Caso hematológico
Criança do sexo masculino, seis anos de idade, sem antecedentes pessoais ou
familiares de patologia hematológica, realizou estudo pré-operatório de rotina
para intervenção cirúrgica programada (adeno-amigdalectomia), que não sugeriu
coagulopatia, tendo o procedimento decorrido sem intercorrências. Doze dias
após a cirurgia ocorreu uma hemorragia abundante, resolvida com tamponamento no
hospital. O estudo analítico efectuado nesta altura demonstrava a presença de
anemia ' Hemoglobina (Hb) 7.8 g/dL e Hematócrito (Htc) 22.1% para valores pré-
operatórios de 12.5 g/dL e 36.8%, respectivamente. Foi também reavaliada a
hemostase primária (PFA-100) e secundária (estudo da coagulação) com resultados
normais.
Ao terceiro dia após a hemorragia era já objectivada uma recuperação
hematológica espontânea, com Hb 8.4 g/dL, RDW 14.7% e reticulocitose (174300/
μL). O conteúdo de hemoglobina dos reticulócitos (CHr) era de 30.3 pg
(reticulócitos normocrómicos) (Figura 1).
Figura 1 ' Histograma demonstrando a presença de uma população eritrocitária
madura dentro dos parâmetros da normalidade e reticulócitos normocrómicos (30.3
pg).
Perante a melhoria clínica e a ausência de episódios adicionais de hemorragia,
a criança teve alta para o domicílio sem qualquer tipo de medicação, com
marcação de consulta após três semanas para reavaliação.
Vinte e quatro dias após a hemorragia foi observada na consulta externa. Os
pais negaram novos episódios de sangramento mas referiram sonolência excessiva
e cansaço fácil. Ao exame objectivo apresentava descoloração da pele e mucosas.
Os exames efectuados demonstraram um novo agravamento da anemia (Hb 7.8 g/dL,
Htc 26.4%) com índices eritrocitários reveladores de hipocromia e microcitose
ligeiras (VGM 73.9 fL, HGM 21.8 pg), queda na contagem de reticulócitos (73300/
μL) e aumento do RDW (17.5%).
No histograma eram claramente visíveis duas populações de eritrócitos, uma
normocítica e normocrómica e outra microcítica e hipocrómica. O CHr era de 19.3
pg (reticulócitos hipocrómicos) (Figura 2).
Figura 2 ' Histograma revelando duas populações com diferentes parâmetros
eritrocitários e reticulócitos hipocrómicos (19.3 pg).
QUAL A CAUSA DA ANEMIA?
Uma hemorragia oculta?
Ferropenia?
Falência medular?
DISCUSSÃO
A hemorragia tardia pós adeno-amigdalectomia é uma complicação rara mas
potencialmente grave, mesmo em crianças sem patologia hematológica prévia(1,2).
O facto de ocorrer no domicílio, eventualmente longe duma urgência hospitalar,
potencia o risco que lhe é inerente. O sangramento massivo obriga por vezes à
realização de hemostase cirúrgica no bloco operatório e à transfusão de
concentrado eritrocitário(3). Após a estabilização na fase aguda, é necessária
uma vigilância atenta e activa para garantir que a criança com anemia por
hemorragia recupere os valores hematológicos de base. Paradoxalmente, aquelas
com quadro clínico menos dramático e que por isso não realizam transfusão de
concentrado eritrocitário são as que maior risco correm de iniciar
secundariamente uma eritropoiese ferripriva.
Foi o caso da criança supra-citada, em que o rápido controlo da hemorragia com
estabilização hemodinâmica sem necessidade de suporte transfusional, aliado a
uma aparente melhoria precoce (aumento da hemoglobina com reticulocitose
normocrómica) levaram a uma enganadora noção de resolução clínica.
Um exercício de cálculo permite concluir ter-se tratado de uma hemorragia
importante:
Massa eritrocitária (mL) = Peso (Kg) x 75 x Htc
Sabendo que esta criança pesava 22 Kg e tendo acesso ao valor de Htc antes e
após a hemorragia, é possível calcular a massa eritrocitária perdida, que neste
caso se cifrou em 242 mL, ou seja, 40% do total. A esta perda de massa
eritrocitária substancial está sempre associada uma perda de ferro. Assim,
estimando as reservas de ferro em 330 mg (15 mg/Kg), e equivalendo cada
mililitro de massa eritrocitária a 1.1 mg de ferro, calcula-se que a hemorragia
foi responsável pela perda de 266 mg de ferro, correspondente a 81% das
reservas.
Neste caso particular, na ausência de reposição por transfusão de sangue,
assim como de suplementação medicamentosa, a resposta positiva inicial foi
travada pelo esgotamento das reservas de ferro do organismo, ressurgindo assim
a anemia, com a emergência aguda de uma nova população de eritrócitos
microcíticos e hipocrómicos claramente visível no histograma. Os parâmetros
bioquímicos do ferro efectuados nessa altura apoiaram o diagnóstico, tendo sido
obtidos valores diminuídos do ferro sérico (3.3 μg/dL) e da ferritina (1.5 μg/
L).
Após o diagnóstico de anemia ferripriva a criança iniciou tratamento com ferro,
com boa tolerância e melhoria progressiva. À data de alta da consulta
apresentava Hb 12.6 g/dL, Htc 36.7%, parâmetros eritrocitários adequados e uma
ferritina de 105 μg/L (Figura 3).
Figura 3 ' Histogramas antes, durante e após tratamento com ferro. Uma análise
mais atenta demonstra que apenas oito dias após início da terapêutica, apesar
de ainda não ser visível qualquer modificação da população eritrocitária madura,
estava já presente um grande desvio dos reticulócitos no sentido da
normocromia, sendo assim possível antecipar a boa resposta terapêutica que se
veio posteriormente a verificar.
Face a este caso clínico, os autores concluem da importância da suplementação
sistemática com ferro de todas as crianças com anemia secundária a hemorragia
pós adeno-amigdalectomia que não tenham sido transfundidas, independentemente
da sua evolução inicial, de modo a não comprometer a normal recuperação
hematológica.