Eficácia e tolerância de Imunoterapia sublingual com Pru p 3 em doentes com
alergia grave ao pêssego: evolução clínica e imunológica ao longo de 12 meses
INTRODUÇÃO
A alergia a alimentos de origem vegetal é o tipo de alergia alimentar mais
comum em adolescentes e adultos1,2. Na região do Mediterrâneo, os frutos
frescos (rosáceas e kiwi) e os frutos secos (avelã) são os alimentos mais
frequentemente envolvidos em reações alérgicas alimentares, sendo a sua
gravidade variável, mas potencialmente fatal1,2. A alergia a estes frutos é
causada sobretudo por sensibilização a panalergénios como as proteínas
transportadoras de lipídos (LTPs) ou as profi linas, podendo os doentes
apresentar monosensibilização ou co-sensibilização a estes alergénios2-5. As
LTPs são panalergénos, ubiquitárias em diversas espécies vegetais, clinicamente
relevantes na alergia a frutos e vegetais, tendo também sido descritas em
pólenes2-4. As LTPs partilham características estruturais, o que aumenta
signifi cativamente a probabilidade de reatividade cruzada clinicamente
relevante. Por outro lado, as suas características bioquímicas diminuem a
possível degradação térmica ou digestiva, aumentando assim a probabilidade de
absorção sistémica e reacções alérgicas graves2-5.
Deste modo, a alergia alimentar múltipla a frutos e/ou vegetais pode ser
causada por sensibilização a um mesmo panalergénio como a LTP, sendo designada
por síndrome de LTP2. Dos frutos da família das rosáceas, o pêssego é
responsável pela maioria das reacções alérgicas, sendo a causa mais comum de
alergia alimentar a frutos em Portugal, Espanha e Itália, principalmente devido
à sensibilização primária a LTP do pêssego (Pru p 3)3-5.
A alergia ao pêssego é uma alergia alimentar predominante, persistente ao longo
da vida e potencialmente grave, em que a evicção nem sempre é fácil, uma vez
que a LTP (Pru< p 3) está presente numa grande variedade de alimentos
processados, podendo levar à ocorrência de reações acidentais graves. A maioria
destes doentes, para além do pêssego, são também alérgicos a outros frutos
frescos, secos e/ou vegetais.
Dada a sua gravidade, persistência e dificuldade na manutenção da dieta de
exclusão, com impacto económico, familiar e social, este tipo de alergia tem
sido considerada um alvo importante para imunoterapia (IT) a alergénios6-8.
Os autores pretendem demonstrar a eficácia e segurança da imunoterapia
sublingual (SLIT) com pêssego (Prup 3) em doentes com reações sistémicas
associadas à ingestão de pêssego, através da avaliação de parâmetros clínicos e
imunológicos ao longo de 12 meses.
MATERIAL E MÉTODOS
População
Foram incluídos 8 doentes (7 do sexo feminino e 1 do sexo masculino, com uma
média de idades de 25,6 anos; idades compreendidas entre 19 e 41 anos) com
história de dois ou mais episódios sugestivos e reprodutíveis de reações
adversas imediatas após a ingestão de pêssego.
Avaliação clínica e laboratorial
A avaliação clínica incluiu um questionário padronizado (idade, sexo, tipo de
reação com pêssego; alergia a outros alimentos ou látex; antecedentes pessoais
e familiares) e uma história clínica completa para caracterização das reações
relatadas, induzidas por pêssego (síndrome de alergia oral, urticária
generalizada e/ou angioedema, queixas respiratórias e gastrointestinais e
anafilaxia).
Todos os doentes foram submetidos a testes cutâneos por picada (TCP) com
extrato comercial (Bial -Aristegui®, Bilbao, Espanha) de polpa e pele de
pêssego, polpa e pele de maçã, pera, ameixa, cereja, alperce, damasco, morango,
amêndoa, kiwi, banana, abacate, manga, laranja, amendoim, avelã, nozes,
castanha, pinhão, aipo, melão, ervilha, cenoura, ananás, tomate, soja, látex,
ácaros do pó doméstico (Dermatophagoides pteronyssinus, Dermatophagoides
farinae, Euroglyphus maynei, Blomia tropicalis), ácaros de armazenamento
(Lepidoglyphus destructor), Alternaria alternata, Aspergillus fumigatuse
mistura de pólenes de gramíneas, Phleum pratense, Parietaria judaica, Artemisia
vulgaris, Olea europea, Plantago lanceolata, Betula verrucosa, Platanus
acerifoliae Chenopodiumalbum,LTP de pêssego (Pru p 3) e profilina e palmeira
(Pho d 2). Foram, também, realizados TCP com extrato (Alk -Abelló, Madrid,
Espanha) de pêssego (pele e polpa) e de vacina SLIT -Prup 3na concentração de
50 μg/ml antes do início (T0) e ao fim de 1 mês (T1), 6 meses (T6) e 12 meses
(T12) de vacina.
Todos os 8 doentes foram submetidos a prova de provocação oral em dupla-
ocultação, contra-placebo (PPODOCP) com polpa de pêssego, antes do início do
estudo (T0), excepto se história de anafilaxia, e após 12 meses de SLIT-Pru p 3
(T12), no Hospital de Dia de Imunoalergologia, fora da estação polínica e de
acordo com as recomendações da EAACI9.
Foi colhida uma amostra de sangue periférico a todos os doentes, em T0, T1, T6
e T12, para doseamento sérico de anticorpos IgE e IgG4 específicos para pêssego
e Prup 3e teste de ativação dos basófilos (TAB).
Na avaliação inicial destes doentes foram determinadas as concentrações séricas
dos anticorpos específicos IgE para pêssego, rPrup1, rPru p3, rPru p4, e níveis
séricos de IgE e IgG4 específicos para pêssego e Prup 3em T0, T1, T6 e T12 por
ImmunoCAP 100 (Thermofisher, Uppsala, Suécia) de acordo com as instruções do
fabricante. O teste foi considerado positivo para valores superiores a 0,10
kUA/L. Em todos os doentes realizou -se teste da ativação de basófilos com
avaliação da expressão de CD63, quantificada por citometria de fluxo ' Flow2
CAST® (Bühlmann, Suíça), de acordo com as instruções do fabricante. 50μl de
sangue total heparinizado foi incubado com IL-3 e extrato estandardizado de
alergénio ' Prup 3do pêssego em 3 concentrações: 0,05, 0,5 e 5μg/ml, em T0, T1,
T6 e T12. A aquisição foi realizada num citómetro FACSCalibur (BD -Biosciences,
São José, EUA), nas duas horas após finalização do procedimento técnico, sendo
os resultados considerados positivos com uma percentagem de activação superior
a 5% e índice de estimulação igual ou superior a dois.
Protocolo da Imunoterapia (SLIT ' Pru p 3)
A vacina foi administrada por via sublingual (via sublingual 2 minutos '
cospir) e inclui 4 concentrações 0,05, 0,5, 5 e 50 μg/ ml de Pru p 3
(Bioportugal®, ALK -Abelló, S.A Madrid, Espanha). A reconstituição do extracto
da SLIT com Pru p 3foi realizada em concentrações sucessivas a partir de uma
concentração inicial de 50μg/ml, de acordo com as instruções do fabricante.
O protocolo de dessensibilização da imunoterapia sublingual com extrato de
pêssego (Pru p 3) é constituído por:
' Fase de indução ou fase rápida, durante 4 dias, em Hospital de Dia de
Imunoalergologia, com doses crescentes (Tabela_1);
' Fase manutenção,a partir do 5.º dia durante 3 anos, em ambulatório, 5 gotas/
dia do frasco 4 (10 μg/dia, 7x/semana).
Foram entregues aos doentes diários clínicos, para registo de qualquer evento
adverso. Durante a fase de manutenção, os doentes foram observados mensalmente
no Serviço de Imunoalergologia, onde devolviam os diários clínicos e os frascos
vazios da SLIT, para monotorização da segurança e adesão à imunoterapia.
Análise estatística
Foi utilizado o softwareGraphPad Prism versão 5.00 (Graphpad Software Inc.,
SanDiego, EUA). Na comparação entre dois grupos foi usado o teste tde Student e
considerados como significativos valores de p<0,05.
O estudo foi realizado com a aprovação da Comissão de Ética hospitalar e o
consentimento informado dos doentes.
RESULTADOS
População de estudo
Aquando da análise descrita, oito doentes, tinham completado pelo menos 12
meses de imunoterapia com SLIT-Prup 3. Seis (62,5%) doentes apresentavam
sintomas com outros alimentos relacionados com síndrome de LTP, nomeadamente
frutos secos, sementes e kiwi. Ausência de história de alergia a alimentos de
outros grupos.
TCP para extrato de pêssego pele e polpa e de Pru p 3 (Figura_1)
Na população estudada, o diâmetro médio da pápula no TCP diminuiu
significativamente (p=0,0039) de uma média de 8±2 mm (VM±DP) com pele e 5±1 mm
com polpa de pêssego em T0, para 4±2 mm e 0,6±1mm, respetivamente ao fim de 12
meses de SLIT -Pru p 3. Nos TCP com Pru p 3 observou-se, igualmente, uma
diminuição significativa (p=0,0078) do diâmetro médio das pápulas duma média de
11±5 mm em T0 para 7± 2 mm em T12.
Quantificação de IgE e IgG4 específica para extrato de pêssego e Pru p 3
(Figura_2 e Figura_3)
Na população estudada, ao fim de 12 meses de SLIT-Prup 3, verificou -se uma
diminuição significativa de IgE específica para pêssego (p=0,0122) e Pru p 3
(p<0,001), e um aumento significativo de IgG4 específica para pêssego (p<0,001)
e Pru p 3 (p<0.001) quando comparadas com o valor basal.
Teste de activação dos basófilos (Figura_4)
Ao longo dos 12 meses de imunoterapia com SLIT'Pru p 3, observou -se uma
diminuição significativa da expressão de CD63 em basófilos activados, nas 3
concentrações de Pru p 3(0,05, 0,5 e 5 μg/ml) e entre os diferentes tempos.
Esta diminuição foi significativa desde o primeiro mês de imunoterapia, com
maior impacto na concentração de 5 μg/ml de Pru p 3(p<0,001).
Segurança
Durante os 12 meses de SLIT-Pru p 3, todos os doentes mostraram uma boa adesão
à terapêutica, cumprindo integralmente o protocolo definido. Em 50% dos doentes
e durante a fase de indução, não ocorreram reações sistémicas, tendo -se
registado apenas reacções locais ligeiras (prurido orofaríngeo), de resolução
espontânea, sem necessidade de medicação.
DISCUSSÃO
Nos últimos anos, a alergia aos frutos frescos tem sido alvo de investigação
crescente dada a sua elevada prevalência, potencial gravidade e persistência1.
A presença oculta de Prup 3em produtos alimentares manufacturados pode
desencadear reacções acidentais graves, incluindo anafilaxia2-5. Neste
contexto, a alergia ao pêssego tem sido considerada como um alvo na procura de
um tratamento eficaz6-8.
Este é o primeiro estudo de investigação clínica sobre imunoterapia para
alergia ao pêssego, numa população de 8 doentes adultos, publicado em Portugal.
Neste estudo, os autores pretenderam avaliar se a dose e o esquema utilizados
na imunoterapia com Pru p 3administrada por via sublingual teria eficácia, sem
comprometer a segurança do tratamento. Foi estudada uma população de doentes
portugueses com reações sistémicas, incluindo anafilaxia em 62,5% dos casos, de
alergia ao pêssego. Verificou-se uma diminuição significativa da reatividade
cutânea com os 3 extratos ' pele e polpa de pêssego e Prup 3; aumento
significativo de IgG4; diminuição do limiar de ativação dos basófilos
circulantes, traduzido pela diminuição significativa da expressão de CD63.
Paralelamente, observaram'se apenas reações locais ligeiras de prurido
orofaríngeo, em 50% dos doentes e exclusivamente na fase de indução.
A Imunoterapia a alergénios ou vacina anti-alérgica é o único tratamento capaz
de atuar sobre a causa e não apenas sobre os sintomas da alergia, modelando a
resposta imunitária com capacidade de alterar a história natural da doença
alérgica10,11. Está já bem demonstrado que suprime a inflamação alérgica
mediada por células Th2 com aumento da produção de IgG específica do antigénio,
provavelmente por indução de células T reguladoras, desvio imune,Th2 para Th1,
e / ou apoptose de células efetoras de memória Th210,11.
Para além dos mecanismos celulares referidos, a eficácia da SLIT resulta,
primordialmente, da interação do alérgeno com as células de Langerhans na
mucosa oral, cruciais na indução de tolerância aos antígenos, levando à
diminuição da resposta alérgica12-13.
Os benefícios a longo prazo da SLIT, em doses ótimas, estão já bem
demonstrados. Mesmo após descontinuação, durante 1 e 2 anos, foi evidente a
indução de remissão da doença, incluindo modificação do seu perfil, aspetos
consistentes com a indução de tolerância específica ao alergénio12,13.
Além disso, os dados obtidos a partir de biópsias indicam claramente que a
fisiopatologia da mucosa bucal desempenha um papel fundamental na indução de
tolerância ao alérgeno administrado por via sublingual, em indivíduos, tratados
com SLIT em altas doses 12,13.
Os primeiros relatos publicados de SLIT para alergia alimentar surgiram há mais
de uma década atrás, em 2003, quando um caso de sucesso de SLIT para alergia a
kiwi foi descrito numa doente com uma história de múltiplas reações
anafiláticas, mantendo-se a eficácia da dessensibilização mesmo após suspensão
da SLIT14,15. Seguiram-se diversos protocolos sublinguais ou orais-sublinguais
não estandardizados na alergia ao leite, ovo e amendoim e um estudo duplo-cego
controlado com placebo de SLIT com avelã16 -19.
Aquando da apresentação deste estudo, existiam na literatura apenas 3 artigos
publicados (duas séries do mesmo grupo de trabalho espanhol e 1 caso clínico
português) sobre a SLIT com extrato de pêssego, usando Pru p 3nativo. Nestes
estudos, de curta duração (máximo de 6 meses nas duas séries de doentes) ou
limitado a um doente (no caso português com 12 meses de avaliação), os autores
demonstraram eficácia clínica de acordo com a avaliação de parâmetros
imunológicos, referindo aumento da tolerância à ingestão de pêssego6-8.
Em Portugal, existe apenas um caso reportado, em 2010, por Pereira C et al6 que
descreve um caso clinico de uma doente de 40 anos que, desde os 36 anos, tinha
reações sistémicas com múltiplos frutos/vegetais, nomeadamente frutos frescos
da família das rosáceas, frutos secos, legumes, cereais e especiarias. Foi
submetida a uma SLIT (BialAristegui®) com extrato nativo de Pru p 3(40μg/ml),
cujo protocolo incluía uma fase rápida ao longo de 1 dia, iniciada por 1 gota
até 5 gotas e uma fase de manutenção que consistia em 5 gotas/dia, 5 dias/
semana (dose cumulativa 200μg de Prup 3por mês). Os resultados descritos
referem-se a um período de 12 meses, sendo que 4 meses após o inicio do
tratamento foi observada uma diminuição da reactividade cutânea, sem alterações
relevantes nos valores séricos de IgE, IgG, IgG1 and IgG4 específicas para Pru
p 3, e PPODOCP com pêssego mascarado negativa. Nesta fase a doente já não tinha
grandes restrições alimentares, com exceção de nozes e pimenta.
Em 2009 e 2010, foram publicados, dois estudos, randomizados, duplo -cego,
controlados por placebo com SLIT de pêssego (Pru p 3) realizados conjuntamente
em dois Centros de Alergologia em Espanha7,8. Avaliaram os pârametros de
segurança e eficácia clínica, através de realização de PPO em dupla-ocultação
controlada por placebo, TCP, e doseamento de IgE e IgG4. Em comparação com o
grupo placebo, os doentes alérgicos ao pêssego submetidos a tratamento activo
com SLIT-Prup 3durante 6 meses, toleraram uma quantidade de pêssego tripla da
inicial, apenas com reções locais. Paralelamente, os autores verificaram uma
diminuição da reactividade cutânea para pêssego e aumento significativo de
sIgG4 mas sem alterações significativas da sIgE, incluindo para outros
alergénos purificados (rMal d 1, rMal d 4e nArt v 3) e sem aparecimento de
novas sensibilizações.
O nosso estudo reporta um período superior ao descrito, 12 meses, em que foi
possível documentar em paralelo, uma elevada segurança da vacina, e alterações
imunológicas sustentadas que podem, eventualmente, antever uma eficácia a longo
-prazo, mesmo após a descontinuação da imunoterapia. Ao fim de 12 meses de
imunoterapia, observámos alterações imunológicas idênticas às descritas na
literatura, nomeadamente diminuição significativa da reatividade cutânea,
aumento significativo dos anticorpos específicos protectores da resposta
alérgica ' IgG4 e diminuição significativa da resposta IgE específica, não só
para Prup 3mas também para pêssego.
Na literatura até 2013, não existiam publicações referentes à avaliação de
activação de basófilos na SLIT com pêssego. No nosso estudo, observámos uma
diminuição significativa da percentagem de basófilos ativados, quantificada
pela expressão de CD63 após estimulação com Pru p 3 nas 3 concentrações
utilizadas, logo a partir do primeiro mês de tratamento, sugerindo uma elevada
sensibilidade deste método na avaliação da eficácia da SLIT com Prup 3.
Por outro lado, observámos apenas reacções locais ligeiras de resolução
espontânea em 50% dos doentes, percentagem inferior à dos estudos publicados
(98,8%), não ocorrendo nenhuma reação sistémica, incluindo nos doentes com
história de anafilaxia.
CONCLUSÕES
Nesta avaliação inicial, a SLIT com Prup 3parece ser uma opção terapêutica
promissora, segura, capaz de modificar a reatividade clínica, tendo sido bem
tolerada em doentes com alergia grave ao pêssego.