Educação cívica, liberdade e humanidade
Editorial
Educação cívica, liberdade e humanidade
Jorge Olímpio Bento
Creio ser consensual a afirmação da necessidade de reinventar tanto a esfera
pública (a do Estado em particular e a da sociedade em geral) como a privada
(esta a cargo da consciência e da actuação de cada um de nós). São muitos os
pretextos para esta formulação e são igualmente diversas as formas e
perspectivas de abordagem do assunto. Por isso as reflexões, que se seguem, não
reivindicam exclusividade e abrangência; querem ser apenas um contributo.
1. Da educação cívica
O enorme descrédito que atinge hoje o regime democrático impõe que se erija em
questão central a educação cívica, entendida esta no sentido de preparação para
a cidadania, para (con)viver de maneira política, social e moralmente
responsável.
Em primeiro lugar ela deverá prevenir a crescente e letal influência exercida
pela ignorância e pelo populismo, cujo predomínio constitui o mais grave
problema da democracia. Por isso a educação cívica assume-se como uma
competência para a comunicação argumentada. Para pôr cobro à incapacidade para
expressar exigências ou para compreender as que são formuladas pelos outros,
para argumentar a favor das posições próprias e para refutar os argumentos e
ardis alheios, para ultrapassar a carência de compreensão dos direitos e
deveres impostos pela vida em sociedade e para contrariar a acção retrógrada e
patológica de tribos, lobies e corporações de interesses ilegítimos. São os
cidadãos ignorantes, todos com direito a opinião e a voto, quem sustenta os
populistas e demagogos que prometem o paraíso e o bacalhau a pataco e arranjam
bodes expiatórios para todas as crises e frustrações.
Em segundo lugar a educação cívica leva em conta a máxima de Aristóteles, de
que ninguém pode chegar a governar sem ter sido antes governado. Isto é,
todos temos que adquirir o sentido da equidade e responsabilidade, aprender a
obedecer a leis e a praticar os valores partilhados. Até porque a trave mestra
da democracia consiste em que nela não haja especialistas em mandar e
especialistas em obedecer, mas sim em que todos os cidadãos sejam aptos para
desempenhar os dois papéis. Por isso será cívica a educação que optimize os
cidadãos, que os forme como príncipes inter pares, inculcando neles tanto a
condição de mando como a de obediência, tanto a de objecto das leis como a de
sujeito delas. Sendo os meios que justificam os fins, a democracia só tem
justificação se for servida por este tipo de cidadãos.
Para tanto a educação cívica deve cuidar de contribuir para a realização do
direito fundamental de qualquer pessoa, qual seja o de ser dotada dos meios
intelectuais necessários ao exercício da deliberação, isto é, da liberdade. Ora
isto assenta na formação de caracteres humanos capazes de persuadir e de se
abrir à persuasão, de perceber e apreciar a força das razões e recusar a razão
da força, de participar em projectos e celebrar acordos e transacções, de ser
racional e razoável a reconhecer o mesmo estatuto aos outros. Trata-se, enfim,
de formar um cidadão habilitado a confirmar aquilo que ontologicamente é: um
ser de pensamento, de palavra, comunicação e acção.
Isto inclui a educação para a tolerância. Não para aceitar e valorar tudo por
igual, mas para respeitar os caminhos plurais que segue o humano, balizados
pelo marco da declaração dos direitos humanos. Está, pois, posta de lado a
tolerância perante aquilo que sabota a cultura humanista e democrática ou
perante todas as opiniões e posições. O direito à diferença não pode ser
convertido em dever para os outros, ou seja, não é curial impor-lhes como norma
desvios tolerados mas não justificados. Nem o fanatismo nem o relativismo podem
merecer uma atitude convivencial. O primeiro porque tem subjacente a rejeição
do diferente, com medo de ser contagiado e desmentido por ele. (Nietzsche
definiu-o, de modo luminoso e certeiro, como sendo a única força de vontade de
que são capazes os fracos). O segundo porque se esfalfa a tentar justificar o
postulado falso, logo injustificável, de que todas as culturas merecem igual
apreço. É certo que se pode aprender alguma coisa com cada uma, mas não são
todas igualmente compatíveis com os valores, princípios e direitos humanos e
universais. De resto, o alvo central da educação é precisamente o de capacitar
os cidadãos a valorar e classificar, a preferir e optar, a escolher e excluir o
que exalta ou amesquinha a nossa humanidade.
2. Liberdade e humanidade
Estamos condenados à liberdade, sentenciou Sartre, o que nos obriga a uma
constante interrogação sobre o uso que fazemos dela, porque não somos livres de
ser livres. Nós e os outros, eu e tu.
Com efeito o que nos define como humanos não são os instintos ou o património
genético; é sim, diz Fernando Savater (in: A coragem de escolher), a nossa
capacidade de decidir e inventar acções que transformem a realidade (...) e a
nós mesmos. Essa disposição, chamada liberdade', é a nossa condenação e também
o fundamento do que consideramos a nossa dignidade racional.
Por outras palavras, a liberdade ' isto é, a possibilidade, competência e
coragem de escolher entre o bom e o mau, o melhor e o pior, o belo e o medonho,
a verdade e o erro, a humanidade e a inumanidade, a recta razão e a falta dela,
a justiça e a iniquidade, a honra e a desonra, o prazer e o sofrimento, a
democracia e a tirania, a cidadania e a fuga aos deveres cívicos ' atravessa a
nossa existência, porquanto o problema da escolha é o grande problema da vida
inteira. Pelo facto de nascermos humanos estamos determinados pela tarefa
interminável de ter que escolher constantemente os meios juntamente com os
fins. Sabendo ' avisa Erich Fromm ' que não devemos confiar em que alguém nos
salve, mas conhecer bem o facto de que as escolhas erradas nos tornam incapazes
de nos salvarmos.
Escolher hoje a humanidade ' diz Fernando Savater ' é optar por um projecto de
autolimitação no que se refere ao que podemos fazer, de simpatia solidária
perante o sofrimento dos semelhantes e de respeito perante a dimensão não
manejável que o humano deve conservar para o humano.
Juntemo-nos a Savater e façamos nossa a sua proclamação: Que o humano
reconheça o humano, em parte por natureza e em parte por fraternidade simbólica
( ), que o humano procure a humanidade sob a pluralidade das suas
manifestações, que os homens cresçam e vivam entre humanos, sempre valiosos uns
para os outros
Assumamos a nossa quota-parte neste empreendimento! Com esse fim renovemos o
compromisso com o humano e contribuamos para que o desporto seja cada vez mais
um produto da inteligência e do labor cognitivo, científico e racional e, por
consequência, uma das obras-primas que celebram a liberdade humana!
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