Doença de Behçet intestinal
Doença de Behçet intestinal
Intestinal Behçet's disease
Rosa Ferreira1, Emília Trigo2, Joana Torres1, Cláudia Agostinho1, Jorge
Fortuna2, Mário Júlio Campos1
1Serviço de Gastrenterologia, 2Serviço de Medicina Interna do Centro Hospitalar
de Coimbra, EPE – Hospital Geral
Correspodência
Doente de sexo feminino, de 64 anos, com história de osteoporose, dislipidemia
e coxartrose bilateral, foi internada no Serviço de Medicina Interna por
úlceras oro-genitais recorrentes, associadas a febre, sudorese nocturna e perda
ponderal de 10%, com cerca de 3 meses de evolução. Negava dor abdominal ou
alteração dos hábitos intestinais. Ao exame objectivo, apresentava-se febril
(38ºC) e hemodinamicamente estável. Observaram-se múltiplas úlceras dispersas
na mucosa oral, língua e palato, medindo entre 5 e 8 mm de diâmetro (Fig. 1).
Fig.1. Úlcera da mucosa oral do lábio inferior.
O abdómen era mole e depressível, ligeiramente doloroso à palpação da fossa
ilíaca e flanco direitos. Laboratorialmente destacavam-se leucopenia de 3,05 x
103/iL (VR 4 - 10), hipoalbuminemia de 27 g/L (VR 35 - 50), elevação da
velocidade de sedimentação de 100 mm/h (VR < 20) e da proteína C reactiva de >
9 mg/dL (VR < 0,5). Por suspeita de doença linfoproliferativa realizou TC
toraco-abdominal que mostrou espessamento e irregularidade das paredes do íleon
terminal e cego. Neste contexto, foi referenciada ao Serviço de
Gastrenterologia para realização de colonoscopia com ileoscopia terminal. No
exame endoscópico, visualizou-se, no íleon terminal, uma úlcera escavada,
irregular, de fundo fibrinoso, com maior eixo no sentido longitudinal,
atingindo cerca de 20 mm (Fig. 2).
Fig.2. Úlcera profunda e longitudinal do íleon terminal (seta).
No cólon ascendente e transverso foram observadas, ainda, duas úlceras aftóides
(Fig. 3). As biópsias revelaram um processo inflamatório crónico da lâmina
própria, sem evidência de granulomas. Os marcadores serológicos foram negativos
para ASCA e ANCA e positivos para HLA-B51.
Fig. 3. Úlcera aftóide no cólon transverso
O teste patérgico revelou-se positivo.
A presença de úlceras oro-genitais recorrentes associadas a um teste patérgico
positivo preencheram os critérios estabelecidos pelo InternationalStudy Group
for Behçet’s Disease
1
.
Embora a positividade para HLA-B51 não seja patognomónica desta patologia, ela
corrobora o diagnóstico. A doente foi medicada com prednisolona 0,5 mg/kg/dia
com melhoria clínica e endoscópica objectivada às 4 semanas.
A doença de Behçeté numa vasculite sistémica, cujas manifestações típicas
incluem úlceras orais e genitais e alterações oculares
2
. Cerca de 3 a 16% dos doentes apresentam envolvimento gastrointestinal, que
pode ocorrer ao longo de todo o tubo digestivo2. A sintomatologia mais comum
consiste em dor abdominal, diarreia, hemorragia digestiva e perda de peso
3
. A doença de Behçetintestinal é usualmente acompanhada de lesões ulceradas no
intestino delgado e no cólon3. O achado endoscópico típico caracteriza-se pela
presença de algumas úlceras profundas, arredondadas, de margens bem
delimitadas, localizadas na região ileo-cecal3. Menos frequentemente, tal como
no presente caso, estas úlceras podem adquirir morfologias longitudinais,
ovaladas, irregulares ou de tipo aftóide, tornando difícil o seu diagnóstico
diferencial com a doença de Crohn
3-4
.
O tratamento farmacológico da doença de Behçetintestinal consiste em
aminossalicilatos, corticoesteróides, imunossupressores, nutrição entérica e
parentérica total, de acordo com a gravidade da doença
5
. O tratamento cirúrgico, por sua vez, é recomendado quando surgem complicações
(estenose, fístula ou hemorragia severa) ou refractariedade ao tratamento
médico5. No caso descrito, a presença de febre, elevação da proteína C reactiva
e da velocidade de sedimentação associadas à profundidade da úlcera ileal
justificou a opção da corticoterapia.
Em suma, embora o envolvimento intestinal da doença de Behçetseja raro, pode
surgir com escassos sintomas gastrointestinais, o que atribui à colonoscopia
com ileoscopia terminal um papel essencial não só para o diagnóstico, mas
também para avaliação da gravidade desta patologia.