Relato de um caso - Síndrome de Ogilvie associada a adenocarcinoma de pâncreas
Relato de um caso ' Síndrome de Ogilvie associada a adenocarcinoma de pâncreas
INTRODUÇÃO
A pseudo-obstrução intestinal ou síndrome de Ogilvie é caracterizada por
dilatação do cólon, simulando oclusão intestinal, sem que se encontre uma causa
mecânica para a obstrução1. Em 1948, Henage Ogilvie descreveu uma síndrome
clínica que chamou de pseudo-obstrução do intestino grosso devido à privação de
inervação do simpático, e descreveu dois casos com sintomas fortemente
sugestivos de obstrução do cólon, porém opaco normal e que posteriormente foram
submetidos a laparotomia, que evidenciou um cólon normal, havendo envolvimento
maligno no plexo celíaco. Na época, Olgivie concluiu que o tumor interrompeu a
inervação simpática do intestino grosso, levando o sistema parassimpático com
seus ramos sagrados a actuar em sentido oposto produzindo um espasmo regional
2
.
Os mecanorreceptores localizados na parede do intestino grosso, quando
estimulados pela distensão, ativam uma via reflexa cujo efeito final (via
nervos simpáticos eferentes através do plexo mioentérico ou placas nervosas em
músculos lisos) é a inibição da motilidade do cólon (reflexo do cólon). O
mecanismo fisiopatológico resume-se a um desequilíbrio na inervação
autonómica3, de origem multifactorial: inibição do reflexo motor através dos
ramos aferentes esplâncnicos em resposta a um estímulo nocivo, excesso de
resposta inibitória motora simpática, diminuição do estímulo excitatório e
excesso de resposta inibitória sobre o parassimpático, inibição da libertação
do oxido nítrico (NO) pelos neurónios, além da estimulação periférica excessiva
dos receptores de opióides4. Apesar destes dados, ainda há necessidade de
estudos para um melhor entendimento fisiopatológico.
A incidência exacta da Síndrome de Olgivie não é conhecida. A maioria dos casos
afecta idosos, predominantemente do sexo masculino (60%), hospitalizados ou
institucionalizados, com uma patologia clínica grave
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(hipotiroidismo, amiloidose, enfarte agudo do miocárdio, ascite vascular
cerebral, hipóxia, inflamação sistémica ou localizada no peritoneu, intestino
delgado, tracto urinário ou tórax, entre outras.), intervenção cirúrgica
recente (traumática, ortopédica, pélvica, cesariana e torácica), uso de
clonidina e a gravidez. Num estudo retrospectivo de 400 casos, as condições
predisponentes mais comuns foram: traumas (11%), infecções (10%) e doenças
cardíacas (10%)5.
MATERIAL E MÉTODOS
Mulher, 78 anos, procedente de Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil, foi
submetida a tratamento com quimioterapia paliativa com gemcitabina por
adenocarcinoma da cabeça do pâncreas com metástases hepáticas aquando do
diagnóstico. Após seis ciclos de quimioterapia paliativa, com boa resposta
clínica ' diminuição importante da dor, aumento apetite e melhoria da
performance clínica inicial, também foi evidenciada diminuição do marcador
tumoral CA 19-9 (queda de 70% do valor inicial ao diagnóstico) e uma regressão
parcial das lesões hepáticas e pancreática na tomografia computorizada
abdominal de para reestadiamento. A paciente estava assintomática, indicado
acompanhamento clínico periódico na Oncologia.
Após quatro meses em ambulatório, quase um ano após o diagnóstico da neoplasia,
a doente apresentou-se no serviço de urgência com um quadro súbito de dor e
distensão abdominal associado à paragem da emissão de fezes e gases. Ao exame
físico, os ruídos hidroaéreos estavam ausentes e tínhamos aumento do volume
abdominal, com dor difusa e distensão. A doente permanecia apirética, sem
sinais clínicos de infecção. Laboratorialmente encontrava-se anemia leve e
alterações discretas da enzimologia hepática, provavelmente relacionado a
presença de metástases hepáticas. A Radiografia do abdómen evidenciou distensão
gasosa com acumulação de resíduos fecais no cólon, ausência de níveis
hidroaéreos em ortostatismo e ausência de sinais de liquido livre na cavidade
peritoneal (Fig. 1). Novo exame de controle após 24 horas mostrou dólico-
megacólon com importante distensão gasosa e presença de gás no recto (Fig. 2) e
em 48 horas notava-se um aumento da distensão de ansa cólicas e pequena
distensão do intestino delgado (Fig. 3). Não foi realizado tomografia
computorizada ou ecografia abdominal. Foi mantido suporte clínico com
hidratação endovenosa, suspensão da dieta entérica, drenagem nasogástrica e
analgesia.
Fig. 1. Distensão gasosa e acumulação de resíduos fecais nos cólons. Ausência
de níveis hidroaéreos em ortotatismo. Ausência de sinais de líquido livre.
Fig. 2. Dólico megacólon com importante distensão gasosa e acumulação de
resíduos fecais. Presença de gás no recto. Sem sinais de pneumoperitoneu.
Fig. 3. Importante distensão de ansas de intestino grosso e pequena distensão
de intestino delgado.
Com a hipótese de pseudoobstrução intestinal tentou-se tratamento com
neostigmina por via endovenosa, sem resposta clínica. Logo em seguida, foi
realizado tratamento endoscópico descompressivo. A Colonoscopia avaliou todo o
cólon, sendo realizada aspiração do grande conteúdo gasoso encontrado e, logo
após o exame, notava-se uma melhora clínica parcial dos sintomas iniciais.
Cerca de 48 horas após endoscopia ocorreu agravamento do quadro de distensão
abdominal e da dor. Associado aos sintomas abdominais, a paciente desenvolveu
uma broncopneumonia nosocomial grave que culminou no óbito.
DISCUSSÃO
Manifestações Clínicas
Os principais achados clínicos da síndrome de Olgivie incluem distensão
abdominal (100%), náuseas e vómitos (15% a 71%) e dor abdominal (80%). A
eliminação de gases e fezes é descrita em mais de 40% dos doentes5. A distensão
abdominal é o primeiro sinal, ocorrendo usualmente entre 3-7 dias após início
da doença. Em doentes cirúrgicos desenvolve-se em média, após cinco dias de
pós-operatório5. A paragem de eliminação fecal é um sinal importante, mas pode
eventualmente ser intercalada com esteatorreia. Os ruídos intestinais estão
ausentes em 12% dos casos e presentes, de qualidade normal ou até exacerbada,
em 88% das vezes
6
.
Ao exame físico, o abdómen muitas vezes é timpânico, doloroso, com contractura
muscular involuntária da parede abdominal. Pode haver febre e leucocitose, que
são mais comuns em doentes com isquemia ou perfuração1.
Apesar da grande importância do exame objectivo nesta condição, o seu
diagnostico é difícil e muitas vezes desvalorizado1. O reconhecimento precoce e
o manejo apropriado são imprescindíveis para minimizar complicações.
A paciente do caso exposto neste artigo apresentou quadro de dor e distensão
abdominal associado à paragem na eliminação de fezes e gases. Náuseas e vómitos
não estavam presentes, o que corrobora os dados da literatura prévia, a qual
demonstra grande variabilidade na frequência destes sintomas na Síndrome de
Ogilvie.
Diagnóstico
O diagnóstico deve ser confirmado através de exames complementares, sendo
indispensável a radiografia simples de abdómen, que mostrará graus variados de
dilatação cólica. O cólon direito e cego usualmente apresentam distensão mais
acentuada, além disso, cut-offs no ângulo esplénico e colon descendente são
comuns. A distribuição da dilatação cólica pode ser definida pelas diferentes
origens do nervo parassimpático proximal e distal que suprem o colon. Níveis
hidroaéreos e dilatação também podem ser visualizados no intestino delgado
dependendo da competência da válvula ileocecal
7
.
No caso apresentado, a radiografia de abdómen demonstrou distensão gasosa com
acumulação de resíduos fecais no cólon, ausência de níveis hidroaéreos em
ortostatismo e ausência de sinais de liquido livre na cavidade peritoneal.
Os diagnósticos diferenciais da distensão cólica aguda em doentes
hospitalizados incluem: obstrução mecânica, megacolon tóxico devido à infecção
grave por Clostridium difficile7 e pseudo-obstrução intestinal aguda.
Exames Complementares
Exame contrastado pode ser realizado caso não seja visualizado ar em todos os
segmentos do cólon na radiografia simples. A acuidade do exame é de 97% com
risco de perfuração intestinal de 1,2%4.
A Colonoscopia é um bom método para diagnóstico diferencial com colite
pseudomembranosa, enquanto se aguarda sorologia para o microorganismo8. É
também, uma alternativa ao exame contrastado, podendo ser utilizado
concomitantemente como tratamento. Vale lembrar que os riscos de complicações
são consideráveis.
Tomografia Computadorizada tem especificidade de 93% para evidenciar dilatações
cólicas
9
. Além disso, evidencia a presença de ar e liquido livres na cavidade sem a
necessidade de contrastes ou risco de ruptura visceral.
Manejo
O manejo apropriado implica a exclusão de obstrução mecânica e outras causas de
megacolon tóxico, investigar sinais de peritonite ou perfuração que podem
exigir intervenção cirúrgica urgente e determinar a duração e o grau de
distensão cólica5. Um dos dilemas clínicos num paciente com pseudo-obstrução
intestinal é quando indicar procedimentos como a descompressão cirúrgica ou
endoscópica do cólon.
Prognóstico
Em 1986, numa revisão de 400 casos, Vanek5 observou mortalidade de 14% nos
casos tratados conservadoramente e 30% nos casos que receberam tratamento
cirúrgico, sendo a causa de óbito diretamente relacionada com a patologia de
base dos doentes, concluindo que a patologia de base é o principal determinante
no prognóstico.
A complicação mais grave da pseudo-obstrução intestinal é a perfuração de ceco,
com mortalidade de 40 a 50%, indicando-se a cecostomia quando o diâmetro cecal
é maior que 12 cm ou a dilatação permanece por mais de três dias.
Tratamento
A terapia de suporte inclui: suspensão da dieta entérica, correção dos
desequilíbrios hidroeletrolíticos e drenagem nasogástrica1. Em caso de
dilatação do recto e sigmóide, um tubo rectal deve ser inserido e mantido para
drenagem. Medicações que afectem a motilidade cólica como opiáceos, anti-
colinérgicos e antagonistas dos canais de cálcio devem ser descontinuados, se
possível. A deambulação e movimentação dos doentes são encorajadas, para tentar
estimular a motilidade e promover o esvaziamento cólico8. O exame físico
seriado agregado à radiografia de abdomen diária ajudam a monitorizar ar a
evolução da doença.
O risco de perfuração cólica é maior com diâmetro do cego > 12cm e quando a
distensão estiver presente por mais de seis dias
10
. Os doentes com esta apresentação e aqueles que não melhoram após 24-48 horas
de terapia de suporte poderiam ser candidatos a intervenções.
Descompressão Farmacológica
Na ausência de sintomas de perfuração ou peritonite, a terapia medicamentosa
com neostigmina (parassimpaticomimético indireto) deve ser considerada como
escolha inicial. O suporte ao uso de neostigmina está no desequilíbrio na
regulação autonómica da função cólica que ocorre na pseudo-obstrução
intestinal.
Um estudo randomisado, duplamente cego, controlado com placebo
11
avaliou o uso de neostigmina em doentes com pseudo-obstrução intestinal com
diâmetro cecal maior que 10 cm e sem resposta ao tratamento conservador em 24h.
Resposta clinica foi observada em 10 de 11 doentes randomisados para receber
neostigmina e a média de tempo para resposta terapêutica foi de 4 minutos. A
redução média do diâmetro cecal (de cinco para dois cm) foi significativa no
grupo que usou neosigmina. Oito doentes não responderam à terapia inicial sendo
permitido o uso de neostigmina e todos tiveram descompressão prontamente. Dos
18 que receberam neostigmina, 17 tiveram resposta clínica com recorrência em
11% dos casos.
Descompressão Endoscópica
Indicada quando o tratamento conservador e o farmacológico falharem. Uma
revisão
12
avaliou os doentes com pseudo-obstrução intestinal tratados com colonoscopia.
Dos 292 doentes estudados, 69% tiveram sucesso na descompressão inicial,
determinada pela redução do diâmetro cecal na radiografia, sendo que, 40% dos
doentes tratados sem o tubo descompressor tiveram ao menos uma recorrência,
necessitando de colonoscopia adicional. Para aumentar o beneficio terapêutico,
a descompressão com tubo é fortemente recomendada. O índice de complicações é
de 1 a 5%.
Cecostomia Percutânea
Esta técnica deve ser individualizada principalmente em doentes que não
responderam ao tratamento conservador, farmacológico e colonoscópico13.
Descompressão Cirúrgica
A descompressão cirúrgica, que inclui cecostomia, colostomia ou ressecção é
associada a um mau prognóstico, possivelmente devido à sua aplicação ocorrer
somente em doentes com a forma mais severa da doença, que tenham falhado a
resposta aos demais tratamentos ou quando há suspeita de perfuração cólica ou
peritonite1.
Após o diagnóstico da síndrome foi instituído tratamento com descompressão
endoscópica e a paciente faleceu por complicações da doença de base,
confirmando que o prognóstico está relacionado diretamente à doença de base, a
qual geralmente é grave nos doentes com síndrome de Ogilvie.