Exposição das crianças ao fumo ambiental do tabaco (FAT). Avaliação de uma
intervenção preventiva
Introdução
A exposição das crianças ao fumo ambiental do tabaco (FAT) está associada a uma
série de problemas para a sua saúde, que vão desde tosse, pieira e dispneia,
até um maior risco de infecções agudas das vias aéreas inferiores (bronquiolite
e pneumonia), infecções respiratórias de repetição, bem como indução e
exacerbação de asma
1
.
Apesar da gravidade para a saúde das crianças, os estudos mostram que existe
uma elevada prevalência de crianças expostas ao FAT.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estimava, em 1999, que cerca de metade das
crianças existentes no Mundo (700 milhões) respiravam ar contaminado pelo fumo
do tabaco, especialmente nas suas casas2.
Os principais responsáveis pela exposição das crianças ao fumo ambiental do
tabaco no domicílio são os pais. Um estudo de grande dimensão populacional
(Third National Health and Nutrition Examination Survey–NHANES -III), realizado
nos EUA entre 1988 e 1994, incluindo 11 728 crianças com idades compreendidas
entre os 2 meses e os 11 anos, mostrou que 38% foram expostas ao FAT, pelo
facto de os pais fumarem; 23% tinham sido expostas a tabagismo passivo durante
a gestação e 19% foram expostas a ambos (tabagismo gestacional e FAT)
3
.
Um estudo realizado em Inglaterra, nos anos de 1988 (n=1179) e 1996 (n=576), em
crianças com idades compreendidas entre os 11 e os 15 anos, mostrou que, em
1988, 52% das crianças estavam expostas ao FAT no domicílio, tendo-se registado
uma ligeira redução deste valor em 1996, para os 45%
4
.
Segundo o último relatório do Surgeon Generaldos EUA, quase 22 milhões (60%)
das crianças americanas, com idades compreendidas entre os 3 e os 11 anos,
estão expostas ao FAT. De acordo com um estudo norte-americano realizado pela
OMS e pela CDC (Center for Disease Control and Prevention), que inquiriu
adolescentes entre os 13 e os 15 anos, pertencentes a 132 países, estima-se que
43,9% desses adolescentes estejam expostos ao FAT no domicílio e 55,8% nos
espaços públicos5.
Um estudo realizado em Portugal, em 2002/2003 (em adolescentes a frequentar o
7.º, 8.º e 9.º anos), numa amostra constituída por 1141 alunos de 12-15 anos de
idade, mostrou que 38% estavam expostos diária ou ocasionalmente ao fumo
ambiental do tabaco, pelo facto de os seus familiares mais próximos (pai, mãe
ou irmão) fumarem diária ou ocasionalmente em casa. Os dados deste estudo
permitem concluir, também, que o consumo de tabaco pelos pais e pelas mães,
particularmente no domicílio, é um factor microssocial de risco, relacionado
com o consumo de tabaco pelos filhos
6
.
Num estudo realizado numa amostra de cerca de 525 alunos de Rio Tinto,
constatou-se que em 23,4% dos domicílios existe pelo menos um dos progenitores
a fumar diária ou ocasionalmente em casa
7
. Além disso, verificou-se também que cerca de 51,2% das mães fumadoras fumavam
diária ou ocasionalmente em casa e que o mesmo acontecia com 56% dos pais.
A 1 de Janeiro de 2008 entrou em vigor, em Portugal, a lei 37/2007, de 14 de
Agosto, de controlo do tabagismo, que regulamenta aspectos tão diferentes como
a sensibilização e educação para a saúde, a proibição da publicidade a produtos
de tabaco, a proibição da venda de tabaco a menores, etc. Esta lei tem como
principal finalidade a prevenção do tabagismo e a protecção da exposição
involuntária ao fumo do tabaco.
Nesse sentido, a lei contempla a proibição do consumo de tabaco nos locais de
trabalho e recintos públicos fechados ou quase fechados, embora abra excepções
que certamente diminuirão o seu impacte na concretização dos objectivos para
que foi criada. O facto de a lei permitir que se possa fumar em alguns locais
da restauração e similares faz com que ainda haja muitos clientes e sobretudo
trabalhadores expostos ao fumo passivo. Não obstante as excepções contempladas,
esta lei veio dar uma protecção considerável aos não fumadores relativamente à
exposição involuntária ao fumo do tabaco.
No entanto, é preciso ir mais longe e desenvolver um conjunto de medidas
legislativas, educativas e terapêuticas, entre outras, para proteger as
crianças dos efeitos perniciosos do FAT. Todos os órgãos ou instituições que
acolhem crianças, todos os profissionais de saúde, os professores, educadores e
pais, entre outros, devem fazer esforços para reduzir a exposição das crianças
ao fumo ambiental do tabaco em qualquer lugar e, em particular, no domicílio.
É urgente sensibilizar os pais fumadores para que pelo menos não fumem dentro
de casa e não permitam que outros o façam. O objectivo é tornar os domicílios
locais 100% livres de fumo. Neste contexto, foi desenvolvida uma intervenção
preventiva, que procura proteger a saúde desta população vulnerável.
O Domicílios Sem Fumoé um programa de prevenção da exposição das crianças ao
fumo ambiental do tabaco inspirado numa intervenção desenvolvida pela U.S.
Environmental Protection Agency,The ABCs of Secondhand Smoke. Tem como
principal finalidade aumentar o número de pais/mães que não fumam e/ou não
permitem que se fume em casa e no carro, capacitando os alunos a protegerem-se
desta agressão, sendo estes os promotores da mudança de comportamento dos pais.
O programa foi desenhado para ser aplicado em contexto escolar, na sala de
aula, pelos professores, que receberam formação prévia para o efeito, e é
constituído por cinco sessões:
1. Pequena abordagem aos perigos do fumo activo e passivo do tabaco (foi
fornecida aos professores uma apresentação sobre o tema);
2. Elaboração, pelas crianças, de pequenos trabalhos (cartas, desdobráveis e
funda mentalmente um dístico de não fumador) para a escola enviar aos pais
fumadores;
3. Exercícios de role -playing,em grupos de dois alunos, nos quais um
representa o papel de criança e outro de pai/mãe, onde a criança tenta
convencer o pai ou mãe a não fumar em casa;
4. Envio de um desdobrável aos pais sobre fumo activo e passivo;
5. Assinatura de uma declaração entre pai e filho, em que o primeiro se
compromete com a criação de um domicílio sem fumo.
O objectivo principal desta investigação é avaliar a eficácia deste programa de
intervenção preventiva, dirigida a pais e encarregados de educação, com a
finalidade de proteger as crianças da exposição ao fumo ambiental do tabaco no
domicílio.
Material e métodos
O estudo foi realizado com alunos do 4.º ano de 32 escolas do 1.º ciclo do
ensino básico, integradas em cinco agrupamentos de escolas do concelho de
Braga, no ano lectivo de 2007/2008. Trata-se de um estudo pré-experimental, com
dois momentos de avaliação (antes e depois da implementação do programa). No
primeiro momento de avaliação, o grupo era constituído por 795 alunos (de uma
população de cerca de 2000 alunos) e, no segundo momento, por 737. As escolas
que integraram o estudo foram as que manifestaram interesse em participar no
programa, após uma reunião realizada para a apresentação deste. Os
coordenadores da educação para a saúde dos agrupamentos de escolas envolvidos
participaram numa sessão de formação sobre a implementação do programa e sua
avaliação, onde receberam os materiais necessários (questionários,
desdobráveis, declaração de compromisso). Foi pedida autorização à Direcção
Regional de Educação do Norte – delegação de Braga, para a aplicação do
questionário aos alunos. Na primeira fase, os alunos preencheram o questionário
(pré-teste) em contexto de sala de aula. Seguidamente, procedeu-se à aplicação
do programa Domicílios sem Fumopelos professores das turmas. No final (cerca de
dois meses depois, variando no entanto de escola para escola), o mesmo
questionário foi aplicado como pós-teste. Foi utilizado um questionário de
autorrelato, utilizado noutros estudos por Precioso, Calheiros e Macedo
(20056). É constituído por questões relativas aos dados demográficos (sexo e
idade) e oito questões de escolha múltipla, que visam avaliar a prevalência de
fumadores nos pais, a prevalência de pais, irmãos ou outros conviventes
fumadores no domicílio, a atitude das crianças perante o fumo passivo e o
consumo de tabaco, e o consumo de tabaco nas crianças e a sua intenção de
fumar.
Os dados recolhidos foram introduzidos e tratados através do programa de
análise estatística Statistical Package of Social Sciences (versão 15.0 para
Windows). As comparações entre momentos foram feitas utilizando o teste do qui-
quadrado, por se tratarem de variáveis de categoria.
Resultados
Amostra
No primeiro momento de avaliação, dos 795 alunos que preencheram o
questionário, 48,6% é do sexo feminino e 51,4% do sexo masculino.
A média de idades é de 9,14 anos + 0,65 anos. No segundo momento de avalia ção
houve uma mortalidade da amostra de 7,3% (N=58), ficando esta constituída por
737 participantes, dos quais 47% são do sexo feminino e 53% do sexo masculino.
A média de idades é de 9,63 anos + 0,70 anos (Quadro I).
Quadro I – Caracterização demográfica da amostra
Consumo de tabaco nos pais
No primeiro momento de avaliação, 15,5% dos alunos percepcionavam que a mãe
fumava e 37,0% que o pai era fumador. Constata-se que no pós-teste essas
percentagens não se alteraram significativamente (15,9% para as mães e 35,3%
para os pais), ou seja, não existem diferenças estatisticamente significativas
entre o pré e o pós-teste relativamente à prevalência de mães (p=0,886) e pais
fumadores (p=0.511) (Quadro II).
Quadro II – Prevalência de mães e pais fumadores declarada pelos alunos da
amostra
Consumo de tabaco no domicílio, na amostra total
Pelos dados do Quadro III e da Fig. 1, podemos constatar que, no pré-teste,
14,2% das crianças relatou que pelo menos um dos conviventes (pai, mãe, irmão
ou outro) era fumador diário, no domicílio, e que 28,0% fumava ocasionalmente
em casa. Assim, aproximadamente 42,2% das/os alunas/os estavam expostas ao FAT,
diária ou ocasionalmente, pelo facto de pelo menos um dos conviventes fumar em
casa. No pós-teste, a percentagem de crianças que declara que pelo menos um dos
conviventes fuma diariamente, no domicílio, desceu para 8,5% e, ocasionalmente,
caiu para os 24%. Podemos constatar que a prevalência de crianças expostas
diária ou ocasionalmente ao FAT, pelo facto de pelo menos um dos conviventes
fumar em casa, desceu dos 42,2% para os 32,6%, sendo os resultados
estatisticamente significativos (p=0,000). Quanto ao consumo de tabaco no
domicílio, relativamente à amostra total, observamos que, no pré-teste, 5,1%
dos alunos declarou que a mãe fumava diariamente em casa e 6,3% referiu que o
faziam ocasionalmente, ou seja, 11,4% dos alunos percepcionava que a mãe
fumava, diária ou ocasionalmente, no domicílio. No pós-teste, verificou-se que
a percentagem de alunos que declara que a mãe fuma diariamente em casa baixou
para 3,2% e a percentagem de mães que fumam ocasionalmente aumentou para 6,8%,
não sendo estas diferenças estatisticamente significativas.
Quadro III – Prevalência de fumadores regulares e ocasionais no domicílio
declarada pelos alunos da amostra, no pré e no pós-teste.
Fig. 1 – Prevalência de conviventes (pai, mãe, irmão e/ou outro) fumadores
regulares e ocasionais no domicílio, na amostra total, declarada pelos alunos,
no pré e no pós-teste
Não se registaram diferenças estatisticamente significativas entre a
prevalência de mães fumadoras, no domicílio, antes e depois da aplicação da
intervenção (p=0,191).
Em relação aos pais, 9,2% dos alunos referiu que eles fumavam diariamente em
casa e 16,6% ocasionalmente. No pós-teste, a per centagem de alunos/as que
declara que o pai fuma diária ou ocasionalmente foi de, respectivamente, 5,6 e
13,2%, sendo estas diferenças estatisticamente significativas (p=0,003).
Consumo de tabaco no domicílio, entre os pais fumadores
Analisando apenas os dados dos filhos de pais e mães fumadores/as, constatamos
que, relativamente às mães, no pré-teste, 32,2% dos filhos de mães fumadoras
percepcionava que esta fumava diariamente em casa e 34,8% o fazia
ocasionalmente, ou seja, 67,0% dos alunos filhos de mães fumadoras relatava que
a mãe fumava diária ou ocasionalmente em casa. No pós-teste, constatou-se que
20,2% dos alunos filhos de mães fumadoras referem que as suas mães fumam
diariamente em casa e 42,2%, ocasionalmente, ou seja, 62,4% dos alunos filhos
de mães fumadoras percepciona que a mãe fuma diária ou ocasionalmente em casa
(Quadro IV e Fig. 2). Houve, assim, uma redução da percentagem de mães que
fumam diariamente no domicílio e um aumento da percentagem de mães que o fazem
ocasionalmente, não sendo estas diferenças estatisticamente significativas
(p=0,126).
Quadro IV – Prevalência de pais e mães fumadores, que fumam no domicílio,
declarada pelos alunos
Fig. 2 – Prevalência de mães fumadoras, que fumam no domicílio, declarada pelos
alunos no pré e no pós-teste
Em relação aos pais, no pré teste, 25,0% dos alunos filhos de pais fumadores
referia que estes fumavam diariamente em casa e 43,7% o faziam ocasionalmente,
ou seja, cerca de 68,7% dos alunos filhos de pais fumadores percepcionava que o
pai fumava diária ou ocasionalmente em casa. No pós-teste, a percentagem dos
alunos que percepciona que o pai fuma diariamente em casa desceu para os 15,8%
e, ocasionalmente, baixou para os 35,8%. Assim, a percentagem de alunos filhos
de fumadores que percepciona que o pai fuma diária ou ocasionalmente em casa
baixou de 68,0% no pré-teste para 51,6% no pós-teste, sendo as diferenças
estatisticamente significativas (p=0,000) (Quadro IV e Fig. 3).
Fig. 3 – Prevalência pais fumadores, que fumam no domicílio, declarada pelos
alunos, no pré e no pós-teste
Conclusões
Com base nos dados apresentados, podemos inferir que a aplicação do programa
Domicílios sem Fumo foi eficaz na redução da prevalência de crianças expostas
ao fumo ambiental do tabaco, pelo facto de um dos conviventes (pai, mãe, irmãos
ou outros) fumar no domicílio, tendo contribuído para reduzir a prevalência de
crianças expostas ao fumo ambiental em cerca de 10%. A intervenção teve um
impacto visível na redução do consumo de tabaco pelos pais, no domicílio, onde
é de salientar uma redução significativa, e terá promovido uma modificação dos
hábitos tabágicos das mães nesse espaço, o que denotou um comportamento de
evitar fumar em casa, passando de fumadoras diárias para fumadoras ocasionais
e, outras, para não fumadoras.
Contudo, relativamente ao consumo de tabaco por parte dos pais, podemos
concluir que o programa Domicílios sem Fumo não teve efeitos a esse nível,
constatando -se que a prevalência de pais/mães fumadores/as não se alterou após
a sua aplicação.
É importante referir que um próximo estudo deverá contemplar a introdução de um
grupo de controlo, pois a sua ausência impede-nos de atribuir a redução do
consumo de tabaco no domicílio exclusivamente ao programa, não controlando
outras variáveis que possam ter tido influência, em particular a introdução da
lei de controlo do tabagismo e toda a discussão em volta das consequências à
exposição ao fumo passivo.
Verifica-se que, nesta amostra, há ainda cerca de um terço de crianças expostas
ao fumo ambiental do tabaco, o que, tendo em conta os riscos para a saúde das
crianças relacionados com a exposição passiva ao fumo do tabaco, demonstra que
continua a ser necessário tomar medidas de saúde pública para a protecção desta
população particularmente vulnerável, e revela a necessidade de investir em
intervenções nesta área. Tendo sido eficaz, sobretudo na alteração do
comportamento dos pais fumadores, no domicílio, este programa deve ser revisto
e melhorado, no sentido de incrementar os ganhos obtidos e poder expandir a sua
aplicação a outras escolas.
A via mais eficaz de proteger as crianças da exposição ao fumo passivo no
domicílio é promover a cessação do tabagismo nos pais ou pelo menos
sensibilizá-los para não fumarem em casa. Os pais devem ser o “alvo” principal
das acções de prevenção e tratamento do tabagismo.
É indispensável que a escola, mas também os médicos (médicos de família,
médicos de trabalho, cardiologistas, pneumologistas, obstetras, pediatras,
enfermeiros e psicólogos) se envolvam no tratamento da dependência tabágica,
como já o fazem relativamente ao controlo de outros factores de risco para a
saúde
8
. No caso concreto das crianças, os pediatras devem questionar os pais sobre os
hábitos tabágicos, o consumo de tabaco no domicílio, e em que condições, e
recomendar aos/às fumadores/as que parem de fumar e sobretudo que não fumem em
casa, pois é uma forma de infligir maus tratos à criança.
A escola tem, contudo, um papel importante na prevenção do consumo de tabaco
pelos pais no que se refere ao consumo domiciliário. A mensagem a enviar aos
pais é a de que não devem fumar pelo menos na presença dos filhos, jamais o
devem fazer em casa, pelos prejuízos que causam aos conviventes, e às crianças
em particular, e que devem ter uma atitude negativa em relação ao possível
consumo pelos filhos. É importante também que os acompanhem nas suas
actividades e que controlem o dinheiro que lhes dão. Esta mensagem pode ser
passada igualmente pelos próprios alunos (filhos ou educandos) através do seu
envolvimento em campanhas organizadas na escola, por exemplo no âmbito da
disciplina de Formação Cívica ou na Área de Projecto. É também uma forma de
ensinar os alunos a participar na vida social e comunitária.
As associações de pais devem ajudar a escola nos seus esforços preventivos,
organizando jornadas de sensibilização para os pais dos alunos. O programa
Domicílios sem fumo é promissor no que respeita à protecção das crianças no
domicílio. Tratando-se de um programa simples, e de fácil implementação, deve
ser melhorado, com vista a uma implementação generalizada e mais eficaz.