Em defesa do desporto
Em defesa do desporto
Jorge Olímpio Bento
Decidi elaborar este editorial, recorrendo a algumas citações, todas
complementares e contribuintes para o objectivo pretendido.
1. A primeira é da autoria de José Manuel Constantino: “O desporto precisa de
ser defendido. Defendido perante os seus desvios. Defendido perante os seus
opositores. Essa defesa requer um pensamento crítico e actualizado sobre as
suas práticas, sob pena de se acumularem intenções e objectivos que o desporto,
supostamente, deveria garantir e que teima em não atingir.
Muitas das posições críticas ao desporto, particularmente incisivas por parte
dos novos ascetas do higienismo, repousam no facto de os defensores do desporto
permanecerem prisioneiros de perspectivas redutoras e defensivas, que
aprisionam o desporto a uma lógica de sentido único, quase que pedindo licença
para ocupar o seu espaço.
O espectáculo desportivo e a sua comercialização arrastando fenómenos de
perturbação à sua matriz identitária e a desregulação que isso originou
alteraram o equilíbrio de muitas das suas teses e interpretações e desfizeram
mitos com os quais muitos anos conviveu.
A defesa do desporto é, também, isso. A avaliação do capital de experiência que
a história do desporto acumulou (...) Um capital de experiência que é
contraditório: tem aspectos positivos ao lado de negativos”.
1
Para contribuirmos para a defesa do desporto, para o defendermos dos seus
desvios e desvarios, assim como dos seus opositores, devemos entender que ele,
como qualquer organismo, é dotado de mecanismos endógenos de regeneração. A sua
defesa e credibilidade têm que vir de dentro, do esforço daqueles que o pensam,
investigam, teorizam e ensinam, organizam e dirigem, praticam e usufruem. Por
isso ele deve merecer, de todos quantos perfazem o seu sujeito plural, um
esforço constante de renovação e melhoria. Como disse Ortega y Gasset, nós
“temos o dever de pressentir o novo”.
2. Aos opositores ao desporto, nomeadamente àqueles que lançam sobre ele a
acusação de ser da ordem do efémero e contingente, quero expressar alguma
concordância formal e total discordância substancial. Sim, o desporto está aí
para cultivar a ética e estética da contingência, a beleza e alegria do
contingente e imanente na peripécia que a vida encarna, celebrando tanto o
brilho do que nos é dado como a sombra do que nos falta e inquieta.
Convida-nos a optar “pelo aperfeiçoamento humildemente tentativo e
resignadamente inabalável do que sempre nos parecerá de algum modo imperfeito,
em vez de o recusar com desânimo culpável ou de tentar agigantá-lo até que a
sua enormidade inumana nos esmague”.
Ao exaltar o contingente ele não impede de apontar para a excelência, entendida
não como “a busca de nenhum absoluto (o excelente conseguido será tão
contingente como o medíocre rebaixado), mas o afã de ir mais além e aperfeiçoar
o que conseguimos (...) embora sem nunca sairmos da limitação que nos define e
baliza o sentido a que podemos aspirar”.
2
3. Muitos mitos alimentam o desporto, tal como a vida. Alguns carecem de ser
esclarecidos e quiçá abandonados. Todavia outros são essenciais. Assim devemos
ter bem presente a advertência seguinte:
“Precisamos de mitos para tornar suportáveis os nossos dilemas irresolúveis.
(…) Se fôssemos demolidores irresponsáveis de mitos, rasgaríamos os nossos
direitos humanos e começaríamos de novo: repensando o que queremos dizer com
vida humana e dignidade humana. Por enquanto, se quisermos continuar a
acreditar que somos humanos, e justificar o status especial que nos atribuímos
– se, na verdade, quisermos permanecer humanos através das mudanças que
enfrentamos -, é melhor não descartar o mito, mas começar tentando viver à sua
altura”. 3
Defender o desporto é, a esta luz, procurar viver à altura do mito desportivo,
aproximar-se da concretização dos sentidos, axiomas, fins e ideais que ele
aponta. Mesmo sabendo quão difícil é chegar lá.
4. A defesa do desporto exige, portanto, uma nova atitude perante ele.
Necessitamos de renovar a maneira de o encarar; de voltar a despertar, nas
crianças e jovens, o entusiasmo e a paixão por ele. Urge que o discurso oficial
enfatize a substância que ele encerra, o quanto a excelência desportiva é
essencial à formação de uma geração moldada pelo desejo de vencer, de
transcender defeitos e fracassos, assumir esforços para atingir metas sobre-
humanas e evitar o inumano, de não se acomodar a um passado e destino de
perdedores crónicos. Não, não chega participar, é imperioso ousar triunfar e
não se resignar, mesmo que a derrota bata sucessivas vezes à nossa porta.
Em suma, há que retomar o projecto de um país desportivo, por fora e por
dentro, no corpo e na alma, nos sonhos e ambições, nos princípios e convenções.
Mobilizar para o desporto é acordar e envolver o país com uma causa social e
cultural.
[1]
BENTO, Jorge Olímpio; CONSTANTINO, José Manuel (2007): Em Defesa do Desporto –
Mutações e Valores em Conflito. Coimbra: Edições Almedina.
[2]
SAVATER, Fernando (2004): A CORAGEM DE ESCOLHER. Lisboa: Publicações Dom
Quixote.
[3]
FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe (2004): Então você pensa que é humano?São Paulo:
Companhia das Letras.
Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
Rua Dr. Plácido Costa, 91
4200-450 Porto
Portugal
rpcd@fade.up.pt