Vigilância pré-natal e decisão do parto
Vigilância pré-natal e decisão do parto
Cristina Dias1
1Maternidade Júlio Dinis, CH Porto
INTRODUÇÃO
A Restrição de Crescimento Intra-Uterino (RCIU) é ainda nos dias de hoje um
problema complexo para o Obstetra e também para o Pediatra por se associar a
morbilidade e mortalidade fetal/neonatal. Paralelamente à morbilidade associada
à prematuridade e à asfixia intraparto associam-se outras complicações
neonatais, nomeadamente a lesão cerebral hipoxia com as respectivas sequelas,
a enterocolite necrotizante, a hemorragia pulmonar, a retinopatia, a
insuficiência renal, a trombocitopenia, a policitemia, a hipoglicemia, a
hipocalcemia, a hiperbilirrubinemia, a instabilidade térmica e a sépsis.
A longo prazo estão descritos outros efeitos adversos, incluindo uma pequena
diminuição no QI e uma redução nos scores das funções cognitivas, na memória
visual e na coordenação motora. Estes défices funcionais parecem ser diretamente
proporcionais ao grau de prematuridade e às alterações de fluxo das artérias
umbilical e cerebral média(20,21,22,23).
Estão descritos ainda efeitos deletérios da RCIU na saúde do adulto. Assim,
segundo a Teoria de Barker, estes indivíduos têm maior risco de mais tarde, já
na vida adulta, apresentarem alterações metabólicas-endócrinas que levam ao
aparecimento de hipertensão, dislipidemia, diabetes tipo 2 e doença isquémica
cardíaca(24,25).
DEFINIÇÃO
A definição mais comum de RCIU é um peso fetal estimado (PFE) abaixo do
percentil 10 para a idade gestacional. No entanto, esta definição não distingue
os fetos constitucionalmente pequenos (FCP) (70%) daqueles que têm realmente
restrição de crescimento (30%). Esta distinção é extremamente importante,
condicionando não só a atitude do obstetra como também o prognóstico fetal.
Assim, um feto constitucionalmente pequeno tem um bom prognóstico, ao contrário
do feto com RCIU. O prognóstico fetal está também relacionado com a causa do
RCIU. Assim, sempre que a causa se deve a fatores intrínsecos fetais, tais
como aneuploidias, malformações congénitas ou infeções congénitas, o
prognóstico é mais reservado porque a maioria das vezes não temos forma de
melhorar estas condições. Por outro lado, quando a causa se deve a insuficiência
útero-placentar o prognostico é melhor, mas, ainda assim associado a
complicações. Cerca de 5-10% de todas as gravidezes apresentam um feto com um
crescimento abaixo da normalidade. No entanto, este grupo de fetos não é
homogéneo e inclui essencialmente três tipos de fetos que correspondem a
diferentes grupos etiológicos e a diferentes prognósticos obrigando assim a
uma diferente atitude pelo obstetra:
Fetos com RCIU por insuficiência placentar. Correspondem a cerca de 50% dos
casos e associam-se a situações de pré eclampsia, visto que os processos
fisiopatológicos são comuns para ambas as patologias.
Fetos pequenos para a idade gestacional sem anomalias. São fetos
constitucionalmente pequenos, representando o espectro inferior do peso
esperado para este feto.
Fetos pequenos para a idade gestacional com anomalias. Tratam-se de fetos
pequenos por uma condição extrínseca à placenta.
A função do obstetra passa por identificar um crescimento abaixo do ideal,
determinar a causa e severidade do mesmo, conferenciar com neonatologistas e
com uma monitorização fetal apertada, selecionar o timmingideal de
nascimento e via de parto mais apropriada para este feto.
Assim, para um correcto diagnóstico e orientação temos de conjugar as seguintes
variáveis: ecomorfologia detalhada, biometria para determinação do peso fetal,
estudo anatómico fetal, avaliação do índice de líquido amniótico, fluxometria
doppler da artéria umbilical, artéria cerebral media, ductos venoso e veia
umbilical.
FISIOPATOLOGIA
A fisiopatologia do RCIU mais aceite na actualidade é a vasoconstrição crónica
das artérias espiraladas devido à invasão trofoblástica inadequada. Nas fases
iniciais desta situação patológica, o feto adapta-se diminuindo a velocidade
de crescimento e captando de uma maneira mais eficiente o oxigénio
(desenvolvendo nomeadamente policitemia). No entanto, se a situação se mantem,
o feto entra numa fase de hipoxia que se pode prolongar durante semanas.
Abaixo de determinado nível de saturação de oxigénio são activados uma serie de
quimiorreceptores que poem em marcha todo um conjunto de alterações
hemodinâmicas que por sua vez têm como principal função preservar o aporte de
oxigénio aos órgãos nobres; é a chamada centralização. São sinais desta
situação:
A vasodilatação cerebral ou brain sparing.
O oligohidramnios que se observa nos fetos com insuficiência placentar.
A redistribuição cardíaca, que consiste na instalação de uma situação que não é
fisiológica. Ou seja, o ventrículo esquerdo vai irrigar um território com baixa
resistência que é o cérebro, enquanto que o direito vai irrigar um território
de progressivamente alta resistência, a placenta.
Se a situação persiste, o feto poe em marcha mecanismos de obtenção de energia
por via anaeróbia, a partir da glicose, que levam à acidose. Entre os órgãos
mais afectados nesta fase está o coração fetal, visto que as fibras do miocárdio
sofrem fenómenos de necrose e são substituídos por tecido fibroso, o que, por
sua vez vai induzir uma alteração da função diastólica. Se esta situação
persiste a morte fetal ocorre em horas.
CONDUTA OBSTETRICA
Diagnóstico
A monitorização fetal óptima dos fetos com RCIU ainda não foi estabelecida.
Uma avaliação ecográfica com biometrias seriadas, perfil biofísico fetal, doppler
arterial e venoso, estudo citogenetico para despiste de cromossomopatias e um
estudo analítico para despiste de infecção fetal são as armas actualmente
existentes à nossa disposição. O que nos propomos é tentar identificar os fetos
que estão em risco in útero e que poderão beneficiar de um parto pré termo.
Este diagnóstico atempado é de grande importância, inclusive em termos de saúde
pública, isto porque trabalhos recentes têm demonstrado que o risco de
complicações perinatais aumenta até 4 vezes nas gravidezes em que não é
detetado a RCIU durante a gravidez.
O diagnóstico passa então por:
Correcta anamnese tendo como objectivo a identificação dos factores de risco.
Apesar de estes serem múltiplos e nem sempre bem definidos, podemos identificar
determinadas situações associadas a um aumento do risco de RCIU, tais como:
-Historia previa de RCIU ou morte perinatal-Fatores ambientais, tais como
álcool, tabaco e outras drogas
-Infecções
-Doenças maternas como trombofilias, obesidade, diabetes HTA e doenças renais e
vasculares.
Exame físico através da palpação abdominal e determinação da altura uterina
têm uma sensibilidade muito baixa, cerca de 30%.
Ecografia obstétrica é o método standard de avaliação do crescimento fetal.
Requer no entanto uma correcta determinação da idade gestacional com ecografia
precoce.
Distinção entre RCIU e FCP
A distinção entre estes 2 grupos de fetos é essencial do ponto de vista clínico
visto que ambos vão apresentar grandes diferenças no prognóstico, evolução e
orientação ante natal. Os parâmetros utilizados para diferenciar estes dois
grupos são:
Os fetos com um PFE inferior ao percentil 3 são considerados como sofrendo
alterações severas do crescimento fetal, pelo que são considerados, na maioria
dos protocolos, como RCIU independentemente de outros critérios.
A fluxometria da artéria umbilical (AU) é o parâmetro essencial para
distinguir entre RCIU e FCP, ou, por outras palavras entre risco e ausência de
risco. Os motivos pelos quais a maioria dos protocolos utiliza este parâmetro
para diferenciar estes dois grupos resumem-se a quatro pontos:
-Todos os ensaios randomizados que demonstraram o benefício do Doppler nos
fetos com suspeita de RCIU realizaram-se a nível da artéria umbilical.
-Na presença de um fluxo umbilical normal, a ocorrência de mortalidade perinatal
é um evento excepcional.
-Um fluxo anormal na AU é um bom estratificador do risco de resultados perinatais
adversos e alterações do desenvolvimento psicomotor.
-Existe evidência de que fetos pequenos com Doppler da AU normal não requerem
habitualmente internamento hospitalar e não necessitam de controle intensivo.
O crescimento fetal é diretamente influenciado por fatores individuais, tendo
cada feto o seu próprio potencial de crescimento. Assim, entre estas variáveis
estão a raça, a idade, a paridade, o peso e altura materna, o sexo do feto e o
número de fetos. Existe uma ampla e crescente evidencia dos benefícios de
ajustar as curvas de crescimento às características individuais. Estes valores
ajustados reduzem o número de falsos diagnósticos de RCIU.
Profilaxia e Tratamento
Apesar da maioria dos estudos concluírem que o tratamento com ácido
acetilsalicílico diminui o risco de desenvolvimento de pré-eclampsia, não se
demonstrou que diminui a incidência de baixo peso ao nascer, nem de RCIU.
Ensaiaram-se múltiplos tratamentos para o RCIU, entre eles o repouso absoluto,
hiperoxigenação materna, β-mimeticos, heparina de baixo peso molecular, dadores
de óxido nítrico, suplementos nutricionais e expansores do plasma, no entanto
nenhum deles demonstrou um efeito benéfico pelo que não estão recomendados.
Controle do bem-estar fetal
O controle do bem-estar fetal tem como objectivo decidir qual é o momento otimo
para finalizar a gestação, que será aquele em que os riscos de continuar a
gravidez deixando o feto num ambiente hostil serão maiores que os riscos da
prematuridade. A integração das diferentes provas de bem-estar fetal parece ser
a estratégia mais adequada, visto que se complementam. Estas dividem-se em
marcadores crónicos e agudos:
Crónicos - Alteram-se nas fases de hipoxemia fetal e podem persistir alterados
durante semanas.
Agudos - Alteram-se na fase de acidose e costuma preceder a morte fetal em
horas a dias.
Marcadores crónicos
Artéria umbilical' As alterações a nível da artéria umbilical são secundárias
ao processo de vasoconstrição que ocorre nas artérias espiraladas terciários
(26). O fluxo ao nível da artéria umbilical apresenta uma resistência crescente
ao longo de deterioração fetal, pelo que em estadios avançados se observa
ausência e posteriormente inversão do fl uxo diastólico. Cerca de 80% dos fetos
apresentam fluxo diastólico nulo duas semanas antes do feto mostrar sinais de
acidose (27). Por outro lado outros estudos mostram que 40% dos fetos com
acidose apresentam fluxo diastólico invertido(27). Este aparece cerca de uma
semana antes dos marcadores agudos pelo que é considerado por alguns autores
como um marcador subagudo (27) . Ainda que a associação entre fluxo invertido
com acidose e maus resultados perinatais esteja amplamente descrita (com
sensibilidades e especificidades de cerca de 60%), grande parte desta associação
explica-se pela alteração concomitante dos marcadores agudos e pela
prematuridade extrema. No entanto, uma atitude expectante num feto com fluxo
diastólico invertido e ausência de marcadores de sofrimento fetal agudo é
controverso(28).
Artéria cerebral media (ACM) ' As alterações a nível da ACM refletem o que foi
já definido como vasodilatação cerebral. O aumento do diâmetro vascular reduz a
impedância e condiciona um aumento das velocidades diastólicas, com redução
dos Índices de Pulsatilidade (IP) das artérias cerebrais. O seguimento do
Doppler da ACM durante o processo de deterioração fetal demonstra que este
parâmetro altera-se de maneira progressiva sem se observar nenhum ponto de
inflexão (29). Em 80% dos fetos observa-se vasodilatação cerebral duas semanas
antes da alteração dos marcadores agudos (27). Neste momento é objeto de debate
e investigação se a vaso-dilatação cerebral é unicamente um fenómeno adaptativo
do feto sem repercussões posteriores no seu desenvolvimento psicomotor. Existem
resultados controversos, porem parece observar-se que os fetos que apresentaram
esta alteração manifestam posteriormente um desenvolvimento psicomotor inferior
ao normal (30).
Avaliação do liquido amniótico (LA)' O mecanismo fisiopatológico da existência
de oligohidramnios nos casos de RCIU não está claramente definido, podendo ser
em parte explicado pela diminuição da perfusão renal em situações de
centralização hemodinâmica. A quantidade de LA em fetos com RCIU vai
diminuindo progressivamente(29). Em 20% dos casos observamos oligoamnios uma
semana antes da alteração dos marca-dores agudos (31). Um indice de líquido
amniótico inferior a 5cm associa-se a indice de Apgar patológico aos 5m, no
entanto não se conseguiu demonstrar associação com acidose (32).
Marcadores agudos
Veias precordiais ' Perante a persistência de hipoxia crónica desenvolve-se
uma situação de acidose metabolica que provoca a destruição das fibras
miocardicas. Esta situação implica uma diminuição de distensibilidade do
miocárdio com aumento das pressões telediastolicas, portanto, uma maior
dificuldade no retorno venoso ao coração direito. A associação entre as
alterações a nível dos fluxos venosos e os resultados perinatais adversos é
clara e independente da idade gestacional (33). A sensibilidade e
especificidade para a mortalidade perinatal é cerca de 70% e 50% respectivamente
(33).
Cardiotocografia (CTG) ' Em situações graves de hipoxemia, estímulos
provenientes de quimio e barorreceptores periféricos que geram estímulos
parasimpaticos que provocam desacelerações no registo cardiotocografico. Para
além disso, em estadios avançados de compromisso fetal, o efeito da acidose
sobre o SNC e o efeito direto sobre a atividade cardíaca favorecem o
aparecimento de desacelerações e a perda de variabilidade. A CTG tem
capacidade para detetar fetos doentes em cerca de 90% dos casos, porem com uma
especificidade muito baixa (cerca de 40%), devendo assim complementar-se com a
informação do perfil biofísico. Apesar de CTG apresentar traçados não reactivos
em fases muito iniciais do processo de deterioração do feto com RCIU (31), a
perda da variabilidade precoce ocorre só uns dias antes da descompensação
fetal, coincidindo com alterações dos fluxos venosos (29), sugerindo as
alterações mais agudas do atingimento fetal que ocorrem na fase terminal da
deterioração fetal.
Perfil Biofísico Fetal (PBF) ' Com a persistência da hipoxia produz-se uma
diminuição progressiva da quantidade de líquido amniótico, sendo este um
parâmetro do perfil biofísico que reflete cronicidade. Em estadios avançados de
hipoxia um outro fenómeno que se observa é o desaparecimento dos movimentos
respiratórios. Finalmente quando aparece a acidose há atingimento do tónus e
dos movimentos grosseiros. A associação entre o perfil biofísico e a hipoxia é
pobre ao contrário da correlação com a acidose que parece aceitável, sendo que
os parâmetros melhor correlacionados são o tónus e os movimentos grosseiros. A
associação entre PBF alterado e a mortalidade perinatal foi confirmado
unicamente em estudos observacionais, ainda que
o número de casos confira validade aceitável. Apesar do PBF apresentar uma
sensibilidade muito boa tanto para a mortalidade como para a morbilidade
perinatal, a sua eficácia clínica vê-se limitada pela taxa de falsos positivos
que ronda os 50%, sendo a CTG e o VLA de avaliação mais subjetiva e por
consequência os parâmetros individuais que mais agravam a especificidade.
PROPOSTA DE PROTOCOLO DE ACTUAÇÃO
Diagnóstico provável: FETO CONSTITUCIONALMENTE PEQUENO
Imagem 1
Diagnóstico provável:RESTRIÇÃO DE CRESCIMENTO INTRA-UTERINO
Se:
PFE < P5
ou
PFE ≥ P5 com ILA < 5 ou > 25 cm e/ou IP Artéria Umbilical > P95
Nestes casos propôr internamento onde devem ser efectuados/as:
Estudo da causa
· Estudo analítico (hemograma, plaquetas, funções renal e hepática, sumário de
urina, urina de 24h)
· Serologias maternas (CMV, rubéola, toxoplasmose, sífilis, varicela)
· Ponderar cariótipo fetal (IG < 28-32s, hidrâmnios)
· Ecocardiografia fetal
Vigilância
· CTG diário
· ILA 2 a 7x semana
· Perfil Biofísico (PB) 2 a 7x semana
- ILA, CTG, Movimentos fetais, Tónus muscular, Movimentos respiratórios
· Fluxometria Doppler 2 a 7x semana
- artérias umbilical (AU) e cerebral média (ACM), ductus venosus (DV) e/ou
veia umbilical (VU)
· Biometrias fetais (15-15 dias)
Atitude
· Repouso
· Indução da maturidade pulmonar segundo protocolo do serviço
Programação do parto
· Condição fetal
· Idade gestacional
· Patologia materna
< 28s
· Mais provável ser secundária a anomalia cromossómica/ genética
· Morbilidade/mortalidade associada à prematuridade extrema
· Cada dia in utero aumenta a probabilidade de sobrevivência
· Problemático o uso do CTG
· Atitude intervencionista quase só por motivos maternos
Imagem 2
≥ 28s e < 34s
· Mortalidade neonatal diminui até às 32s e a morbilidade até às 34s
· Morbimortalidade maior nos fetos com RCIU
Imagem 3
≥ 34s
· Melhor prognóstico neonatal
· Grande percentagem de fetos Constitucionalmente Pequenos
Imagem 4
PARTO
· Via de parto: vaginal/cesariana (ponderar em cada caso)
· Gasimetria do sangue do cordão umbilical
· Pedir sempre exame histológico da placenta
· Se RCIU precoce e grave e de causa desconhecida:
- Cariótipo da placenta
Após alta hospitalar referenciar para a Consulta de RCIU
· Rever toda a informação
· Solicitar exames considerados necessários
· Aconselhar sobre futuras gravidezes