Envolvimento pulmonar na polimiosite
Introdução
A polimiosite e a dermatomiosite (DM) são classificadas como miopatias
inflamatórias idiopáticas (MII)1-3,5-7,8-10. A sua prevalência é estimada em 1
por 100 000 habitantes e é mais frequente no sexo feminino na relação de 2:1.
Nos adultos, o pico de incidência ocorre entre os 40 e os 50 anos, embora
qualquer faixa etária possa ser afectada2.
Em 1975 Bohan e Peter formularam critérios de classificação, que incluem2,4:
fraqueza muscular proximal e simétrica, elevação sérica de enzimas musculares,
electromiografia com alterações miopáticas, alterações características na
biópsia muscular com ausência de sinais histológicos de outras miopatias e
rashtípíco da DM (sinal de Gottron, sinal de Shawl, rashheliotrópico e
eritrodermia generalizada). O diagnóstico definitivo de PM é estabelecido
quando estão presentes quatro dos cinco primeiros critérios e o de DM quando
estão presentes os cinco critérios. Estão descritas três categorias de auto
anticorpos miosite específicos. Destes, os anticorpos anti-sintetase anti-Jo-
1 é o que está fortemente associados à doença intersticial pulmonar.
Os autores descrevem o caso clínico de uma doente com envolvimento pulmonar por
PM, o que é pouco frequente. Na literatura este envolvimento está descrito em
cerca de 10% dos casos de DM e PM e que agrava substancialmente o
prognóstico3,8-10.
Caso clínico
Doente de 75 anos, sexo feminino, raça caucasiana. Inicia as suas queixas um
mês antes do internamento com febre de predomínio vespertino quantificada em
38,5ºC, astenia, adinamia, anorexia não selectiva, artralgias das grandes
articulações, mialgias e mal-estar geral. Negava queixas de tosse,
expectoração, dispneia ou dor torácica. Por quadro de síncope precedida de
vertigens, náuseas e sudorese profusa, é conduzida ao serviço de urgência
central (SUC). No SUC realiza TC-CE que era normal para o grupo etário e tem
alta orientada para consulta de Medicina.
Na consulta de Medicina (2 semanas antes do internamento), é lhe diagnosticada
infecção urinária sem agente isolado e é empiricamente medicada com cefradina,
sem melhoria.
Por agravamento das queixas referidas, manutenção da febre, perda ponderal de
cerca de 2 kg, lipotimias de repetição e diminuição simétrica e proximal da
força muscular dos membros superiores e inferiores com impotência funcional, é
medicada com levofloxacina, que cumpriu durante uma semana, sem melhoria. Por
contínuo agravamento do quadro, apesar da medicação prescrita e pela evidência
de infiltrados pulmonares, é internada (25/07/08).
Negava outras queixas de órgãos ou sistemas, nomeadamente tosse, expectoração,
dor torácica ou palpitações.
Dos antecedentes pessoais apresentava colesteatoma do ouvido esquerdo (operado
há 48 anos), nódulo na corda vocal (seguida na ORL), hérnia do hiato com doença
do refluxo gastroesofágico, infecções urinárias de repetição, doença de Bowen
da perna esquerda (operada em Janeiro de 2005), cirurgia a cataratas em
Novembro de 2007 (complicada de uveíte e xeroftalmia do olho esquerdo).
Da história epidemiológica e social tratava-se de doente doméstica, não
fumadora, sem hábitos etílicos ou toxifílicos e sem contacto conhecido com aves
ou fungos, negava tuberculose ou outros contactos epidemiológicos.
Ao exame objectivo apresentava-se emagrecida, hemodinamicamente estável, com
tensão arterial e frequência cardiaca em decúbito de 100/50 mmHg e 83 bat/min,
respectivamente, e na posição ortostática de 92/65 mmHg e 115 bat/min,
respectivamente. À auscultação pulmonar, de referir fervores crepitantes no
terço inferior do hemitórax esquerdo. Os membros superiores apresentavam
acentuada diminuição proximal e simétrica da força acompanhada de hipotonia
muscular e impotência funcional e ainda dor à mobilização dos ombros. Os
membros inferiores apresentavam incapacidade funcional por dor à mobilização e
acentuada diminuição proximal e simétrica da força. Estas alterações
condicionavam total dependência da doente para todas as actividades. Sem outras
alterações ao exame físico.
Analiticamente salientava-se PCR 1,7 mg/dL, VS 63 mm/1ª h, AST 443 U/L, ALT 226
U/L, LDH 2445 U/L, CK 7489 U/L, CKMB 110 ug/L, D -dímeros 2,99 μg/ml e nitritos
positivos na urina. A gasometria em ar ambiente era normal, com paO2 77,1 mmHg.
ECG em ritmo sinusal com FC 93 bpm. A telerradiografia de tórax (PA e perfil)
mostrava infiltrado intersticial bibasal e área de hipotransparência
heterogénea de cerca de 3 cm de comprimento e 3 de largura na base do campo
pulmonar esquerdo, sem broncograma aéreo (Fig. 1).
Fig. 1 – Telerradiografia do tórax PA (A) e perfi l (B) na altura do
internamento
Durante o internamento efectuou:
' O estudo de auto imunidade que mostrou positividade para ANA na
diluição de 1/320. Os restantes anticorpos, incluindo anti-histonas,
anti-Ro, anti-LA, anti-Sm, anti Scl-70, anti-Jo-1, anti-RNP-Sm, anti-
RNP-70, anticentrómero, antimitocondria, antimúsculo liso e
anticitoplasma, foram negativos.
' Na urocultura isolou -se E. coli. A hemocultura foi negativa. A
mioglobina sérica, mioglobina urinária e aldolase estavam elevadas
(2899 μg/ml, 169 μg/ml e 83,4 U/L, respectivamente).
' O estudo serológico mostrou IgG positivos anti-CMV, anti
adenovírus e anti-herpes I. Os restantes anticorpos, incluindo C.
pneumoniae, C. burnetti, Echovírus, parvovírus, legionellae
Micoplasma pneumoniae,foram negativos.
' A prova de função respiratória (PFR) foi normal. A DLCO e a pressão
inspiratória e expiratória máxima estavam diminuídas (39 mmol/min/
kPa, 18 kPA e 28 kPa respectivamente).
' A broncofibroscopia (BFC) mostrou que tanto a pirâmide basal da
árvore brônquica direita como da esquerda apresentava confluência das
pregas posteriores, mucosa hiperemiada e secreções brônquicas (SB),
mucosas bilaterais em pequena quantidade, que se aspiraram. Realizou-
se lavado broncoalveolar (LBA) e biopsias brônquicas (BB) ao nível da
pirâmide basal direita. O exame bacteriológico, micobacteriológico e
micológico das SB, LBA e BB, tanto directos como culturais, foram
negativos. O exame anatomo-patológico das SB e BB foram negativos
para células neoplásicas.
' A tomografia computorizada (TC) de tórax (Fig. 2) mostrou reforço
do retículo, sobretudo nos lobos inferiores (LI), onde se vêem
imagens em vidro despolido e espessamentos interlobulares, bem como
opacidades dispersas de contornos mal definidos, uma ou outra com
alguns broncograma aéreo, de preferência justapleural e nos LIs.
Mostrou também discreto espessamento pleural à direita nos andares
superiores.
' Por se tratarem de lesões periféricas e a broncofibroscopia ter
sido negativa, realizou biópsia aspirativa transtorácica (BATT) ao
nível da lesão do lobo inferior esquerdo, que se complicou de lâmina
de pneumotórax e se resolveu com tratamento conservador.
' Para esclarecimento das lipotimias de repetição realizou holterde
24 horas, que foi normal, ecocardiografia transtorácica, que não
apresentava alterações significativas para o grupo etário (PSAP 37
mmHg) e TC cranioencefálica, que não evidenciou lesões isquêmicas
recentes.
' Para esclarecer as alterações hepáticas, fez o estudo de hepatites
virais que apenas mostrou positividade da IgG para hepatite A.
Realizou também ecografia hepática, que foi normal.
Fig._2 – TC de tórax na sequência da investigação
O relatório anatomopatológico de BATT mostrou que os aspectos observados eram
compatíveis com doença do interstício pulmonar. Dada a pequena dimensão da
amostra, não foi possível classificação mais precisa do tipo de doença em
causa.
Por apresentar diminuição acentuada da força dos grupos musculares proximais,
realizou electromiografia (EMG) que mostrou aspectos compatíveis com
diagnóstico de miosite. Realiza biópsia de músculo deltóide esquerdo, que
mostrou na coloração de HE e tricrómio de Gomori o músculo muito alterado com
muitas fibras em necrose, miofagocitose e infiltrado mononuclear predominante
nos septos do perimísio e componente perivascular com invasão de parede dos
vasos, sendo a maior parte do infiltrado CD8 +, concluindo tratar -se de
polimiosite (Fig. 3).
Fig. 3 – Imagens histológicas de biópsia muscular. A: coloração de
hematoxicilina-eosina. B: coloração de tricómio de Gomori
Instituiu-se corticoterapia (C) na dose de 60 mg/dia e azatioprina (A) na dose
de 50 mg/ /dia, com aumento progressivo das doses. Dois dias depois assistiu -
se a melhoria analítica (CK, AST, ALT, LDH e CKMB) significativa. Duas semanas
depois suspendeu-se azatioprina por intolerância hepática sintomática. Não
realizou imunoglobulina, por convicção religiosa. Cinco dias após a suspensão
de azatioprina, inicia micofenolato na dose de 1 gr 12/12 h, que ainda mantem,
com melhoria clínica, analítica (normalização de CK e redução muito importante
de AST, ALT, LDH e CKMB ' Quadro I) e radiológica (Fig. 4).
Quadro I– Evolução analítica
Fig. 4 – Telerradiografia PA de tórax duas semanas após início de micofenolato
Discussão
Os doentes com PM podem apresentar, além dos quatro primeiros critérios
descritos por Bohan e Peter, sintomas gerais, como febre, perda de peso,
fenómeno de Raynaud e poliartrite inflamatória não erosiva2,4. No doente em
estudo, estavam presentes os quatro critérios de Bohan e Peter para o
diagnóstico definitivo de PM e alguns dos sintomas gerais, como febre, perda de
peso e poliartrite inflamatória não erosiva. O compromisso respiratório pode
ocorrer na forma de doença intersticial pulmonar (padrão histológico de
pneumonia intersticial não específica, pneumonia intersticial usual, pneumonia
organizativa ou lesão alveolar difusa) ou por fraqueza dos músculos
respiratórios (da parede torácica e diafragma)3,8-10. No presente caso, o
compromisso respiratório ocorreu das duas formas, isto é, na forma de doença
intersticial pulmonar com padrão histológico de pneumonia organizativa
(documentada pela telerradiografia e TC de tórax) e na forma de fraqueza dos
músculos respiratórios (documentada pela PI e PE máximas na PFR).
Laboratorialmente observa-se elevação de CK, LDH, aldolase, AST e ALT. Os
doentes com miosite podem ter CKMB sérico elevado devido a regeneração
muscular. Oitenta a noventa porcento de doentes com MII têm anticorpos contra
miosina e mioglobina. Os anticorpos antinucleares (ANA) estão presentes em mais
de 80% dos doentes. Estão descritas 3 categorias de autoanticorpos miosite
específicos: anticorpos antissintetase (incluindo ant -Jo-1, são os mais comuns
e estão fortemente associados a doença intersticial pulmonar), anticorpos
antipartículas reconhecedoras de sinal (anti-SRP, associados a miopatia grave e
doença agressiva de difícil controlo) e anticorpos anti-Mi2 (ocorre apenas em
doentes com DM e respondem bem ao tratamento)2-4. Neste doente observou-se
elevação de todas as enzimas do músculo esquelético. O único autoanticorpo
positivo foi ANA. Mesmo o anti-Jo -1, que reflecte o envolvimento pulmonar, era
negativo. Este resultado negativo do anti -Jo -1 pode permanecer ao longo da
doença e significar apenas que a doença está no início, podendo positivar
posteriormente.
Na PFR observa -se alteração ventilatória do tipo restritivo, com diminuição
acentuada da capacidade de difusão2. Nesta doente estava presente a diminuição
de DLCO.
A EMG, útil na escolha do local da biopsia muscular, mostra aumento da
irritabilidade da membrana2,4 observada nesta doente.
Na telerradiografia de tórax observa-se infiltrado intersticial reticulonodular
predominante nas bases. Na TC de tórax pode observar-se vidro despolido,
consolidação, opacidades lineares irregulares ou favo-de-mel2,3,8-10.
Na PM não há deposição de imunocomplexos, a resposta é mediada por células
citotóxicas CD8+ e o infiltrado celular é predominantemente intrafascicular. As
fibras musculares alteradas estão espalhadas ao longo do fascículo.
Contrariamente, a DM é considerada como sendo mediada por resposta humoral onde
o infiltrado inflamatório composto por linfócitos B e T CD4+, se localiza
predominantemente na região perifascicular, podendo causar atrofia e fibrose do
fascículo. As fibras musculares alteradas são usualmente agrupadas numa porção
do fascículo, sugerindo microenfartes2,4. Neste doente, a biópsia muscular,
onde se observou que a maior parte do infiltrado inflamatório era CD8 positivo,
estabeleceu o diagnóstico.
Cerca de 50% de doentes com doença intersticial pulmonar respondem bem aos
corticóides. Nos casos de envolvimento intersticial ligeiro, poder-se-à
associar azatioprina ou metotrexato. Nos casos de envolvimento grave,
recomenda-se a associação de ciclofosfamida ou tacrolimus e, nos casos que não
respondem a estes tratamentos, imunoglobulina, rituximab ou micofenolato1,3,5-
7,8-10. Nesta doente foi necessário a associação de corticóide com micofenolato
para se obter o controlo da doença, visto ter desenvolvido intolerância
hepática a azatioprina. A doença pode ser monocíclica (20% de doentes),
policíclica (20% de doentes) ou crónica (nos restantes)4. Aguardamos para ver a
evolução nesta doente.
Em conclusão, no caso clínico descrito, foi a impotência funcional em doente
com alteração na telerradiografia de tórax e sem sintomatologia respiratória
que levou ao estudo exaustivo até ao diagnóstico de PM. Tratava-se de doente
que antes do início do tratamento tinha incapacidade funcional total e que 2
meses após o início do tratamento já estava em ambulatório, sem qualquer
restrição por fraqueza ou dor muscular.