Home   |   Structure   |   Research   |   Resources   |   Members   |   Training   |   Activities   |   Contact

EN | PT

EuPTCVHe0872-81782007000400002

EuPTCVHe0872-81782007000400002

variedadeEu
ano2007
fonteScielo

O script do Java parece estar desligado, ou então houve um erro de comunicação. Ligue o script do Java para mais opções de representação.

DOENÇA CELÍACA REVISITADA

INTRODUÇÃO

A primeira alusão à doença celíaca (DC) remonta ao ano 200 da era cristã, mas foi em 1888 que Samuel Gee a descreveu nos termos actuais. Em meados do século vinte, Dicke et al. identificaram o glúten como agente causal (1).

Trata-se de uma doença auto-imune, desencadeada pela ingestão de glúten, em indivíduos com predisposição genética. É frequente, com uma prevalência média de 1-2% na população em geral (2). Caracteriza-se por inflamação crónica da mucosa e submucosa do intestino delgado e também se pode designar enteropatia sensível ao glúten (2,3).

Não obstante o envolvimento primário do tubo digestivo, deve ser encarada como uma doença sistémica e integrada no diagnóstico diferencial de múltiplas patologias do foro gastrenterológico e de outros departamentos (2).

PATOGÉNESE A fisiopatologia da DC é complexa, resultando da interacção entre factores ambientais, genéticos e imunológicos (2). Os principais eventos na patogénese da DC são apresentados na Figura 1.

Factores Ambientais O glúten é o factor indutor da doença. Trata-se de uma proteína existente em diversos cereais, constituída por prolaminas e gluteninas. As prolaminas tóxicas encontram-se no trigo (gliadina), cevada (hordeina) e centeio (secalina) (2,4-6). Estes péptidos são resistentes à digestão pelas enzimas gástricas e pancreáticas e alcançam a lâmina própria do intestino delgado, possivelmente em consequência de aumento da permeabilidade intestinal.

O glúten tem um elevado teor dos aminoácidos prolina (15%) e glutamina (35%) (4). Sabe-se que as moléculas DQ2 e DQ8 têm uma elevada afinidade para os péptidos com polaridade negativa. A glutamina pode ser convertida em ácido glutâmico, numa reacção em que a transglutaminase tecidular intervém como catalizador, resultando em aumento da reactividade com as moléculas HLA.

Factores Genéticos Cerca de 90-95% dos doentes expressam moléculas do complexo major de histocompatibilidade (HLA) de classe II DQ2. Os restantes apresentam, na sua maioria, o haplotipo DQ8-DR4 (3,4). Contudo, a molécula DQ2 é comum na população em geral, de forma que apenas uma pequena proporção virá a desenvolver DC. Pensa-se que este fenómeno ocorre por desregulação da resposta imunitária, eventualmente relacionada com outros mecanismos genéticos subjacentes, citocinas ou agentes infecciosos, ainda não esclarecidos (5). Para além disso, estima-se que os genes HLA contribuam somente para 40% do componente hereditário da doença (4). Aguardam-se resultados de estudos com outros genes potencialmente can- didatos, designadamente os genes reguladores dos linfócitos T (CD28, CTLA4 e ICOS) (3,4).

Factores Imunológicos A DC caracteriza-se por uma resposta imunitária anormal aos péptidos derivados da gliadina e da glutenina (3).

Os linfócitos T CD4+ sensíveis reconhecem múltiplos epítopos do glúten, mediante apresentação através das moléculas DQ2 e DQ8. Os clones linfocitários activados proliferam e produzem diversas citocinas pró-inflamatórias, responsáveis pela estimulação de células T citotóxicas, promoção de infiltrado celular e produção de metaloproteinases que lesam a matriz extra-celular (3,4).

A interleucina-15 produzida in situ é crucial para o desenvolvimento de linfocitose intra-epitelial e destruição da mucosa (2). Algumas citocinas estão envolvidas no processo de activação e diferenciação dos linfócitos B em plasmócitos produtores de anticorpos IgA e IgG (3,4).

Os linfócitos intra-epiteliais existem, em condições normais, na mucosa do intestino delgado, como parte integrante da defesa imunitária, sendo na sua maioria células T CD8+ com o receptor de superfície α/β.

Habitualmente, apenas uma fracção diminuta de linfócitos apresenta o receptor γ/δ, mas esta população expande-se no contexto da hipersensibilidade ao glúten (7). O seu papel na patogénese da DC ainda permanece um enigma (4).

Entretanto, os mecanismos fisiopatológicos desvendados não explicam a heterogeneidade clínica da doença, mas admite-se que o modo de actuação das células apresentadoras de antigénios, o nível de acidez gástrica (facilitadora da desamidação da glutamina), a função pancreática e a qualidade da flora intestinal possam influenciar a apresentação antigénica ao sistema imunitário (3).

EPIDEMIOLOGIA Nos últimos anos, o espectro epidemiológico da DC cresceu significativamente. O reconhecimento da ampla variedade de manifestações clínicas e histológicas da doença, o advento de marcadores serológicos altamente sensíveis e específicos, e a identificação da susceptibilidade genética, permitiram delinear o modelo do iceberg celíaco, em que a ocorrência de sintomas típicos representa apenas a porção visível (3,8).

A parte submersa do iceberg poderá revelar-se cada vez maior. Efectivamente, alguns casos não são detectados, uma vez que a serologia não tem sensibilidade e especificidade de 100%. Ademais, o diagnóstico dificilmente se estabelecerá nas populações desnutridas dos países subdesenvolvidos. Por último, a ingestão de quantidades reduzidas de glúten obviará ao aparecimento de sintomatologia em alguns doentes (8).

O conceito de doença tipicamente europeia ocorrendo sobretudo na infância modificou-se substancialmente. Na verdade, actualmente considera-se que a DC é a intolerância alimentar mais frequente no mundo. A definição das áreas de risco baseia-se na história das migrações dos povos ancestrais e no facto de a doença resultar de factores genéticos e ambientais. Assim, a DC é comum na Europa, América, norte de África, sudeste asiático e Austrália, onde se associam a presença dos haplotipos implicados e o elevado consumo de glúten. Na Europa, a prevalência da doença varia entre 0,2% (Alemanha e Croácia) e 1,2% (Hungria) (8). Em Portugal, estima-se que este valor ascenda a 0,7%, com base num estudo levado a cabo numa população adolescente, com determinação dos anticorpos anti-transglutaminase (AAT) e anti-endomísio (AAE) e biópsias duodenais nos casos positivos (9). A prevalência mais elevada (5,6%) foi descrita numa população do norte de África, os Saharawi (8). Foram publicados três casos de DC em descendentes de imigrantes japoneses e chineses, nos quais a doença era, historicamente, considerada ausente (2,8).

Alguns autores admitem que a incidência é maior no sexo feminino, numa relação de 2:1 (3,6), mas outros apontam para uma frequência idêntica (1). Pode surgir em qualquer idade e cerca de 20% dos casos ocorrem em doentes com mais de 60 anos (2).

A influência deletéria do tabaco mantém-se objecto de controvérsia (10,11).

APRESENTAÇÃO CLÍNICA Na infância, a DC apresenta-se tipicamente entre os 6 e os 24 meses de idade, após a introdução dos cereais na dieta, com instalação gradual de diarreia, distensão abdominal, anorexia, atraso de crescimento, atrofia muscular, hipotonia e irritabilidade. Os vómitos são muito frequentes antes dos 9 meses de idade. Nalguns casos pode ocorrer dor abdominal no contexto de obstipação (6,12).

Nas crianças mais velhas e adolescentes, a doença pode ser pautada por atraso no desenvolvimento estato-ponderal e pubertário, raquitismo, diarreia, anemia recorrente ou desempenho escolar deficiente (6,12). Nos últimos 20 anos, a percepção dos clínicos relativamente à apresentação da DC do adulto alterou-se substancialmente.

Passou a reconhecer-se um vasto leque de manifestações clínicas, muitas vezes pauci-sintomáticas, obrigando a actuar com elevado índice de suspeição a fim de evitar atraso no diagnóstico e desenvolvimento subsequente de complicações (3). A gravidez, um processo infeccioso ou uma intervenção cirúrgica poderão despoletar um quadro de diarreia que alerte para o diagnóstico (1,6). Podem existir apenas sinais isolados de má-absorção (3). O atingimento do intestino delgado proximal resulta em deplecção de ferro, ácido fólico, cálcio e vitaminas lipo-solúveis, ao passo que o envolvimento ileal, nos casos de doença extensa, condiciona défice de vitamina B12 (11).

Forma Típica A tríade clássica, consistindo em esteatorreia, meteorismo abdominal e emagrecimento, não é a principal forma de revelação da DC (3). Na verdade, até 30% dos doentes celíacos apresentam aumento do índice de massa corporal no momento do diagnóstico (2).

Formas Atípicas Formas Clínicas Frustes A sintomatologia gastrintestinal é frequentemente ligeira e inespecífica ou está ausente. Pode haver dor abdominal, por vezes prolongada, cursando com meteorismo e alterações do trânsito intestinal (obstipação isolada ou alternância com diarreia), mimetizando um quadro de colopatia funcional. Estima-se que a prevalência de DC em doentes com síndroma do intestino irritável seja de 4,6% (3).

Astenia e mal-estar geral são queixas relativamente frequentes (12) e podem ser referidos vómitos, náuseas e anorexia (6).

Formas Extra-intestinais Anemia Ferropénica A DC pode apresentar-se como uma anemia ferropénica inexplicada, sendo responsável por até 5% destes casos.

Recomenda-se a realização sistemática de biópsias duodenais no decurso de uma endoscopia digestiva alta efectuada neste âmbito (3).

Patologia Músculo-esquelética A osteopénia é a complicação mais frequente da DC, constituindo por vezes o modo de apresentação. Decorre da má-absorção de vitamina D e cálcio, e diminuição do seu aporte (em situações de intolerância à lactose).

Também podem estar implicados outros factores, designadamente o sexo feminino, desnutrição e redução da actividade física (2). Manifesta-se em geral com lombalgia arrastada, que apenas responde parcialmente à dieta sem glúten. Pode evoluir para osteoporose, com acréscimo do risco fracturário, embora os estudos existentes não sejam concordantes (2,3,5).

Deve ser sempre realizada uma densitometria óssea no momento do diagnóstico, para avaliar a gravidade da perda de massa óssea e instituir a terapêutica adequada.

Lepers et al. preconizam a repetição deste exame a cada 3 anos (3).

O envolvimento das articulações periféricas, mais raro, decorre com oligo-artralgias ou oligo-artrites seronegativas (3).

O défice de cálcio e magnésio pode resultar em parestesias, cãibras musculares ou mesmo tetania (12).

Doenças e Síndromas Associadas à DC Patologia cutâneo-mucosa A DC está presente em 70-100% dos doentes com dermatite herpetiforme. Trata-se de lesões vesiculares, pruriginosas, simétricas, ocorrendo especialmente nos cotovelos, joelhos e couro cabeludo. As biópsias das vesículas revelam descolamento sub-epidérmico e micro-abcessos constituídos por neutrófilos e eosinófilos. Nas zonas de pele identificam-se depósitos de IgA, localizados nas junções dermo-epidérmicas. A resposta à dieta sem glúten é favorável e pode obviar à necessidade de terapêutica farmacológica com dapsona (3,11,13).

Encontram-se descritas, em regra sob a forma de casos clínicos isolados, múltiplas afecções cutâneas potencialmente associadas à DC, com uma resposta inconstante à restrição de glúten, como sejam a estomatite aftosa recorrente, alopécia, psoríase, pioderma gangrenoso, urticária, edema angioneurótico hereditário, eritema nodoso, vitiligo, líquen plano oral, porfiria, eritema migratório necrolítico e doença de Behçet (3,10,11,13).

Patologia hepatobiliar e pancreática A associação entre DC e cirrose biliar primária encontra-se estabelecida, recomendando-se o despiste de uma doença aquando do diagnóstico da outra (3,14,15).

Foi igualmente documentada a relação entre DC e colangite esclerosante primária (3,14,15). Abdullah et al. salientam que, neste contexto, os AAE estão presentes em apenas 50% dos casos, o que poderá traduzir uma diminuição da sensibilidade nestes doentes (16). Em alternativa, poderiam ser empregues os AAT, mas ainda não existem dados suficientes para concluir acerca da sua eficácia na doença hepática crónica (16), embora alguns trabalhos tenham evidenciado uma reduzida especificidade (11).

Também foi relatada a concomitância de DC com hepatite e colangite auto-imunes (3,14,15).

Nalguns casos raros de DC sobreveio tardiamente a apresentação clínica de hemocromatose hereditária (depois de uma dieta restritiva prolongada) sugerindo que a intolerância ao glúten tenha prevenido as manifestações do excesso de ferro, pela atrofia intestinal e consequente má-absorção (17). Foi identificada uma elevada prevalência de mutações do gene HFE em doentes celíacos, nenhum dos quais com hemocromatose clinicamente evidente, admitindo-se que este componente genético tenha um carácter protector, limitando a deficiência de ferro presente na DC (18). No entanto, os resultados não são concordantes (19) e impõem-se novos estudos para consubstanciar esta possibilidade (17).

Seis a nove por cento dos doentes com elevação inexplicada das aminotransferases apresentam DC, a maioria dos quais responde favoravelmente, com normalização enzimática, à restrição de glúten (3,15). Por outro lado, pode haver incremento ligeiro a moderado da enzimologia hepática em 15-55% dos doentes celíacos, com aumento da ALT e/ou AST e mais raramente da fosfatase alcalina.

A resolução laboratorial ocorre na maior parte dos enfermos, aos 12 meses de tratamento (15).

Apesar de terem sido reportados alguns casos de esteatose hepática em doentes com intolerância ao glúten, provavelmente não se tratará de uma verdadeira associação, uma vez que ambas as patologias são frequentes (15).

Encontrou-se uma elevada prevalência de DC na doença hepática crónica. Em doentes com insuficiência hepática grave, a aguardar transplante, verificou-se melhoria substancial da doença de base após a instituição de dieta sem glúten.

Não obstante estarem descritos alguns casos, raros, de cirrose e carcinoma hepatocelular em enfermos celíacos, não se sabe se a DC conduz a falência hepática severa (14,15).

A frequência com que a insuficiência pancreática exócrina ocorre nos doentes celíacos é desconhecida, mas está presente e pode ser responsável pela assimilação deficiente dos nutrientes (19).

Endocrinopatias Estima-se que a prevalência de diabetes mellitus tipo 1 na DC seja de 5% e, inversamente, 3-8% dos diabéticos insulinodependentes apresentam intolerância ao glúten (3,10).

Foi igualmente relatada a associação de DC com patologia auto-imune da tiróide e doença de Addison (3,10,13).

Os doentes celíacos de ambos os sexos apresentam maior taxa de infertilidade. Existe também um risco acrescido de amenorreia, abortos espontâneos e prematuridade em casos de DC não tratada, que regride com a restrição de glúten (1,3,10).

Défices imunitários O défice selectivo de IgA ocorre em 1,7-2,6% dos enfermos celíacos, os quais não produzem anticorpos de classe IgA mas têm geralmente elevada concentração de anticorpos IgG. Para despistar a doença, nestas situações, é necessário solicitar a IgA sérica total e especificar o pedido de anticorpos de classe IgG (3,11).

Síndromas malformativas Existe uma elevada prevalência de DC, estimada em 6,3%, na síndroma de Down. Também foi descrita a relação com a síndroma de Turner e com malformações cardíacas (3).

Patologia neurológica e psiquiátrica Foram relatados casos de neuropatia periférica, mielopatia, ataxia e epilepsia (com ou sem calcificações cerebrais). Os quadros psiquiátricos mais comuns são a ansiedade, irritabilidade e depressão, que respondem rapidamente à dieta restritiva (1-3,10). Também foi descrita esquizofrenia na DC não tratada (1,6).

Outras associações Documentou-se uma prevalência aumentada de colite linfocítica na DC, cujo significado não foi devidamente elucidado (6). Cerca de 10% dos doentes celíacos podem apresentar simultaneamente gastrite linfocítica (1). Pode haver associação com doença inflamatória intestinal (especialmente proctite ulcerosa) em até 20% destes enfermos, sendo susceptível de melhorar com a restrição de glúten (1).

Encontram-se relatadas situações de intolerância hereditária à frutose (20), hipocratismo digital (3,10), hipoplasia do esmalte dos dentes (1,10), nefropatia de IgA, síndroma de Sjögren (10), alveolite fibrosante crónica e outras doenças pulmonares intersticiais, lúpus eritematoso sistémico, artrite reumatóide e sarcoidose (1), entre outras.

Formas Silenciosas Trata-se de indivíduos assintomáticos, identificados pela existência de factores de risco, que apresentam atrofia vilositária nas biópsias duodenais. Estão expostos às complicações habituais da doença e devem manter uma dieta sem glúten (3).

Formas Latentes A definição não é consensual, a evolução é variável e a instituição de uma dieta restritiva é discutível.

Ferguson et al. englobam sob esta designação os sujeitos assintomáticos com anticorpos circulantes e presença de linfocitose intra-epitelial nas biópsias do duodeno, que podem desenvolver DC clinicamente evidente após exposição prolongada ao glúten (21).

Lepers et al. propõem uma vigilância endoscópica a cada 2-3 anos (3).

Complicações da DC Hipo-esplenismo e Cavitação dos Gânglios do Mesentério A atrofia do baço ocorre por mecanismos fisiopatológicos não esclarecidos, manifesta-se com trombocitose e presença de plaquetas gigantes, acantócitos e corpos de Howell-Jolly no esfregaço de sangue periférico, verificando-se em 30% dos casos (1,3,12). A cavitação ganglionar mesentérica é rara (3).

Jejunite Ulcerativa Actualmente é considerada uma condição pré-maligna ou maligna, na medida em que representa, na maior parte das vezes, linfomas de células T em fase inicial.

Geralmente ocorre entre a sexta e a sétima décadas de vida, no contexto de dor e distensão abdominais arrastadas, febre, emagrecimento, diarreia e frequentemente esteatorreia. As biópsias jejunais habitualmente não conduzem ao diagnóstico e a maioria dos doentes é submetida a laparotomia exploradora. Trata-se de ulcerações segmentares ou extensas, comummente no jejuno, embora também possam ser identificadas no íleon e cólon, passíveis de evoluir para estenose ou perfuração.

Investigações futuras deverão esclarecer qual o tratamento adequado (3,22).

Complicações Malignas As neoplasias são a complicação mais grave da DC. Os carcinomas epidermóides do foro otorrinolaringológico e do esófago, assim como o adenocarcinoma do intestino delgado, são mais frequentes em enfermos celíacos (3,22).

A DC comporta uma elevada probabilidade de desenvolvimento de linfomas não Hodgkin, relacionada com a manutenção do consumo de glúten (2,3,22). No entanto, esta ocorrência constata-se em menor escala do que anteriormente se pensava, com um risco relativo oscilando entre 2 e 4 (2). O linfoma de células T associado à enteropatia é um tipo raro de linfoma não Hodgkin, geralmente de células T, que deriva da expansão clonal de linfócitos intra-epiteliais aberrantes. Estão descritos diversos fenótipos. Na base destas alterações parecem estar anomalias citogenéticas e o excesso de produção da interleucina-15 pelas células epiteliais. Localiza-se preferencialmente no jejuno e íleon proximal, embora possa ocorrer no estômago e cólon. Em regra é pouco quimiosensível, com alto grau de malignidade. Deve suspeitar-se do diagnóstico ante a persistência ou recrudescimento da sintomatologia digestiva e presença de manifestações constitucionais, não obstante o cumprimento da dieta restritiva. Pode ser detectada uma massa abdominal ou adenomegálias. Eventualmente poderá sobrevir um quadro de oclusão ou perfuração intestinal (3,22).

DC Refractária

Trata-se de uma enteropatia com atrofia vilositária sustentada e linfocitose intra-epitelial, apesar da restrição de glúten durante mais de 12 meses, ou em que a manutenção de sintomas graves obriga a intervenção farmacológica, independentemente da duração da dieta restritiva. Compreende um grupo heterogéneo de si- tuações e pode ser primária ou, mais frequentemente, secundária, após um período de boa resposta à suspensão de glúten. A abordagem destes doentes engloba a reavaliação do diagnóstico, confirmação da observância da dieta, investigação de outras etiologias de diarreia (colite microscópica, insuficiência pancreática exócrina, deficiência secundária de lactase, hiperproliferação bacteriana, doença inflamatória intestinal, síndroma do intestino irritável, incontinência anal) ou de atrofia vilositária (giardíase, doença de Crohn, sprue tropical, enteropatia auto-imune, intolerância às proteínas, imunodeficiência variável comum, enterite eosinofílica) e despiste de linfoma e adenocarcinoma do intestino delgado. É, portanto, um diagnóstico de exclusão. A DC refractária de tipo I caracteriza-se pela presença de linfócitos intra-epiteliais normais e concomitância de doenças auto-imunes. No tipo II, a população linfocitária exibe alterações fenotípicas, o que acarreta um elevado risco de progressão para linfoma (3,23).

PAPEL DOS MARCADORES SEROLÓGICOS Os testes serológicos permitem levantar a possibilidade do diagnóstico nos casos suspeitos de DC e nos indivíduos assintomáticos de alto risco. Ademais, têm sido empregues para monitorizar a adesão e a resposta à dieta sem glúten (12).

Os anticorpos anti-reticulina apresentam uma elevada especificidade mas a sensibilidade é de apenas 40-60%, de modo que actualmente se recomenda que sejam abandonados (3).

Globalmente, os anticorpos anti-gliadina, sobretudo de classe IgA, demonstraram sensibilidade e especificidade relativamente baixas. A utilização dos anticorpos de classe IgG poder-se-á justificar nos casos de défice selectivo de IgA. Também poderão ser úteis para avaliar o cumprimento da dieta sem glúten, sendo que, geralmente, as IgA se tornam indetectáveis após 3-6 meses de regime apropriado, ao passo que as IgG persistem durante mais tempo (3).

Os AAE reconhecem a transglutaminase tecidular e são identificados por imunofluorescência indirecta. Os AAE de classe IgA constituem o parâmetro mais específico para o despiste de DC (95-100%), com uma sensibilidade que varia entre 85-100% (3). Numa análise recente de diversos estudos utilizando AAE, na população adulta, verificou-se maior sensibilidade (94,2-99,3%) com o emprego do esófago de macaco como substrato, e maior especificidade (97,8-100%) com a utilização do cordão umbilical humano (24). A sensibilidade dos AAE encontrase reduzida em casos de atrofia vilositária sub-total (3), bem como nas formas extra-intestinais e silenciosas de DC (25). Os AAE de classe IgA desaparecem entre 3-12 meses após a instituição de dieta sem glúten, o que não se traduz sistematicamente em melhoria histológica. Os anticorpos de classe IgG poderão ter utilidade nas situações de défice selectivo de IgA (3).

Salmi et al. documentaram a presença de depósitos sub-epiteliais de IgA, glúten-dependentes, dirigidos contra a transglutaminase tecidular, na mucosa do intestino delgado, em doentes celíacos, independentemente da detecção de AAE séricos. Os enfermos AAE negativos apresentavam uma idade mais avançada e maior taxa de sintomatologia e complicações, sugerindo uma doença mais prolongada e severa. Os anticorpos seriam sequestrados no intestino e a detecção sérica resultaria da translocação intestinal. Para além disso, a ligação à enzima é muito forte, e no decurso de uma reacção imunitária arrastada seriam produzidos anticorpos com avidez crescente, resultando, em última instância, que a DC avançada pudesse determinar seronegatividade (26).

Os AAT de classe IgA apresentam uma excelente sensibilidade (95-100%), e uma especificidade de 90-100% (3).

Num trabalho mencionado, os testes utilizando a transglutaminase tecidular humana recombinante comportaram melhor sensibilidade (97,2-100%) e especificidade (93,9-98,7%) do que os que empregaram a transglutaminase do porco da Guiné (24). O estudo de Zintzaras et al.

corrobora estas conclusões e acrescenta que os métodos ELISA usando a transglutaminase humana recombinante e a transglutaminase humana purificada são comparáveis, embora a análise de sensibilidade tenha demonstrado vantagem desta última. Contudo, os dados relativos ao emprego desta forma são ainda escassos, pelo que estes resultados devem ser interpretados cuidadosamente (27).

Diversos autores têm proposto a dosagem de AAT de classe IgA, utilizando a transglutaminase humana, como o exame de eleição para o despiste de DC (3,24,27). Apesar de se ter registado uma diminuição dos títulos de AAT após a restrição de glúten, o interesse deste marcador no seguimento da doença ainda não foi devidamente esclarecido. A resolução laboratorial não implica necessariamente recuperação histológica (3).

Os marcadores serológicos têm desempenhado um papel fundamental no despiste da DC em indivíduos de alto risco (28,29). A doença preenche critérios para o screening em massa, dado que a detecção precoce baseada na sintomatologia pode ser difícil, é uma patologia frequente, existem testes sensíveis e específicos para o diagnóstico, terapêutica eficaz e, se não tratada, acarreta morbilidade substancial e aumento da mortalidade (4,30). No entanto, a maioria dos autores recomenda somente o rastreio de grupos de risco, designadamente familiares de primeiro grau de doentes celíacos, diabéticos insulinodependentes, indivíduos com défice de IgA, portadores de síndroma de Down e nos casos de patologia auto-imune da tiróide e doença hepática crónica, em particular na cirrose biliar primária (3,11,30). Entretanto, numa análise de custo/eficácia, Shamir et al. concluíram que esta relação é favorável ao rastreio em massa na população adulta, em áreas com elevada prevalência de DC, sendo os AAE, nesta perspectiva, os marcadores mais adequados (30).

AVALIAÇÃO ENDOSCÓPICA E HISTOLÓGICA A DC afecta o intestino delgado proximal, com diminuição gradual da gravidade das lesões em sentido distal, embora em casos severos possa haver atingimento do íleon. Também podem ser detectadas alterações nas mucosas gástrica e rectal (6). As biópsias devem ser efectuadas na segunda ou terceira porções do duodeno, por forma a evitar a distorção arquitectural produzida pelas glândulas de Brünner e a duodenite péptica (12).

A mucosa duodenal pode ser macroscopicamente normal ou apresentar redução do número de pregas circulares, atrofia (Figura 2), fissuras e aspecto em mosaico ou nodular (1,11,31).

Tradicionalmente, o diagnóstico de DC requeria a identificação de atrofia vilositária. Em 1992, Marsh veio revolucionar este conceito, amplificando o espectro de alterações histológicas decorrentes da sensibilidade ao glúten e acentuando o seu carácter dinâmico e potencialmente evolutivo. Descreveu 5 tipos, a saber: tipo 0 (pré-infiltrativo) normal; tipo 1 (infiltrativo) arquitectura da mucosa preservada com marcado infiltrado linfocitário do epitélio viloso; tipo 2 (hiperplásico) linfocitose intra-epitelial e hiperplasia das criptas de Lieberkuhn; tipo 3 (destrutivo) atrofia vilositária; e tipo 4 (hipoplásico) lesão irreversível da mucosa, sem resposta à suspensão antigénica e possivelmente relacionada com a emergência de um clone maligno de células T.

O autor sublinhou que uma biópsia normal ou com alterações frustes não permite excluir categoricamente a presença de sensibilidade ao glúten nem predizer o eventual desenvolvimento da doença (32).

Oberhuber et al., em 1999, estabeleceram a classificação de Marsh modificada, que consiste em: tipo I infiltrado linfocitário do epitélio viloso; tipo II linfocitose intraepitelial e hiperplasia de criptas; tipo IIIa atrofia vilositária parcial (vilosidades curtas); tipo IIIb atrofia vilositária sub-total (mucosa atrófica mas com vilosidades identificáveis); e tipo IIIc atrofia vilositária total (33).

Posteriormente, em 2001, definiu-se que uma contagem superior a 30 linfócitos intra-epiteliais por 100 enterócitos seria consistente com a lesão Marsh I (34).

A identificação de linfócitos intra-epiteliais ao longo da vilosidade ou predominando no topo da mesma, com perda do padrão normal em decrescendo, é sugestiva de DC (7).

O diagnóstico histológico pode ser dificultado em virtude da distribuição focal das lesões e, para além disso, nem todas as amostras se encontram correctamente orientadas para a interpretação da relação entre o comprimento da vilosidade e a profundidade da cripta. São necessárias, consoante os autores, entre três (1,6,11) e seis (2) biópsias adequadas.

Tursi et al. conduziram recentemente um estudo prospectivo, com um período de seguimento de 2 anos, em que demonstraram que a resolução endoscópica é mais precoce do que a histológica, em adultos a cumprir dieta sem glúten. Os indivíduos entre 15-60 anos apresentaram uma recuperação significativa aos 12 meses de tratamento, ao passo que acima desta faixa etária houve melhoria endoscópica, mas sem significado estatístico, mesmo depois de 24 meses de dieta restritiva (31).

Admite-se que a resolução histológica ocorre entre 6-12 meses após a instituição de dieta sem glúten mas, na verdade, os dados existentes são escassos e contraditórios, em particular na população adulta, na qual se constata frequentemente uma recuperação incompleta das lesões da mucosa (11,31).

No trabalho previamente mencionado, documentou-se uma resolução histológica significativa aos 12 meses de restrição de glúten, apenas nos doentes mais jovens (15-30 anos). Pelo contrário, os enfermos acima desta faixa etária apresentavam melhoria das lesões, mas sem significado estatístico, mesmo aos 24 meses de tratamento. Estes autores consideram que a duração da exposição ao glúten é o factor determinante na velocidade de recuperação histológica nos adultos, com uma relação inversamente proporcional (31).

Não existe consenso no que respeita ao seguimento endoscópico e histológico destes doentes. A Associação Americana de Gastrenterologia recomenda a repetição de biópsias entre 3-4 meses após a suspensão de glúten (6), ao passo que o grupo europeu de trabalho sobre a DC alarga este período para 1 ano (34). Tursi et al. preconizam a reavaliação após 12 meses de tratamento, em doentes com menos de 30 anos; e depois de 24 meses acima desta faixa etária (31). Lepers et al. também aconselham a efectuar endoscopia de controlo decorridos 12-18 meses de dieta restritiva (3).

A enteroscopia poderá ter um papel no estabelecimento do diagnóstico, tendo revelado alguns casos de atrofia vilositária no jejuno (35), e também na abordagem da DC refractária (36), mas são necessários estudos prospectivos elucidativos (35).

A videocápsula endoscópica tem sido empregue na avaliação de doentes celíacos refractários, conduzindo à identificação de jejunite ulcerativa e linfomas (37,38). Hopper et al. admitem que a acuidade diagnóstica da videocápsula na detecção de atrofia vilositária, em enfermos com serologia positiva, é idêntica à da endoscopia convencional (37). Pelo contrário, Biagi et al. relataram uma elevada sensibilidade mas baixa especificidade da videocápsula, uma vez que a concordância entre os achados macroscópicos e a histologia era apenas moderada.

Todavia, sugerem a realização de biópsias duodenais na presença de padrão atrófico da mucosa, em doentes a efectuar o exame por outros motivos (39).

ABORDAGEM DIAGNÓSTICA SUMÁRIA As biópsias duodenais, com identificação das lesões imputadas à DC, continuam a ser consideradas o método gold standard de diagnóstico, não obstante as dificuldades inerentes (2,3,6,40). Devem ser efectuadas em todos os doentes com contexto clínico sugestivo, independentemente da serologia, bem como nos assintomáticos com anticorpos positivos (2,3). A melhoria ou eventual resolução clínica, laboratorial e histológica (se avaliada), no decurso da restrição de glúten, confirmam o diagnóstico (2).

Marcados por uma elevada sensibilidade e especificidade, os testes serológicos têm vindo a assumir um papel preponderante no algoritmo diagnóstico, orientando para a realização mais criteriosa de endoscopia digestiva alta.

Efectivamente, a associação de serologia negativa e baixo índice de suspeição clínica poderá obviar à intervenção endoscópica (2,3). Actualmente, a maioria dos autores preconiza a utilização dos AAT de classe IgA por ELISA, com doseamento da IgA sérica total. Os AAE poderão constituir um exame de primeira intenção ou ser empregues como controlo dos anteriores (2,3).

A tipagem HLA (HLA-DQ2/DQ8) pode contribuir para a exclusão do diagnóstico em situações duvidosas, em virtude do seu alto valor preditivo negativo (3,40), mas não se reveste de impacto adicional se os anticorpos forem positivos (3,41).

Nos casos equívocos, a imunohistoquímica pode revelar-se útil, permitindo identificar os linfócitos intra-epiteliais e em particular o subtipo que apresenta o receptor γ/δ (40).

O papel da videocápsula endoscópica e da enteroscopia no estabelecimento do diagnóstico não foi ainda devidamente elucidado.

Na verdade, todos os métodos complementares têm limitações, de modo que a sua combinação poderá ser uma forma de abordar o amplo espectro da DC (40).

Na Figura 3 esquematiza-se uma proposta de algoritmo diagnóstico (12).

TRATAMENTO E PROGNÓSTICO A instituição de uma dieta sem glúten, indefinidamente, é a única terapêutica eficaz da DC não complicada, conduzindo, em regra, a melhoria sintomática em algumas semanas. No entanto, a restrição absoluta de glúten é difícil ou mesmo impossível de manter, dada a presença de quantidades residuais nos alimentos disponíveis no mercado (3). Collin et al. consideram que o limite de glúten residual pode ser estabelecido em 100 mg/Kg de produto. Para uma ingestão diária de 300 g de farinha, o nível de 100 mg/Kg resulta em 30 mg de glúten, o que se mostrou seguro na prática clínica (42).

No Quadro I indicam-se os alimentos permitidos e proibidos na DC (43,44).

Alguns autores recomendam a evicção de lacticínios aquando do início de dieta sem glúten, pela deficiência secundária de lactase, com retoma gradual após 1-2 meses, desde que não provoque sintomas (2).

Poderá ser necessário corrigir défices específicos, com suplementos de ferro, ácido fólico, cálcio, vitamina D, cobre, magnésio, zinco, albumina e vitamina B12 (6,23).

No momento do diagnóstico e durante o seguimento, o doente celíaco deve dispôr de aconselhamento dietético por parte de um profissional abalizado (3).

A alimentação parentérica tem lugar nas formas mais severas da doença (23).

Os corticosteróides estão indicados nos casos de diarreia intensa, desidratação, emagrecimento, acidose, hipocalcémia e hipoproteinémia, mas habitualmente ocorre deterioração clínica após a sua suspensão. Recomenda-se a prednisolona oral na dose de 40-60 mg/dia ou, na DC grave, 100 mg de 6/6 horas por via endovenosa (6,23).

A DC refractária de tipo I beneficia de terapêutica imunossupressora. A azatioprina deve ser a primeira opção, após indução de remissão com corticoterapia.

A dose e a duração do tratamento não estão definidas, mas devem ser seguidas as recomendações empregues na doença inflamatória intestinal. O infliximab pode induzir resposta clínica e histológica, mas esperam-se novos dados (23).

Não existe tratamento curativo para o tipo II, embora se tenham objectivado bons resultados com infusões de infliximab (em caso de corticodependência ou corticorresistência) e com alguns esquemas de quimioterapia.

A azatioprina e a 6-mercaptopurina comportam um elevado risco de progressão para linfoma. A utilização de anticorpos monoclonais bloqueadores da interleucina-15, a nível experimental, parece promissora (23).

Têm sido apresentadas alternativas à dieta sem glúten, nomeadamente o desenvolvimento de antigénios sintéticos passíveis de modular favoravelmente a resposta imunitária e a utilização de enzimas proteolíticas capazes de fragmentar os péptidos derivados do glúten (4,5).

Os medicamentos podem ser uma fonte insuspeitada de glúten, contido nos excipientes e/ou nas cápsulas de revestimento, pelo que devem ser sistematicamente verificados (3).

As medidas preconizadas com vista à prevenção da perda de massa óssea englobam exercício físico regular, redução do consumo de álcool e suspensão tabágica. Os doentes com osteoporose devem ser tratados com bifosfonatos ou calcitonina e as mulheres em menopausa com terapêutica de substituição hormonal (1).

O acréscimo na morbilidade e mortalidade ocorre nas formas severas da doença e em particular quando surgem complicações. A DC tratada atempadamente tem em regra um bom prognóstico, de modo que a observância de uma dieta sem glúten é crucial, revestindo-se, inclusivamente, de carácter protector no desenvolvimento de algumas neoplasias (2,22).


transferir texto