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EuPTCVHe0872-07542012000100011

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variedadeEu
ano2012
fonteScielo

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Febre de etiologia indeterminada: encruzilhada de diagnósticos

INTRODUÇÃO Febre de etiologia indeterminada (FEI) define-se, em idade pediátrica, como uma febre documentada por um profissional de saúde, sem causa identificada, e que persiste após três semanas de investigação em ambulatório ou uma semana em regime de internamento. A causa pode ser infecciosa, reumatológica e/ ou imunológica, neoplásica, farmacológica, heredo-familiar, entre outras(1,2).

Para o diagnóstico diferencial é importante ter em conta o padrão da febre e sintomas associados, antecedentes patológicos, contexto epidemiológico e um exame objectivo pormenorizado, que os resultados dos exames complementares podem revelar-se inespecíficos.

CASO CLÍNICO Criança do sexo masculino e raça caucasiana, quatro anos de idade, com crescimento e desenvolvimento psicomotor normais, plano de imunizações actualizado e antecedentes patológicos irrelevantes. História de consanguinidade parental (pais primos em primeiro grau), sem doenças heredo- familiares conhecidas. Agregado familiar nuclear (pais e duas irmãs), habitando casa própria em zona urbana, com água canalizada e saneamento básico.

Recorreu ao Serviço de Urgência (SU) por um quadro de febre com quatro dias de evolução (picos febris de três em três horas com temperatura axilar máxima de 40,2ºC), cervicalgia bilateral e coxalgia à esquerda. Foi referido episódio semelhante ocorrido cerca de um mês antes, resolvido ao fim de 48 horas, num contexto de amigdalite aguda medicada com penicilina. Negava traumatismos, ingestão de medicamentos ou alimentos suspeitos, alergias, contacto com pessoas doentes ou animais e viagens recentes. Ao exame objectivo apresentava limitação dolorosa da mobilidade do pescoço e marcha com claudicação à esquerda, sem outras alterações. Os exames realizados detectaram anemia (Hb 9,5 g/dL), microcítica e normocrómica, leucocitose (15900/μL) com neutrofilia (77,9%), plaquetas 349000/μL e PCR aumentada (131,9 mg/L); análise sumária de urina tipo II e citoquímica do líquido cefalorraquidiano sem alterações; radiografia pulmonar com discreto infiltrado intersticial bilateral e estudo imagiológico dirigido inconclusivo (radiografia e TAC da coluna cervical e radiografias da bacia, joelhos, tornozelos e pés). Decidiu-se o internamento para esclarecimento etiológico.

Em internamento, a febre evoluiu com dois a três picos diários, de amplitude variável (38,5ºC-40ºC), predomínio vespertino e nocturno e irritabilidade associada. Manteve apetite conservado, sem vómitos ou diarreia, diurese normal, ausência de sintomas respiratórios e melhoria progressiva das queixas álgicas articulares. Foi-se evidenciando palidez muco-cutânea; exantema eritematoso maculo-papular no tronco, fugaz, evidente em pico febril; olhos encovados sem hiperémia conjuntival; lábios secos e fissurados e eritema da orofaringe, sem exsudados; e gânglios cervicais palpáveis bilateralmente, com 1 cm de maior diâmetro, indolores, de consistência elástica, não aderentes e sem sinais inflamatórios externos. A partir do terceiro dia de internamento (D7 febre) descreve-se um sopro cardíaco sistólico grau II/VI, mantendo auscultação pulmonar normal e exame abdominal sem alterações. Neste dia foi avaliado por Cardiologia Pediátrica, realizando ecocardiograma que não mostrou alterações. A marcha normalizou após D6 internamento (D10 febre), mantendo sempre normal mobilidade, activa e passiva, e ausência de edema ou outros sinais inflamatórios das articulações da bacia e dos membros superiores e inferiores.

Apresentava, de forma intermitente, posição preferencial da cabeça em rotação lateral direita, com rotação em bloco da cabeça e do tronco no olhar para a esquerda; sem recorrência após D13 internamento (D17 febre).

Manteve marcadores inflamatórios elevados, com valor máximo de plaquetas de 652000/uL, ferritina 784,70 ng/mL, VS 108 mm/1ªh e PCR 132,8 mg/L. O estudo em curso foi inconclusivo e incluiu rastreio infeccioso alargado, marcadores neoplásicos, estudo imunológico, ecocardiograma (D3 internamento), ecografia abdominal e das ancas e RMN cervical.

Em D13 de internamento (D17 febre), pela possibilidade de Doença de Kawasaki incompleta ou atípica (DKa), uma nova avaliação por Cardiologia Pediátrica evidenciou ectasia da artéria coronária esquerda (3 mm) com avaliação electrocardiográfica normal, tendo iniciado Imunoglobulina endovenosa IGIV (2g/ kg) e AAS. No entanto a febre persistiu em picos isolados matinais (39ºC-40ºC), pelo que dois dias depois foi avaliado em consulta de Reumatologia, invocando- se o diagnóstico mais provável de apresentação sistémica de Artrite Idiopática Juvenil (AIJs). Iniciou terapêutica com naproxeno e prednisolona, tendo alta em D24 internamento, após cinco dias de apirexia sustentada. Nos seis meses de seguimento seguintes apresentou alguns períodos intermitentes de febre, que cederam após a introdução de terapêutica com metotrexato, sem outras alterações clínicas, nomeadamente recaídas articulares ou uveíte. Nas análises de controlo mantém valores normais de hemoglobina, leucócitos, plaquetas, VS, PCR, ferritina e transaminases. Avaliações posteriores por Cardiologia (após uma, seis e dezasseis semanas da primeira avaliação) indicam a persistência da ectasia de 3 mm da artéria coronária esquerda, com paredes hiperecogénicas, estando medicado com AAS em dose anti-agregante plaquetar.

DISCUSSÃO Após a exclusão de outras causas de febre prolongada, pode tornar-se difícil o diagnóstico diferencial entre AIJs e DKa. Existem aspectos clínicos, laboratoriais e imagiológicos orientadores mas não suficientemente específicos.

A Artrite Idiopática Juvenil é a doença reumatológica mais comum na infância, representando a forma sistémica cerca de 10% dos casos(3). Esta forma tem um pico de incidência entre um e seis anos de idade, sem predominância de género.

Implica a presença de artrite em uma ou mais articulações, com febre precedente ou coincidente com pelo menos duas semanas de evolução, documentada como diária, em pelo menos três dias seguidos, e associada a um ou mais dos seguintes sinais: exantema eritematoso evanescente, não fixo; adenomegalias generalizadas, hepatomegalia e/ou esplenomegalia e serosite (pericardite, pleurite e/ou peritonite). A artrite não é migratória e não causa dor muito intensa, podendo afectar as articulações das mãos, punhos, joelhos, ancas, coluna cervical e temporomandibular, geralmente de forma simétrica. É diferente da artrite migratória e assimétrica da febre reumática e da dor óssea não articular, intensa e nocturna, da leucemia. O padrão febril é característico, com um ou dois picos diários, súbitos, de grande amplitude ( 39ºC), e que rapidamente retorna à linha basal ou abaixo desta ( 37ºC), de predomínio matinal ou vespertino. Inicialmente as crianças podem apresentar um «ar doente» em pico febril, não se verificando este padrão quotidiano da febre. O exantema, presente em 90% dos casos, é eritematoso, macular ou maculo-papular, frequentemente descrito como rosa-salmão; mas que facilmente passa despercebido que é evanescente ou transitório, com tendência a aparecer em pico febril; migratório; com uma distribuição linear no tronco e face interna dos braços e coxas, deste modo poupando as zonas expostas. A hipersensibilidade cutânea ao trauma superficial levando à recorrência do exantema é sugestiva (fenómeno de Koebner). O exantema pode também recorrer com o calor, por exemplo, um banho quente. Salienta-se que a clínica sistémica pode preceder a artrite em semanas ou meses. Os achados laboratoriais são inespecíficos (anemia, leucocitose com neutrofilia, trombocitose valores normais ou baixos de plaquetas devem orientar para outro diagnóstico -, elevação da VS, PCR e ferritina sérica). Anticorpos anti-nuclear (ANA) positivos encontram-se em 5-10% das crianças e o factor reumatóide (FR) é geralmente negativo. (2,3) A DKa, ao contrário da AIJ, é mais comum em crianças pequenas do que em crianças mais velhas. Caracteriza-se pela presença de febre com duração igual ou superior a cinco dias, associada a dois a três achados clássicos da Doença de Kawasaki(4,5). Poliartralgias, com ou sem sinais de artrite, podem ocorrer na fase aguda. Em adição, dados laboratoriais devem apontar para um quadro inflamatório sistémico (VS 40 mm/h e PCR 30 mg/L), associados a outros achados complementares como anemia, leucócitos > 15000/μL, plaquetas > 450000/ μL após sete dias de doença, TGP aumentada, albumina 3 g/dL e piúria estéril com > 10 leucócitos/campo. A suspeita de Dka deve conduzir a uma avaliação por Cardiologia. O ecocardiograma é essencial para avaliar a morfologia das artérias coronárias presença de ectasias ou aneurismas, número, localização, forma (saculares, fusiformes) e tamanho (pequenos <5mm e gigantes >8 mm), de sinais indirectos de arterite (hiperecogenecidade perivascular), e de trombos intravasculares ', função do ventrículo esquerdo, presença de insuficiência valvular mitral ou aórtica, dilatação da origem da aorta e sinais de pericardite com derrame pericárdico. Definem-se aneurismas coronários (AC), segundo a classificação utilizada pelo Ministério Japonês da Saúde, quando o diâmetro interno (DI) de um segmento coronário é 1,5 vezes superior ao DI do segmento coronário adjacente, quando é visível irregularidade do lúmen vascular (4,5) ou quando o DI coronário é >3 mm nas crianças com <5 anos ou >4 mm nas crianças ≥5 anos de idade(4-7). Segundo a American Heart Association(AHA), a sensibilidade diagnóstica pode ser aumentada usando-se como referência as curvas dos valores normais do diâmetro das artérias coronárias em relação com a área de superfície corporal, considerando que existe dilatação de um vaso se o seu diâmetro apresenta um SDS 2,5 em relação à média(4,5).

Neste doente, pela persistência da clínica e inespecificidade dos exames auxiliares de diagnóstico, foi necessário colocar a hipótese de DKa e pedir avaliação por Cardiologia. Esta não é uma forma atenuada de Doença de Kawasaki (DK) e tem o mesmo risco de originar o aparecimento de AC (15-25% dos casos não tratados), constituindo a causa mais importante de cardiopatia adquirida nos países desenvolvidos(4-6). O tratamento com IGIV nos primeiros dez dias diminui a incidência de AC para cerca de 2%. Embora os aneurismas raramente se formem antes deste período, alguma evidência de arterite pode estar presente numa fase aguda e conduzir à suspeita de DKa. No entanto este não é um achado 100% específico para DK, não devendo excluir outras condições. Estão descritos casos de dilatação transitória das artérias coronárias em doentes com AIJs(8). Estará associado ao aumento dos níveis circulantes de citoquinas pró-inflamatórias, especialmente a interleucina 6, que conduz a um estado de inflamação vascular sistémica. (8) Assim, em casos como o descrito, em que se identificou ectasia coronária (DI da artéria coronária esquerda com um SDS> 2,5 para a superfície corporal do doente de 0,7 m2) e mesmo com 10% de casos estimados de DK refractários à IGIV; uma febre que não cede, ou a persistência ou reaparecimento dos sinais de artrite (tipicamente auto-limitada na DK) devem alertar para a possibilidade de AIJs(1,8).

O diagnóstico diferencial entre Dka e AIJs é difícil; a presença de dilatação coronária na avaliação ecocardiográfica inicial não excluiu o diagnóstico de AIJs, que deve ser colocado quando existe persistência de artrite e refractariedade à terapêutica com IGIV.


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