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EuPTCVHe0874-02832011000100006

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variedadeEu
ano2011
fonteScielo

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Os medos dos enfermeiros em situação de doença própria

Introdução Vivendo numa sociedade que se preocupa essencialmente com a evolução científica e, mais precisamente, com o desenvolvimento da medicina, torna-se de crucial importância valorizar os doentes, na medida em que, estes é que justificam a necessidade e a visibilidade das ciências da saúde.

A experiência de doença, apesar de não ser desejável, torna-se expectável ao longo da nossa vida. Sabese que, mais cedo ou mais tarde, todos temos necessidade de ser cuidados por outros e que esse facto é condicionante de alguma angústia e ansiedade, pois vivemos numa era e sociedade que preza sobretudo a saúde e a autonomia.

Pressupondo que depois de vivenciar uma experiência de doença, algumas mudanças se operam na vida das pessoas e, considerando os enfermeiros como pessoas com capacidades e competências específicas, pensase que seria de suma importância tentar compreender o que estes vivenciam e sentem e de que forma estas emoções e sentimentos vão influenciar o seu desenvolvimento pessoal e profissional.

Neste sentido, objectiva-se estudar não uma descrição pura da vivência de doença, mas uma descrição que envolva sentimentos e pensamentos acerca dessa mesma experiência, reflectindo sobre a importância e influência na sua vida e sobre o significado que lhe é atribuído. A sua elaboração pretende dar resposta ao seguinte objectivo: contribuir para a compreensão do discurso dos enfermeiros, como representativo da forma de encarar a doença e o processo de hospitalização, descrevendo quais os medos mais comummente sentidos na vivência deste fenómeno.

Enquadramento teórico O ser humano é um ser profundamente complexo.

Quando adoece reage, particularmente, de acordo com as suas características pessoais e segundo os factores externos presentes. Como tal, sabe-se que não se pode considerar apenas a doença em si, pois esta na realidade não existe; o que existe são pessoas com doenças.

A experiência de estar doente é única, na qual os comportamentos e atitudes adoptadas por cada indivíduo são singulares e de acordo com todas as crenças e conceitos criados pela sua própria experiência pessoal e pelas características da cultura que integram, indo determinar fortemente a sua forma de estar e de reagir perante uma situação particular de doença.

Na opinião de Langdon (2001), a doença não é experienciada como um acontecimento biológico puro, sendo o resultado das suas manifestações de acordo com o contexto sociocultural e das características psicológicas de cada um, traduzindo uma experiência subjectiva de um evento.

Como tal, a experiência de doença não se confina aquele momento específico; tem influência e projecção pela vida fora, acompanhando a existência daquela pessoa. A forma como cada pessoa enfrenta a doença representa aspectos peculiares de cada ser, englobando a sua forma de ser e de estar perante si mesmo, o seu papel na sociedade e todas as relações que estabelece com o mundo durante a sua existência (Graham, Andrewes e Clarck, 2005).

Segundo Gameiro (2004) a doença é sentida pelo indivíduo como uma ameaça, enaltecendo os sentimentos de medo e vulnerabilidade e tornando possível o sofrimento do mesmo e a probabilidade de ocorrerem perdas significativas a vários níveis.

Após uma experiência deste cariz, pensa-se que a pessoa poderá não voltar a ser a mesma, pois a vivência implica o despoletar de sentimentos de inquietação sobre o que na realidade importa na vida daquela pessoa. Esta, quase que vive uma crise existencial, pois vai sentir necessidade de rever o sentido que atribui às coisas. se o verdadeiro valor a determinados conceitos e estados quando se experiencia algo que nos irá fazer sentir que nada é eterno e que tudo é caracterizado por uma finitude incerta, em termos de durabilidade e temporalidade, mas certa de que um dia irá ocorrer. Com a saúde passa-se o mesmo; quando ela é afectada e as pessoas se sentem ameaçadas, é que param para pensar no que realmente interessa e é importante na vida.

Uma das principais vantagens de se realizarem estudos com base na experiência vivida prende-se com a riqueza do conhecimento que se obtém pela partilha de sentimentos e de significados da mesma por parte do doente.

Numa perspectiva fenomenológica a experiência revela a forma como os sujeitos concretos vivenciam o seu mundo, ou seja, o seu modo de estar e de interagir com o mundo, à luz da sensibilidade e da atribuição de significado. O que se pretende é voltar à essência das coisas, descrevendo o que se passa sob o ponto de vista dos indivíduos que vivenciam determinado acontecimento (Alves, 2006).

Para Bonino (2007), os profissionais de saúde, ao longo do seu desempenho profissional, devem auxiliar os doentes a descrever o que sentem e como vivem o seu quotidiano, pretendendo ser o mais objectivos possível. No papel de doentes, serão eles os próprios descritores da sua situação clínica e da forma como lidam com ela.

Metodologia Este trabalho encontra-se enquadrado no paradigma da investigação qualitativa, nomeadamente, na vertente da fenomenologia. De acordo com os princípios que caracterizam este tipo de investigação, o investigador procura essencialmente compreender o significado que cada participante atribui a um determinado fenómeno, no sentido de percepcionar qual a construção social atribuída ao mesmo.

Atendendo à especificidade do tema a investigar, às análises e observações que se foram realizando ao longo do contexto da prática de cuidados de enfermagem, à curiosidade e interesse que o tema desperta, e em associação aos resultados obtidos com a elaboração do trabalho de revisão sistemática da literatura acerca do mesmo tema, surge a necessidade de compreender como os enfermeiros vivenciam uma situação de doença, visando interiorizar os sentimentos que emergem, obter um significado para aquela experiência de vida e perceber a sua influência na mesma. Neste contexto, a questão de investigação que norteia este estudo é Como é que os enfermeiros vivenciam a sua experiência de doença?.

A fenomenologia aplicada à Enfermagem não pretende conhecer apenas aquilo que é visível, mas antes perceber o que significa viver um determinado fenómeno. Assim, este estudo visa sobretudo compreender como é que os enfermeiros vivenciam o fenómeno de doença própria, dando visibilidade a um dos sentimentos mais comuns o medo.

Os informantes deste estudo foram 15 enfermeiros que cumpriam os critérios de inclusão definidos, nomeadamente: Ser enfermeiro/a; ter vivenciado um fenómeno de doença interna marcante e sido submetido a um processo de hospitalização, datado a partir de 2003; apresentar aptidões internas (discernimento e aptidões psíquicas) que lhe possibilitem descrever o fenómeno e partilhar sentimentos; ter reiniciado funções , pelo menos, um ano e aceitar a participação voluntária no estudo, depois de devidamente informado dos objectivos do mesmo, da metodologia a utilizar, da garantia do anonimato e do sigilo em relação aos dados obtidos e da possibilidade de desistir quando assim o entendesse.

A selecção dos informantes foi segundo o método de Bola de Neve, tendo em conta todas as dificuldades enfrentadas relativamente a aspectos éticos e institucionais. A colheita de dados foi elaborada no período compreendido entre 19 de Junho de 2009 e 8 de Setembro de 2009. Foram realizadas 15 entrevistas em profundidade, com uma duração média de 41,27 minutos. Estas foram transcritas e analisadas segundo o método de análise de informação de Giorgi, procurando obter uma descrição pormenorizada da experiência, tendo em conta o que sentiram e, consequentemente, a estrutura essencial do fenómeno em estudo (Giorgi e Sousa, 2010).

Ao analisarmos as características descritivas dos participantes entrevistados, verifica-se que o género feminino domina, apresentando uma percentagem de 80% relativamente ao masculino. A média de idades é de 41,27 anos e a média de tempo de serviço é de 20,07 anos. Quanto à categoria profissional verifica-se que 60% dos informantes são Enfermeiros Especialistas, tendo sido englobado na mesma categoria os especialistas e os especializados e 40% são Enfermeiros Graduados, sendo que um deles assume também o papel de Enfermeiro Chefe.

Após a leitura aprofundada das entrevistas foi possível determinar as unidades de sentido e consequentes constituinte-chave, procurando obter a estrutura essencial do fenómeno estudado. Do processo descritivo e de compreensão elaborado verificou-se que o medo é um sentimento muito frequente no processo de vivência de doença e que, por si , não se consigna a uma especificidade, constatando-se que pode ser abrangente e variado.

Resultados e Discussão Após a transcrição das entrevistas e consequente análise da informação obtida, verificou-se que o medo é um dos sentimentos que os enfermeiros evidenciam como procedente do seu processo de vivência de doença própria.

A palavra medo deriva etimologicamente do latim Metus, traduzindo uma sensação de temor e apreensão face ao futuro ou a algum acontecimento ou objectivo específico que é tido como desagradável.

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, pode definir-se como um fenómeno psíquico e de carácter afectivo resultante da consciencialização de um perigo real ou imaginário ou provocado por súbita ameaça.

O termo medo desde sempre assumiu uma conotação pouco positiva, pois traduz a percepção de que o perigo é eminente e pode estar próximo, ameaçando o nosso perímetro de segurança e revelando, deste modo, a vulnerabilidade e a incapacidade de dominar a nossa vida e o nosso destino. Para Lelord e André (2002) a melhor forma de enfrentar o medo é confrontá-lo, pois a fuga não nos permite superá-lo, sendo necessário reflectir sobre ele e dar-lhe a devida importância, no sentido de o dominar.

No entanto, o medo também pode ser útil, na medida em que suscita nas pessoas uma atenção constante perante alguns acontecimentos ou adversidades da vida. Neste contexto o medo assume uma função defensiva que nos permite responder no presente aos pensamentos que constantemente associamos ao futuro. Segundo Edwardes (2006), o medo acompanha-nos diariamente no desenvolvimento do nosso quotidiano nomeadamente: o medo de não ser socialmente aceite; o medo de ser gozado pelos outros, o que condiciona a nossa forma de estar e de agir perante os outros e a sociedade; o medo da rejeição que nos leva a adoptar uma atitude defensiva e de desconfiança constante, etc.

O medo condiciona, muitas vezes, a nossa reacção perante determinadas situações. Vivemos numa sociedade que preza sobretudo o que é visível, o que se reflecte na sensação de medo que passa a habitar o nosso ser, na medida em que somos tentados a viver a nossa vida de uma forma reprimida e, consequentemente, agir sempre com base na defesa.

Na opinião de Albisetti (2003, p. 14) vivemos numa sociedade onde os estímulos são constantes, onde existes por aquilo que fazes, onde és avaliado pelo que produzes e não pelo que és, onde tudo é superficializado, banalizado, consumido.

Neste sentido e segundo o mesmo autor, o medo é factor condicionante para o nosso comportamento e as nossas atitudes. Toda a nossa existência e o nosso agir perante nós próprios, os outros e o mundo é condicionado pelo medo de não nos sentirmos suficientemente seguros de nós, de não conseguirmos obter a valorização que julgamos indispensável para a nossa vida e de não possuirmos as características, e alguns atributos que a sociedade, actualmente, encara como essenciais para viver com sucesso e êxito.

Numa situação de doença, o indivíduo deve procurar ajuda para a solucionar ou para minimizar os seus efeitos, devendo iniciar o seu processo de aceitação e encarar a doença como um desafio que está ali para testar os seus limites, em termos de força interior, resistência, coragem e capacidade de enfrentamento (Neto, Aitken e Paldron 2004).

Associado a tudo isto emergem muitos medos baseados, essencialmente, na dificuldade que o indivíduo apresenta para lidar com os constrangimentos associados a uma situação de doença, especificamente a suposta ideia de derrota ou de incapacidade de resolução dos mesmos.

Quando se fala em doença é costume encarar-se todo o processo de uma forma pesarosa, uma vez que, ninguém se encontra preparado para sofrer e para lidar com sentimentos como a vulnerabilidade e fragilidade que uma situação de doença acarreta.

E 4 Para , faz-se um filme negro sempre que se vai morrer Como referem alguns participantes, uma tendência para se idealizar uma curta ou longa-metragem, normalmente classificada na área dos filmes de terror e, associada a este, também toda a expectativa que lhe advém. Perante o suspense e o medo que as cenas de terror suscitam nas pessoas, é notória a ansiedade e a angústia inerente, pois assumindo uma postura de espectador, ressalta a ideia de que o enredo tende a complicar-se e a piorar, surgindo cenas piores e mais graves à medida que se desenrola, exacerbando-se o medo relativo ao desfecho.

Tomando a liberdade de citar o Professor Carmo Ferreira: A vida é uma aventura! É uma aventura que costuma acabar mal!. É engraçado como esta frase nos faz pensar que, realmente, a vida é uma passagem terrena que terá sempre um fim anunciado. No entanto, continuamos a apresentar sérias dificuldades em lidar com esta certeza; com o facto de que toda a existência humana se prende com a eminência de morte.

A morte será sempre um mistério, pois nunca a conheceremos, no sentido de que transcende um facto biológico; sempre uma dimensão espiritual e existencial na morte o que lhe confere uma aura misteriosa. Como todos sabem, a morte é inevitável, mas desde sempre se tornou inconcebível pensarmos e falarmos sobre a nossa própria morte, sendo muito mais fácil e aceitável falar da morte dos outros.

Ferreira (2004, p. 75) frisa esta ideia ao dizer Decerto que eu não posso esperar a minha morte, porque em qualquer situação, a mais crítica, ela não me pode atingir. Epicuro (2009, p. 112), filosofando sobre a mesma temática, referia que a morte não é nada para nós, condicionando apenas um sentimento de angústia por antecipação, pois enquanto nós existimos a morte não está presente e quando está presente, nós não existimos.

uma tendência marcante para falar da morte na terceira pessoa, porque a nossa própria morte continua a ser tabu. Os seres humanos apresentam grandes dificuldades em aceitar a morte, lutando durante toda a vida contra ela. Perante uma adversidade na vida como é a experiência de doença, torna-se mais real a evidência de que a vida é temporal e que pode acabar a qualquer momento. Como refere Infante (2006, p. 23), por vezes quando a doença nos toca de perto é que nos apercebemos que nada é para sempre, inclusive, a dádiva de viver. Também Balota (2009) realça que o medo da morte é um dos medos mais imponentes, porque apesar de ser uma realidade, os homens têm muita dificuldade em falar dela e em a aceitar, frisando que todo o medo esconde em si o medo da morte.

E 1 Programei a minha conta bancária, falei ao meu marido aonde é que estavam as coisas, porque ocorre-nos sempre o medo ou aquela coisinha no fundo de que pode alguma coisa correr menos bem, e a gente não voltar para casa ou voltar em condições menos boas, não é?.

À medida que os dias passam vamo-nos apercebendo que os seres humanos têm tendência para viver no delírio da omnipotência, recusando encarar a morte como a coisa mais certa na incerteza. Segundo Albisetti (2003) é necessário que os indivíduos compreendam que a morte é um acontecimento real e que também nos acomete, não se destina aos outros; deste modo, aceitando a morte, se começa verdadeiramente a viver.

A sensação de solidão surge frequentemente quando as pessoas não se sentem bem consigo próprias; quando se sentem sós é sinal de que estão muito longe de si mesmas. Como refere Balota (2009), a solidão não se pode justificar por simples factores externos aos indivíduos; depende exclusivamente do interior de cada um, traduzindo a necessidade de receber de outrem tudo aquilo que gostariam de dar a si próprios.

E 8 uma das coisas que me assusta na vida é ficar , gosto muito de estar sozinha, mas não gosto de me sentir e saber que não tenho uma rede de apoio.

Num momento de grande vulnerabilidade tendência para nos sentirmos pequeninos e frágeis, valorizando muitos aspectos, nomeadamente o apoio dos familiares e amigos, para além do apoio dos profissionais. No fundo, ninguém gosta de se sentir sozinho e todos tentam evitar este sentimento.

Neste sentido poderemos citar Albisetti (2009, p.

113,4) ao referir quando me sinto sem defesas, impotente, quando me rendo, quando não tenho nada a perder, então compreendo que sozinho nada posso! , porque ao viver a dor, a doença, experimento a profunda solidão humana.

Também, numa situação de doença, tendência para se repensar tudo: o que somos, o que fizemos, os amigos que temos, etc. Perante a angústia da doença e a necessidade de entregarmos a nossa vida nas mãos de outrem, a sensação de que não somos donos de nada, nem de nós próprios, tende a superficializar-se. Neste contexto e, especificamente, quando, decorrente de todo este processo, se impõe uma intervenção cirúrgica e todas as exigências anestésicas, o indivíduo deixa de ter domínio sobre si e sobre o seu corpo; uma entrega ao outro, confiando-lhe a própria vida. Durante o período de espera para esta entrega, tudo aflora na sua mente, referindo muitos deles que se faz uma retrospectiva da vida e se apercebem que, naquele momento, se encontram sós, sem saber para onde vão, como e se voltarão.

E 8 depois aquele tempo de espera, tipo, parece uma estação de caminhos-de-ferro, com n camas espalhadas e eu sozinha.

Tal como o informante refere, a espera junto a uma linha de comboio, onde passam tantos e para destinos tão diferentes traduz, de alguma forma, a angústia vivenciada. Por um lado não se sabe para onde as pessoas querem ir; se querem mesmo ir ou se são obrigados por um conjunto de contingências conhecidas ou desconhecidas; se vão felizes ou tristes; se vão por pouco tempo ou para nunca mais voltar! Tudo parece cinzento e algo impessoal; as pessoas cruzam-se, alguns nem falam, outros olham com olhar distante e outros com olhar terno e esboçando um sorriso. Como é importante um sorriso, como nos acalenta a alma e nos afaga o coração.

Sempre que assistimos a um filme que retrata despedidas, tristezas ou sofrimento, verificamos que, frequentemente, chove nas estações de comboio, ficando um ambiente sombrio, pairando no ar a insegurança e a angústia, perante o desconhecido, para quem vai e quem fica, podendo fazer-se uma analogia com a angústia de perder o controlo e o domínio sobre si e sobre a sua vida numa situação de doença.

E 14 O que me assusta, nisto tudo, é como é que vai ser o meu futuro? Está a perceber? Como é que eu vou ficar? Como é que eu como é que vou que consequências é que isto vai ter?.

O medo é uma constante na vida dos seres humanos, muitas vezes imposto pela sociedade e cultura dominante, aliado ao egocentrismo que se tem desenvolvido. A ideia da omnipotência continua a exercer uma influência marcante, levando-nos a agir de uma forma egoísta e centralizada em nós próprios.

Desta forma, aceitar que não dominamos o mundo e que a nossa vida é uma passagem limitada no tempo não se revela tarefa fácil, na medida em que actualmente se preza mais o que se tem e o que nos pode dar visibilidade perante os outros e o mundo.

Os valores intrínsecos, pessoais e morais deixam de ser importantes vivendo as pessoas mais preocupadas com o que parecem ser e com a aceitação por parte dos outros, do que com o que realmente são. Neste sentido e para encontrarem menos contrariedades e dificuldades optam sempre por seguir por um caminho conhecido, pois têm medo de enfrentar o desconhecido.

E 8 esses medos, esses sentimentos de impotência, de não conseguir lidar com a situação, não é de lidar, é de ser eu a resolver as coisas, pronto a resolução destas situações estava fora do meu domínio. Todo este medo do desconhecido está relacionado com o facto de não sentirem que controlam todas as situações. Os seres humanos revelam grandes dificuldades em lidar com os seus próprios limites, considerando que necessitam de controlar o mundo e a sua vida para poderem viver e ser felizes. A grande aprendizagem a fazer é aceitar a vida, com todos os seus desígnios e procurar vivê-la intensamente, pois o ontem é história, o amanhã um mistério e o hoje é uma dádiva, sendo por isso que lhe chamamos presente.

No caso das doenças e sendo profissionais de saúde, receiam sobretudo o sofrimento associado a muitas doenças, fazendo associações e comparações frequentes a situações de doentes ou até familiares que acompanharam durante um processo de doença.

Também o corpo de conhecimentos que detêm pode ser facilitador, ou não, do processo de adaptação à doença.

E 14 Nós é que não estamos bem connosco, porque isto passa tudo pela nossa cabeça, não é?, passa isto tudo pela nossa cabeça, porque epá, eu até havia de saber isto, então agora vou perguntar isto?, então o que é que vão pensar de eu agora estar a perguntar isso? Perante situações de doença é muito frequente ouvirmos os doentes referirem que têm medo do sofrimento que possam vir a experienciar. Este sofrimento pode ser de ordem física ou psicológica, verificando-se que para a dor física consegue haver uma solução clínica, na maior parte das vezes, enquanto para a dor psicológica as alternativas não são tão óbvias, condicionando frequentemente um forte impacto na vida dos indivíduos.

Na opinião de Neto, Aitken e Paldron (2004, p. 23), A intensidade desse sofrimento é medida em termos do próprio paciente, à luz dos seus valores, das suas vivências, das suas crenças e recursos, enfim, de uma multiplicidade de factores que fazem do sofrimento humano uma realidade complexa e ao mesmo tempo única para cada indivíduo que o experimenta. O sofrimento é sempre vivido pelas pessoas e não apenas pelos corpos e, como tal, ultrapassam os aspectos físicos da doença.

Este tipo de medo não se cinge ao indivíduo doente, mas também a toda a sua família e rede social de apoio, contribuindo para tal o tipo de diagnóstico e prognóstico da doença, pois numa verdadeira família funcional quando um dos elementos adoece, todos são afectados. Em consequência disso é natural que o sofrimento se generalize pela família, o que poderá condicionar mais angústia e sofrimento ao doente, por sentir que é a causa do sofrimento de outrem.

E 3 com um bocado de medo em saber como é que seriam depois os tratamentos, se seria tanto fisicamente, porque são, porque estes tratamentos são à base de grandes doses de corticoides, o que me preocupava mais era a minha imagem perante as minhas filhas, o não andar, portanto o não poder, o arrastar da perna, o arrastar da perna sem força, todo aquele edema e todo aquele fácies característico dos doentes com impregnação em corticoides O sofrimento é sempre pessoal e apresenta-se-nos como uma revelação, uma vez que, os indivíduos, muitas vezes, desenvolvem estratégias e atitudes que nunca pensariam possíveis, traduzindo claramente o provérbio Nunca saberemos o que valemos até sermos postos à prova!.

Neste contexto pode ser encarado como uma oportunidade de crescimento a vários níveis, tal como refere Paulo Geraldo, num dos seus pensamentos partilhados: Não deves recusar a dor, porque ela te constrói, te marca os limites e te faz crescer por dentro dos teus muros. Sem ela, não passarias de um projecto do homem que hás-de ser.

Ela edifica-te os músculos, a cabeça e o coração e não existe outra maneira de chegares a ser aquilo que deves vir a ser. Se não sofresses não haveria ninguém dentro de ti.

Ao longo da nossa vida vamos crescendo e desenvolvendo capacidades para nos tornarmos autónomos e independentes. A nossa tendência é para esquecermos que outrora, na nossa infância, fomos totalmente dependentes dos nossos familiares e a ideia de o voltarmos a ser causa imensa ansiedade e angústia. Penso que não se trata do medo de ser dependente mas do medo de existir em determinadas circunstâncias que, como sabemos, não são bem aceites socialmente e que nos expõem, revelando aos outros o que de mais íntimo e pessoal possuímos.

E 3 - O medo de ficar dependente ou de ficar totalmente dependente.

A vivência de uma situação de doença faz emergir esta ideia e torna real a possibilidade de dependência.

Possivelmente iremos estar dependentes de cuidados de saúde, de atenção e de afecto, entre outros.

Tudo isto nos faz pensar no valor da nossa condição humana: somos seres gregários e de relação, logo estaremos sempre à mercê uns dos outros.

E 8 senti-me extremamente angustiada porque me revi naquela doente e que, durante o momento da intervenção, em que estamos sob anestesia, estamos dependentes dos outros, completamente dependentes dos outros, se houver uma falha nós não podemos fazer nada pois está tudo fora do nosso controle e essa dependência, [], assustou-me imenso, pronto. Neste contexto o que promove sensações de angústia não é a dependência propriamente dita, mas a percepção de que não dominamos o mundo nem a nossa vida e que não podemos controlar tudo o que nos rodeia. Por outro lado, a sensação de que necessitamos da ajuda dos outros condiciona uma sensação de humilhação, pois subentende que perdemos as nossas capacidades o que incrementa a nossa sensação de sofrimento.

E 4 não era o medo de que corresse mal, é de estar num papel que não é o meu do dia a dia.

Para Gineste e Pellissier (2008, p. 265), A incapacidade ou a doença entregam-nos à incerteza. Elas são factores de ansiedade. Elas modificam, muitas vezes brutalmente, o equilíbrio que tínhamos estabelecido entre dependência e independência. Inúmeros intervenientes entram, subitamente, no nosso espaço íntimo, manipulam-nos, administram-nos substâncias que agem sobre o nosso corpo e o nosso espírito, etc..

Se para um leigo a existência em condições de dependência dos outros causa angústia, não será leviano ou precipitado pensar que, para um profissional de enfermagem esse sentimento se exacerbe, pois é confrontado com a eminente mudança de papéis, deixando de ser aquele que cuida dos outros para passar a ser o que necessita de ser cuidado. Também Morrison (2001) foca a ideia da perda da independência por parte dos doentes, passando a estar à mercê dos profissionais de saúde, no papel de gestores dos cuidados de saúde necessários. Neste sentido, para um doente, um profissional de saúde pode ser encarado como um Anjo amigo ou alvo de críticas, mediante a sua actuação.

E 4 Estamos aqui a cuidar deles e agora estava a ver colegas a tratarem de mim. Compreende-se que, como profissionais de saúde, os enfermeiros quando adoecem vivem uma transição de papéis que se torna muito dolorosa, uma vez que, passam a ser os seres cuidados em vez de cuidadores.

Esta dualidade entre o ser enfermeiro e o ser doente não é fácil de gerir, pois existe um conjunto de conhecimentos implícito que exerce uma grande influência na forma como se vivencia e interioriza a experiência de doença.

E 12 eu tenho a noção de que fui uma chata e não me controlei em termos de dor e tive um comportamento, se calhar, desajustado, até me envergonho disso. Ao longo da nossa existência temos tendência para julgar e fazer juízos de valor sobre o comportamento dos outros. Em termos profissionais, especificamente na área da saúde, não é muito diferente, constatandose uma constante avaliação entre pares e entre os vários envolvidos no processo de prestação de cuidados. O profissional que adoece e é submetido a um internamento inverte o seu papel e passa a ser alvo de cuidados por parte de outrem e a ser analisado na condição de doente.

E 14 quer dizer, eu agora chamava, que eu estou aqui cheia de dores e tal, eu chamava, e depois, depois também se a gente chama duas, três ou quatro vezes, eles começam a dizer mas está sempre a chamar, está sempre a chamar, mas está dentro do assunto e ainda se porta pior que os outros e tal, e isto na nossa cabeça é uma luta titânica, isto é uma luta titânica! Este processo de avaliação revela-se muito penoso para o doente que, simultaneamente, também é profissional de saúde. Constata-se alguma tendência para pensar antes de agir condicionada pelo receio de ser avaliado e de não conseguir contribuir para a imagem de bom doente que, frequentemente, se idealiza.

Actualmente, na nossa sociedade, preza-se sobretudo a beleza física, os corpos fantásticos e uma aparência incrível. Deste modo a doença e a possibilidade iminente de sofrermos alguma mutilação corporal mexe muito com o nosso interior causando muita apreensão e ansiedade, mesmo para aqueles que não vivem obcecados pelo físico e que se preocupam com o seu lado interior e espiritual.

E 1 vi-me logo como os olhos a saírem-me das órbitas.

Como podemos verificar, a questão da imagem corporal também exerce uma forte influência nas relações familiares e sociais estabelecidas, verificandose não o receio de se tornar diferente para si mesmo como para os outros, especialmente para os familiares próximos, nomeadamente os filhos.

E 4 Não queria que me vissem em pijama, com robe, com ... pronto, com um frasco atrás de mim, um redy-vac.

O medo da rejeição é muito evidente, quer pelos familiares, quer pela sociedade, verificando-se que ainda existe um forte estigma associado à doença oncológica e qualquer outra doença crónica que implique alterações na imagem corporal.

Como se pode constatar, a experiência de doença afecta o indivíduo de forma generalizada, fazendo emergir um conjunto de sentimentos vasto, que noutras circunstâncias não seria pensado. O facto de serem profissionais de saúde, nomeadamente, enfermeiros, pode ou não ter influência na forma como se vivencia esta experiência, no que concerne especificamente ao processo de avaliação de que se é alvo na condição de doentes. Isto é plausível, na medida em que uma certa tendência para se emitirem alguns juízos de valor nesse sentido.

No entanto, na vivência do processo de doença propriamente dito, constata-se que as dúvidas, angústias e medos são semelhantes, pois como refere Varella (2009, p. 35) O sofrimento físico tem o dom de igualar estudiosos e iletrados.

Conclusão A vida é um valor inalienável; um bem especial que se deve desfrutar ao máximo. A saúde é um desejo de todos, ninguém ambiciona adoecer e vir a sofrer, seja de que modo for.

Abordar o tema específico da vivência de doença é um processo delicado e difícil, na medida em que se desenrola num contexto de fragilidade e vulnerabilidade acentuada, exigindo alguma sensibilidade para se explorar e para se identificarem os aspectos mais significativos da mesma, numa tentativa de compreender os sentimentos vivenciados e o significado daquela experiência particular.

Falar sobre a vivência de doença própria no enfermeiro não se revela tarefa fácil, uma vez que implica o reviver de uma situação penosa, constatando-se algumas lacunas em termos de evidência científica neste âmbito. Raros estudos se conhecem que analisem a pessoa que cuida na vertente de ser cuidado, tornando-se um desafio aliciante compreender como é que o enfermeiro percepciona o sofrimento do outro com base na vivência do seu próprio sofrimento.

Este estudo permite dar visibilidade à emergência das diferentes dimensões do medo sentidas pelos enfermeiros ao vivenciarem um processo de doença própria.

Neste contexto, como qualquer ser humano, os enfermeiros revelam medos comuns, como sejam o medo da morte, do sofrimento pessoal e familiar, da solidão, da dependência e da alteração da autoimagem. No entanto e, tendo em conta a sua especificidade profissional, foi notória a sensação de medo pelo desconhecido, no sentido de serem profissionais da saúde mas não dominarem a sua situação clínica nem poderem actuar de uma forma técnica, tendo tendência para sofrer por antecipação, quanto ao prognóstico e diagnóstico, adoptando posturas negativistas, muitas vezes influenciadas pela sua experiência profissional. Por outro lado, também se verificou o medo da avaliação, no contexto de serem cuidados pelos colegas e estarem a vivenciar um papel que consideram não ser o seu, demonstrando algum desconforto em assumi-lo e em agir de forma natural, uma vez que, na posição de profissional de saúde, se tende, erroneamente, a fazer juízos de valor sobre o que se considera ser ou não um bom doente.

No caso específico dos enfermeiros, subentendese uma valorização a nível da magnificência da sua profissão, pela dedicação ao outro e a preocupação com o seu bem-estar, presumindo-se uma verdadeira interiorização que transcende a compreensão, do termo empatia, percebendo o que é estar e ser doente e toda a vulnerabilidade e fragilidade intrínseca.

Inerente a esta experiência podem emergir, pela continuação do desenvolvimento do trabalho que serve de base a este artigo, dados que nos permitam inferir sobre as múltiplas dimensões do processo de vivência de doença, sendo previsível uma premente mudança de comportamentos e a valorização de determinadas atitudes, com implicação directa no desempenho das funções de enfermagem e, consequente, dignificação da profissão. Não se exige muito, apenas que se encarem os doentes como pessoas, com vida, com história, com pensamentos e emoções, sem egoísmo, e baseados numa postura de igualdade e fraternidade que caracteriza os seres humanos.


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