Investigação clínica e epidemiológica: como preparar
Investigação clínica e epidemiológica: como preparar
Vitor Rodrigues *
A maior parte dos profissionais com conhecimentos em Epidemiologia e em
Estatística foram já confrontados, por parte de outros Profissionais de Saúde
envolvidos em trabalhos, mais ou menos elaborados e/ou complexos, de
investigação, com a clássica pergunta: “já tenho os dados; agora necessito que
os tratem”!
No entanto, numa infelizmente apreciável quantidade de vezes, verifica-se que o
trabalho já executado, geralmente fruto de um enorme esforço, não permite um
retorno correspondente ao investimento feito, pois não foi devidamente
preparado e maturado e sem, nomeadamente, uma elaboração adequada da pesquisa
bibliográfica, formulação de objectivos e explicita maturação dos métodos e dos
materiais usados.
Na verdade, sem uma aparente “perda de tempo” inicial (amplamente justificada
aquando da percepção global da investigação), é geralmente difícil, ou mesmo
impossível, atingir os resultados inicialmente propostos, bem como a cabal
satisfação que o entusiasmo, dedicação e empenho na procura de conhecimento
justificariam.
Para além disso, basta reparar nos capítulos que um artigo científico publicado
contém (título, autor ou autores, resumo, introdução, material e métodos,
resultados, discussão, conclusões, bibliografia, agradecimentos e anexos) para
verificar que grande parte deles podem e devem fazer parte do chamado
“protocolo de investigação”, anterior ao processo de “recolha de dados”
(título, autor ou autores, introdução, material e métodos, bibliografia e
anexos).
Iremos, assim, e numa perspectiva rápida e simples, elencar sumariamente os
princípios da “perda de tempo” inicial.
1. Revisão da Literatura (“Estado da Arte”)
Nesta etapa deve recolher-se a bibliografia directa ou indirectamente existente
sobre o tema – de notar que alguma já existe normalmente, pois auxiliou o
início do processo mental da investigação.
A bibliografia recolhida deverá enquadrar o que existe sobre o tema e,
sobretudo como a investigação foi realizada, pois qualquer assunto pode e é
perspectivado e enquadrado de diferentes formas, cada qual com as suas
vantagens, desvantagens e características.
Por outro lado, atenção especial deverá ser dada às circunstâncias em que
decorreram esses trabalhos, qual a população-alvo, quais os resultados
encontrados, quais os erros e desvios encontrados, de modo a que o nosso
trabalho os tente evitar, e que se enquadre à nossa população- alvo.
2. Definição do Objectivo
Dois dos erros mais frequentemente encontrados consistem, umas vezes, na
ausência de explicitação do objectivo, que conduz normalmente a alguma “deriva”
no decorrer da recolha de dados consoante o que vamos encontrando, e outras
vezes, na prossecução de vários objectivos (mais ou menos claros) que
dificultam a concretização da investigação ou que obrigam a concessões na
metodologia e nos materiais utilizados.
A regra de ouro parece ser a delimitação dos objectivos a um ou a dois, de modo
ao trabalho ser exequível e coerente.
3. Planeamento e Desenho do Estudo
Será, porventura, a fase mais importante do processo global de investigação,
pois irá definir a construção de todo o edifício, assemelhando ao trabalho de
um arquitecto. A definição do tipo de estudo é crucial; teremos de decidir se
se trata de um estudo experimental, em que o investigador induz a manobra – ele
é que decide a intervenção – como nos ensaios clínicos, ou se de um estudo de
observação (em que apenas observa as causas e os efeitos de algo que
aconteceu). A decisão tem a ver com os objectivos, a exequibilidade e a ética.
E no caso dos estudos de observação, se um desenho descritivo se um desenho
inferencial: nomeadamente de metodologia caso-controlo – em que após a selecção
de indivíduos segundo a presença ou ausência da doença em causa se pesquisa a
presença ou ausência de factores de risco (exposição) – ou de metodologia de
coorte – em que se selecciona presença ou ausência de exposição a algo e se
estuda a sua evolução (ou não) para as doenças associadas; para além das
características, vantagens e desvantagens associadas aos dois desenhos, há que
atender aos indicadores (mais ou menos descriminativos e informativos) que cada
um nos pode fornecer. E quais os indicadores a estudar? Indicadores primários e
secundários? Indicadores de estrutura, processo e resultados? Que indicadores
de risco – números absolutos, taxas, razões, riscos relativos, riscos
absolutos, sobrevivências, intervalos livres de doença,….?
O passo seguinte consiste em definir se queremos (ou podemos) estudar toda a
população ou apenas um subgrupo (uma amostra). Neste caso há que decidir sobre
o tipo de amostragem, probabilística ou de conveniência, a sua metodologia
(como consigo os casos) e a sua representatividade e probabilidade de
generalização. Além disso, quantos casos queremos para, com um nível de
significância de x e umamargem de erro de y, termos a confiança desejada nos
resultados, isto é, qual a confiança que podemos ter nos resultados obtidos.
A definição de variáveis é importante. Temos que as seleccionar, definir e
elaborarmos a sua mensuração. Por exemplo, a idade pode ser definida em anos,
em grupos etários ou em, por exemplo, jovens, adultos e idosos. E essa decisão
tem a ver com dois aspectos essenciais: se as descriminarmos mais, temos sempre
a possibilidade de os associar, o que não acontece no inverso; por outro lado,
as variáveis quantitativas são tratadas por técnicas paramétricas e as
qualitativas por técnicas não-paramétricas. Deste modo, se tal definição não
for realizada de início, a análise estatística pode ficar imediatamente
comprometida.
Como não é possível realizar estudos sem erros e sem desvios, uma atenção
especial deverá ser dada a este aspecto. Na verdade, uma boa investigação deve
ter em linha de conta a antecipação deles, e o raciocínio sobre aspectos, para
além dos anteriormente colocados, como o controlo da “não-resposta” ou “não-
participação”, a formação dos entrevistadores, a “ocultação” para evitar ou
minimizar a introdução de subjectividade, a padronização de procedimentos, a
adequação, validação e estandardização dos instrumentos de medida (mesmo que
qualitativa), são factores vitais para a validade interna e externa do nosso
estudo.
A consciencialização e a habituação do raciocínio sucintamente descrito serão,
deste modo, factores fundamentais para que o processo de investigação permita
uma satisfação dos investigadores, quer pela qualidade do trabalho que se faz,
quer pela maior confiança que se retira dos resultados obtidos.
* Professor Associado de Medicina Preventiva e Saúde Pública, Faculdade de
Medicina, Universidade de Coimbra, Portugal.
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