Hepatite C aguda no profissional de saúde - revisão a propósito de um caso
clínico
INTRODUÇÃO
O virus da hepatite C (VHC) é uma das causas mais importantes de doença
hepática, responsável nomeadamente por hepatite crónica, cirrose,
descompensação hepática e carcinoma hepatocelular1. Estima-se que cerca de 3%
da população mundial esteja infectada por este vírus1. A hepatite C aguda é
habitualmente assintomática e de difícil diagnóstico, ocorrendo as formas
sintomáticas em apenas 10 a 15% das pessoas infectadas2.
Na grande maioria dos casos (55 a 85%), a infecção evolui para formas
crónicas2,3. O Profissional de Saúde (P.S.) é infectado por via parentérica e/
ou através da exposição mucosa4-5. Neste grupo populacional, a hepatite C, para
além das repercussões clínicas descritas, pode ter consequências legais e
sociais. O objectivo da vigilância destes profissionais é possibilitar o
tratamento adequado no momento certo, evitando a evolução para formas crónicas.
A sua complexidade no que diz respeito aos aspectos epidemiológicos e a
cofactores que modificam a evolução tem dificultado, de alguma forma, a sua
prevenção e controlo. Os autores descrevem sucintamente um caso clínico
ilustrativo deste problema.
CASO CLÍNICO
MJMP, 22 anos, sexo feminino, aluna de enfermagem, sofreu uma picada acidental
a nível do 4º dedo da mão esquerda com agulha oca, utilizada em doente com
hepatite C crónica. Este último, apesar de ter actividade vírica, não tinha
indicações para tratamento.
Para além da retirada imediata das luvas, medidas de desinfecção locais e
colheitas para anti-HBs (anticorpo de superfície do vírus da hepatite B)
(vacinada), anti-VHC (anticorpo para o vírus da hepatite C) e anti-VIH
(anticorpo para o vírus da imunodeficiência humana), a profissional de saúde
foi aconselhada e orientada para consulta de Virologia, em Hospital de Dia de
Doenças Infecciosas do Centro Hospitalar de Coimbra. Verificou-se imunidade
para o VHB e ausência de anticorpos para VHC e VIH. Na avaliação da 4ª semana
estava assintomática, tendo realizado colheitas que revelaram: AST 18 UI/ml e
ALT 21 UI/ml, anti-VHC negativo e RNA-VHC positivo pela técnica de Polymerase
Chain Reaction-Real Time (PCR-RT) – 6 601 126 UI/ml (6,8 log), o que levou a
testar a amostra sanguínea basal pela mesma técnica, que revelou RNA-VHC
indetectável. Tratava-se de uma hepatite C aguda, demonstrada por técnica
virológica. A aluna manteve-se assintomática, pelo que foi aconselhada
vigilância clínica e controlo laboratorial, prevendo-se novos testes
bioquímicos, serológico (anti-VHC) e virológico (RNA-VHC) 4 semanas depois. Um
pouco antes da 8ª semana iniciou um quadro de icterícia, astenia e colúria,
apresentando nesta altura os seguintes valores bioquímicos: AST1250 UI/ml, ALT
2534 UI/ml, BT 67 μnol/L. O RNA-VHC da 8ª semana revelou um valor de 338 939
UI/ml (5,5 log). Nesta altura e por ter havido uma descida de 1,3 log em 4
semanas, optou-se mais uma vez por vigilância clínica e laboratorial semanais.
O genótipo do VHC não foi determinado por não se ter tomado qualquer decisão
terapêutica. Houve uma boa evolução clínica e o controlo da 12ª semana mostrou
uma descida nos valores das aminotransferases (ALT 75 UI/L, AST 38 UI/L) e um
RNA-VHC de 97 UI/ml.
O controlo realizado 1 mês depois (à 16ª semana) revelou virémia indetectável e
bioquímica sem alterações. O surgimento do quadro clínico acompanhado de
icterícia e o baixo valor do RNA-VHC à 12ª semana, indiciavam possibilidade de
resolução espontânea do VHC, o que aconteceu com esta profissional de saúde.
Esta desenvolveu hepatite C aguda, resultante de um procedimento invasivo, isto
é picada acidental com agulha proveniente de colheita de sangue a fonte
positiva para o VHC, o que ilustra a importância da hepatite C como doença
ocupacional.
DISCUSSÃO
Apesar das mudanças epidemiológicas que se têm vindo a assistir, este vírus
continua a ser transmitido fundamentalmente por via parentérica, isto é, drogas
injectáveis, equipamentos médicos contaminados (ex: unidades de diálise),
tatuagens, etc, e mais raramente através de transfusão de sangue, via sexual ou
perinatal1,6. Alguns procedimentos cosméticos, religiosos ou culturais
continuam a levantar controvérsias7.
O risco de transmissão do VHC é determinado pela infecciosidade do fluido
orgânico e pela natureza dos tecidos expostos. Após exposição, a probabilidade
de infecção depende fundamentalmente dos seguintes factores: a) via de
transmissão, isto é, pele intacta, mucosa ou via percutânea, b) concentração
das partículas virais no fluido implicado8, e c) volume de material
infectante5. A profundidade da picada, a utilização de agulha oca e a co-
infecção pelo VIH, são os três factores mais importantes associados a um maior
risco de transmissão1,9.
No caso do Profissional de Saúde a infecção ocorre sobretudo por exposição ao
sangue através das vias percutâneaou mucosa. Outros fluidos podem considerar-se
potencialmente infecciosos (LCR, líquido sinovial, pleural, peritoneal e
amniótico)5, não havendo, no entanto, qualquer registo de infecção após a
exposição aos mesmos. Também e apesar de alguns casos relatados de exposição a
grandes volumes de sangue a nível de pele intacta, nenhum caso foi identificado
através desta via5. A transmissão através de exposição mucosa foi descrita em
casos em que grande quantidade de sangue salpicou os olhos de um P.S.8
Segundo o Centers for Disease Control (CDC) o risco de transmissão do VHC após
picada com agulha contaminada é cerca de 5 a 6 vezes superior ao do VIH (1,85
versus 0,36%)5,8, apesar de estudos mais recentes registarem taxas mais baixas
(0,2 - 0,5%)10-13. Obviamente há que ter em conta vários factores que podem
modificar estas percentagens: os viriões penetram através da pele e este
inóculo é significativamente mais infeccioso se a exposição resultar de uma
picada com agulha oca ou caso se trate de uma fonte com altos níveis de RNA-
VHC8. Após a transmissão do VHC a evolução está dependente de factores do
hospedeiro e de factores virais. O modo de transmissão e a idade de aquisição
também alteram o curso desta infecção1.
Apesar da detecção da hepatite C aguda ser difícil, visto ser na maioria dos
casos assintomática, 15 a 20% do total das hepatites agudas diagnosticadas são
da responsabilidade do VHC14-16. O quadro de hepatite aguda ocorre em geral, 2
a 12 semanas após a exposição (média 7 semanas) e dura 2 a 12 semanas17, 10 -
15% dos indivíduos com hepatite C aguda têmuma resolução espontânea18, sendo
esta probabilidade maior nos casos sintomáticos comparativamente com as formas
subclínicas ou assintomáticas1,15,19-22. Nas formas sintomáticas, a clearance
viral ocorre em quase metade dos casos, tendo lugar por volta da 10ª - 12ª
semana após o início dos sintomas15. Inversamente alguns estudos demonstraram
que em nenhum dos indivíduos assintomáticos ocorreu a eliminação espontânea do
VHC15. (Fig. 1)
Fig. 1. Exposição ao VHC.
O quadro clínico da hepatite aguda é geralmente precedido de fadiga, mialgias,
náuseas, vómitos, dores abdominais ou febre baixa15,23. Este quadro é ligeiro
na maioria dos casos, podendo raramente assumir formas mais severas e
prolongadas ou evoluir para formas fulminantes1,15. Estas últimas ocorrem
sobretudo na presença de alguns cofactores, nomeadamente em utilizadores de
drogas endovenosas (UDEV) e na infecção concomitante pelo VIH24. Só em 10 a 20%
dos casos ocorre icterícia19, embora alguns estudos revelem percentagens mais
elevadas em UDEV e em idosos (69%)1. Parece que os doentes que desenvolvem
icterícia tendem a ter taxas maiores de resolução espontânea do VHC,
comparativamente com os que têm infecção assintomática1,25. A icterícia, bem
como a presença de sintomas de um modo geral, parecem ser bons indicadores de
resposta imune do hospedeiro, originando maior probabilidade de clearance
viral25.
Outros factores têm sido descritos como estando associados a uma maior taxa de
resolução espontânea, tais como sexo feminino15,25, raça branca
15,26
, genótipo 327, virémia baixa28 e um rápido declínio do valor do RNA-VHC nas
primeiras 4 semanas20, facto verificado no caso acima descrito. Pelo contrário
a raça negra e a co-infecção pelo VIH estão associadas a uma mais elevada taxa
de persistência da infecção1.
No caso descrito, o sexo feminino, a idade e a raça branca constituíram
factores favorecedores da resolução espontânea do VHC.
Vários mecanismos parecem contribuir para a persistência do vírus, tais como
uma ineficácia da resposta das células T perante a infecção viral, elevada taxa
de mutações, desenvolvimento de quasispécies29 e uma possível interacção entre
as proteínas virais e variadas proteínas intracelulares do hospedeiro15,25.
A eliminação espontânea do VHC tem sido observada nos primeiros meses desta
interacção entre o vírus e o hospedeiro. Uma vez estabelecida a infecção
crónica, a resolução espontânea é rara, daí este período inicial ser de crucial
importância na evolução da doença15.
Em geral, em todos aqueles em que a infecção resolve espontaneamente, os níveis
de RNA-VHC permanecem indetectáveis25.
Apesar de não serem comuns valores das aminotransferases superiores a 10 vezes
o valor normal (VN), há casos registados com valores acima de 20 VN15,23,o que
se verificou no caso acima relatado.
Não há teste serológico específico para a detecção da hepatite C aguda. A
presença de anticorpos isolados não tem valor diagnóstico e muitas vezes aquela
só é suspeitada quando os indivíduos já têm anti-VHC positivo. Num Profissional
de Saúde torna-se mais fácil a documentação da infecção após a ocorrência de
uma exposição acidental. A seroconversão num indivíduo previamente negativo é a
forma de estabelecer o diagnóstico correcto.
Assim, é sugestivo de u ma hepatite C aguda, a presença de pelo menos um dos
seguintes critérios: a) exposição conhecida ou suspeita ao VHC nos 4 meses
precedentes, b) documentação de seroconversão recente (anti-VHC negativo para
anti-VHC positivo), c) elevação da ALT (> 20 VN) e d) exclusão de outras causas
de doença hepática1, 23.
O IgM anti-VHC não provou ser um bom marcador, visto que as suas concentrações
permanecem mais ou menos constantes, quer nas formas agudas, quer crónicas1,30.
O IgG anti-VHC é detectável apenas por volta dos 2 a 3 meses após a exposição,
embora técnicas mais recentes o detectem mais precocemente. São os testes
qualitativos ou quantitativos para detecção do RNA-VHC, que nos permitem
estabelecer o diagnóstico, sendo por vezes os únicos testes positivos na
infecção aguda (ex: real-time (RT) PCR, branched DNA (bDNA), transcription-
mediated amplification (TMA))1. A detecção do RNA-VHC sem a presença do
anticorpo, sugere uma hepatite C aguda, especialmente quando seguida de
seroconversão.
No momento do acidente o P.S. deve realizar os chamados testes baseline,
nomeadamente bioquímica, Anti-VHC e RNAVHC5; a sua realização vai permitir
conhecer o status do profissional.
Durante o seguimento, a bioquímica e um teste virológico devem ser repetidos
entre as 2 e as 4 semanas; nesta altura, e devido à flutuação do RNA-VHC,
recomenda-se também a realização do anti-VHC, para que o teste virológico não
seja o único marcador nesta fase. Foi demonstrado no homem, a presença do RNA-
VHC entre os 3 e os 14 dias após a exposição ao vírus8,31-32. Um teste
virológico positivo entre a 5ª e a 6ª semana (pelo menos sem grande decréscimo
em relação ao valor inicial) traduz uma baixa probabilidade de clearance
viral23. A importância da repetição do RNA-VHC baseia-se, por um lado, na
ocorrência de casos raros de falsos positivos e, por outro lado, nas flutuações
que o RNA-VHC sofre no decurso de uma hepatite C aguda, o que reforça a
necessidade da sua realização algumas semanas mais tarde em todos os indivíduos
com resultado negativo mas com suspeita da infecção aguda8,30.
O controlo clínico e laboratorial depende da evolução, permitindo assim
acompanhar a necessidade de tratamento.
Se por um lado pode não ser necessário tratar um Profissional de Saúde que
poderá ter hipóteses de resolução espontânea, por outro lado, esta vigilância
permite evitar a evolução para a cronicidade (ver Proposta de Controlo
Laboratorial). (Quadro 1)
Quadro 1. Proposta de controlo laboratorial.
Todos os estudos realizados têm demonstrado que há benefício em tratar a
hepatite C aguda, ficando claramente reduzido o risco de evolução para a
cronicidade1,23,25,33. Num artigo em que são analisados 17 estudos, envolvendo
369 doentes tratados, foi demonstrada uma Resposta Viral Sustentada (RVS – RNA-
VHC indetectável 24 semanas após final do tratamento) em 62% nos doentes
tratados, comparativamente com 12% nos não tratados18. A possibilidade de cura
pode atingir os 91% nos indivíduos sintomáticos7. Jeackel et al obteve com IFN
alfa-2b em monoterapia, durante 24 semanas, uma RVS de 98%, independentemente
do genótipo, utilizando uma dose de indução diária de 4 semanas33.
Apesar de não estar bem definido qual a terapêutica ideal, o tratamento com
Interferão Peguilado (PEG-IFN) demonstrou melhores resultados comparativamente
com o IFN convencional23,25,34-35.
Enquanto Kamal et al em 2004, com a utilização do IFN convencional conseguiu
85% de RVS36, um estudo alemão mais recente, demonstrou em 89 doentes tratados
com PEG-IFN alfa-2b durante 24 semanas, uma percentagem global de cura de 71%,
que atingiu 89% (70/89), nos doentes com boa adesão ao tratamento23. Tal como
em outros estudos, o tratamento foi bem tolerado.
A questão mais importante é conhecer o timing apropriado. Os estudos até agora
realizados não são muitos e os tamanhos das amostras nem sempre suficientemente
demonstrativos. Não está bem definido se é melhor tratar imediatamente ou
aguardar até que haja indícios de que o doente vá ou não desenvolver uma
infecção crónica, não havendo infelizmente marcadores que nos façam predizer
esta evolução.
O estudo de Kamal25 que envolveu uma amostra importante de doentes (n = 175),
verificou uma RVS de 95,3%, 93,2%, 76,6%, respectivamente, consoante início da
terapêutica à 8ª, 12ª ou 20ª semana. Quanto à relação RVS/genótipo os
resultados foram: G1 - 72%, G2 - 100%, G3 - 93% e G4 - 84%. Nos indivíduos com
genótipo 1, a melhor RVS foi conseguida quando o tratamento foi iniciado à 8ª
semana, versus 12ª ou 20ª semana. No G4, não se verificaram diferenças entre a
8ª ou 12ª versus semana 20. O estudo sugere que, exceptuando no G1, iniciar o
tratamento da fase aguda à 8ª ou 12ª semana, não altera a eficácia do
tratamento.
Relativamente ao G4 e pelo facto da população portuguesa estar maioritariamente
infectada pelo G4 c/d37 o seu comportamento em termos de sucesso terapêutico
assemelha-se muito ao G1
38
, ao invés dos resultados apresentados por Kamal e outros autores39. Nesses
países o genótipo predominante é o 4a, que tem uma resposta à terapêutica, que
mais se aproxima do G2 e G3. Entre nós seria razoável, que a atitude perante o
genótipo 4 fosse semelhante à do genótipo 1.
Independentemente do momento em que deve iniciar o tratamento da hepatite C
aguda, parece que um período de 12 semanas permite uma RVS de 88,5%, com boa
tolerância e poucas descontinuações terapêuticas ou necessidade de ajuste de
dose25.
Segundo os dados de Kamal et al, no follow-up destes doentes tratados,
verificou-se que a resposta viral se mantém para além de 48 semanas após o
final do tratamento, sugerindo que o tratamento da infecção aguda reduz
claramente a evolução para formas crónicas25,40.
Concluindo e esquematizando as questões mais frequentes:
1) Qual o momento certo para iniciar tratamento, considerando a possibilidade
de resolução espontânea?
Admitindo que 1) a presença de RNA-VHC à 5ª - 6ª semana, com valores
sobreponíveis aos iniciais, traduz uma baixa probabilidade de resolução23 2) o
sucesso terapêutico não difere muito, com o início do tratamento à 8ª ou 12ª
(salvo no genótipo G1)25, uma estratégia razoável seria uma vigilância
apertada e iniciar tratamento à 12ª semana, nos casos sintomáticos, caso a
virémia continue detectável18,25, admitindo-se um início mais precoce (8ª
semana) nos indivíduos assintomáticos
7,35,41
e em indivíduos com G1 e virémias acima de 800 000 IU/mL42.
2) Qual o melhor esquema terapêutico?
O uso do PEG-IFN é indiscutível, pelos melhores resultados obtidos,
comparativamente com o Interferão convencional23,25.
A combinação de PEG-IFN + Ribavirina ainda não foi testada extensivamente de
forma a que permita concluir que o seu uso combinado seja melhor que o PEG-IFN
em monoterapia.
Os estudos já realizados demonstraram que a terapêutica dupla não modifica
muito os resultados35,36; no entanto, poder-se-á propor a terapêutica em
associação nos casos de coinfecção pelo VIH e genótipo 1, isto é, reservar a
Ribavirina para os casos mais difíceis de tratar1. (Quadro 2)
Quadro 2. Proposta de terapêutica.
3) Qual o tempo de tratamento?
Uma estratégia adequada seria tratar durante 12 semanas42 e reservar um tempo
mais prolongado de 24 semanas, se não se verificar resposta à 4ª semana e em
outras situações: genótipo 1, cargas virais elevadas, co-infecção pelo VIH, Não
Respondedor ou Relapser em esquema curto anterior. O tempo apropriado de
follow-up destes doentes deve ser de 1 ano após o tratamento, no sentido de
vigiar uma possível recaída18.
Como em tudo, a prevenção é a melhor estratégia para reduzir o risco e não
havendo vacina nem profilaxia pós-exposição, as medidas devem assentar em
princípios, tais como práticas/uso das precauções universais de forma correcta
e sistemática.