DPOC agudizada ou algo mais: Caso clínico
Introdução
Gustav Killian deu início à era da broncoscopia em 1897, quando procedeu à
extracção de um osso de porco da traqueia de um agricultor alemão usando um
esofagoscópio
1
.
Desde então, a broncoscopia tornou'se uma das pedra angulares da investigação
pneumológica e um auxiliar indispensável na abordagem diagnóstica e terapêutica
de adultos e crianças com suspeita de aspiração de corpo estranho.
A aspiração de corpo estranho para as vias aéreas é mais frequente em crianças,
sendo que mais de 80% dos casos ocorrem em doentes com menos de 15 anos
2
. Crianças com menos de 1 ano, e adultos com mais de 75 anos, apresentam um
risco acrescido de morte em consequência de aspiração de corpo estranho
2
. A apresentação clínica no adulto é, em contraste com as crianças, geralmente
subtil, e o diagnóstico requer uma cuidadosa história clínica e exame físico,
bem como o uso judicioso da broncofibroscopia.
Caso clínico
Doente do sexo feminino, 45 anos, portadora de síndroma de Down e com
antecedentes de DPOC.
Enviada, no espaço de cinco dias, repetidamente ao SU do HS Marcos, por tosse
produtiva e agravamento progressivo de quadro de dificuldade respiratória, que
respondiam inicialmente à terapêutica broncodilatadora instituída.
Acabava por ter alta após ajuste do tratamento-base, sem, no entanto, ficar no
seu estado clínico habitual. Na última observação urgente, face ao carácter e
recorrência das queixas, à resposta menos que suficiente às medidas aplicadas e
à verificação da existência de possível estridor e cianose labial, decide'se
pelo seu internamento. Neste episódio realiza Rx tórax (Fig. 1), que sugeria
hiperinsuflação do hemitórax direito, e estudo analítico com gasimetria
arterial que evidenciaram elevação dos marcadores de fase aguda e acidose
respiratória com retenção importante de CO2 (Quadro I). Ainda antes de ser
admitida a internamento, e dado apresentar novo sinal clínico, o estridor, foi
solicitada a observação por ORL, de modo a descartar obstrução alta das vias
respiratórias, não sendo aparente, na avaliação realizada, qualquer alteração
que pudesse explicar o quadro. A doente é então internada com o diagnóstico
provisório de DPOC agudizada, possivelmente complicada por obstrução das vias
aéreas superiores por edema e deformidades esqueléticas e da postura
associadas, a necessitar de clarificação posterior.
Durante o internamento verifica-se uma resposta pouco satisfatória às medidas
instituídas, mantendo-se o quadro de estridor, inclusive recorrendo a
adrenalina aerossolizada e a corticoterapia inalada e sistémica. Este facto
adensa ainda mais as suspeitas relativamente à etiologia do quadro, motivando o
prosseguimento da investigação pelo recurso a medidas mais invasivas, no caso a
broncofibroscopia.
Entretanto, e enquanto aguardava a realização de broncofibroscopia, é realizada
TC do tórax (Fig. 2), na qual é sugerida a presença de obstrução parcial do
brônquio principal direito, possivelmente por rolhões de secreções.
Finalmente, é realizada a broncofibroscopia que acabou por revelar a presença
de corpo estranho na emergência do brônquio principal direito (Fig. 3),
identificado após a sua remoção como elástico de fralda. Após extracção do
referido corpo estranho, verifica-se uma resolução rápida e completa do quadro
clínico da doente, acabando esta por ter alta completamente assintomática,
necessitando apenas da sua terapêutica de base em face dos antecedentes
clínicos conhecidos.
Discussão
O diagnóstico da aspiração de corpo estranho não constitui desafio importante,
casos agudos em que estão implicados objectos de maiores dimensões, que
geralmente conduzem à oclusão de um brônquio principal. No entanto, este torna-
se bastante mais complicado no caso de aspiração de pequenos objectos ou, se o
doente for incapaz de se exprimir com clareza, como são exemplo os recém-
nascidos, crianças ou indivíduos mentalmente incapacitados
3
, como era o caso da doente em causa.
Apenas por si, a simples suspeição pode constituir o mais importante passo para
o estabelecimento do diagnóstico e, a prospecção anamnésica, apontando nesse
sentido, nunca deve ser negligenciada
4
. No caso vertente, a história clínica fornecida pelo cuidador, pessoa atenta
mas que nunca poderia sugestionar sobre a possibilidade da aspiração de corpo
estranho, associada aos antecedentes questionáveis de DPOC, levou linearmente
ao diagnóstico, embora erróneo, de agudização da condição clínica preexistente,
que é bem mais comum. Só a atenção prestada a sinais pouco habituais, como o
estridor e a cianose recorrentes, a monitorização da resposta ao tratamento e a
valorização do backgroundda doente permitiram pôr em causa o diagnóstico mais
atractivo e fácil e colocar como provável a hipótese de aspiração de corpo
estranho, inquestionável após recurso à broncofibroscopia. Esta também
possibilitou a exclusão de outra possibilidade, como seria a obstrução dinâmica
das vias aéreas facilitada pela dismorfia torácica e agravadapela inflamação
desencadeada por infecção intercorrente.
Retrospectivamente, e antes do diagnóstico de certeza, somos levados a admitir
como elementos positivos do quadro que contrapõem a aspiração do corpo estranho
à agudização da DPOC, a resposta insuficiente ao tratamento optimizado, a
ausência de processo infeccioso inicial evidente, bem como a ineficácia da
antibioterapia ambulatorial, o aparecimento de estridor recorrente, a
assimetria radiológica no padrão da transparência normal dos pulmões e a
sugestão de alteração da permeabilidade das vias aéreas por TAC do tórax.
Conclusão
O presente caso pretende ilustrar duas situações particulares a ter presente na
prática clínica. Antes de mais, a história e os antecedentes patológicos,
podendo condicionar o estabelecimento diagnóstico definitivo, devem ser
questionados sempre que a apresentação clínica é atípica, porque nem sempre o
que parece é. Em segundo lugar, e sobretudo nos indivíduos que apresentam
défices cognitivos e da comunicação, o aparecimento de quadros de dificuldade
respiratória aguda deve levar a considerar a hipótese de aspiração de corpo
estranho, mesmo contra toda a evidência.