seu papel na manutenção da
inflamação cutânea.