A Universidade e o desencanto com a tecnização' do mundo
A Universidade e o desencanto com a tecnização' do mundo
Jorge Olímpio Bento
Universidade do Porto, Faculdade de Desporto
1. Os filósofos da suspeita, da desconfiança e da desconstrução do Humanismo,
do Iluminismo e da Modernidade – com Nietzsche à cabeça, sem esquecer os nomes
de Marx e Freud – apresentam-se como demolidores de mitos; zombam dos ideais de
transcendência e da forma de religiosidade neles configurada e mandam amar o
real tal como ele é. Assim convidam-nos a olhar para um mundo novo, no qual o
virtual, isto é, as noções de sentido e ideal cedem o lugar à lógica da
vontade de poder. Deste jeito impõe-se o reinado da força pela força, em
detrimento de todas as referências e balizas de índole superior. Sem o dizer
expressamente, os arautos da pós-modernidade propõem uma nova religião, assente
noutra teologia.
Mas... aonde é que isso nos tem levado? Onde estamos e para onde vamos? Face às
mudanças provocadas será de entregar – questiona Luc Ferry – o mundo
contemporâneo ao puro cinismo, às leis cegas do mercado e da competição
globalizada?[1]
A desolação alastra, sabendo-se que pode ser má conselheira e entregar-nos à
cegueira, à ilusão e alienação. Apesar das trágicas consequências dos fracassos
acumulados pelas várias tentativas de acabar com o humanismo, bem visíveis na
presente conjuntura e passagem de época, apesar do esvaziamento deprimente e da
consecutiva falta de sentido histórico e de um certo desencanto com o curso do
mundo, não é sensato defender o regresso ao passado. Até porque não é possível
nem desejável, porquanto os anseios e problemas, as situações e circunstâncias,
as missões e visões, as tarefas e obrigações, os actores e direitos são hoje
outros e não mais os dos séculos passados. Quererá isto dizer que – insiste Luc
Ferry – devemos resignar-nos a abdicar da Razão, da Liberdade, do Progresso,
da Humanidade? Ou, porventura, ainda há nestes conceitos, que até há pouco
tempo irradiavam ousadia e comprometimento, luz e esperança, alguma coisa que
possa escapar à voracidade da desconstrução e sobreviver a ela? Ou, ao fim e ao
cabo, teremos fatalmente que nos render ao novo servilismo emergente e
triunfante, à dura realidade do universo da globalização no qual mergulhamos,
ao mundo tal como ele é, à morte dos ideais superiores e ao desaparecimento
das utopias?
2.Luc Ferry vale-se de Heidegger para denunciar o mundo da técnica,[2] hoje
sobremaneira evidente na versão da globalização prevalecente e com efeitos
devastadores sobre o pensamento, a política e sobre a vida dos homens. E
intima-nos a reagir contra esta realidade, a não sermos pura e simplesmente
cúmplices com ela e, ao mesmo tempo e num assomo de hipocrisia, chorarmos
lágrimas de crocodilo. Até porque o mundo não é nem nunca foi imutável; e, nas
necessidades de ruptura, há quem se filie naquilo que será passado e quem se
posicione do lado do futuro.
Heidegger vê no surgimento do mundo da técnica o declínio da questão do
sentido, o desapossamento de qualquer influência sobre a história, a queda
no absurdo e a privação de qualquer finalidade visível. Deste modo, refere
Luc Ferry, o projeto de dominação da natureza e da história, que acompanha o
nascimento do mundo moderno e que dá sentido à ideia de democracia, vai se
transformar em seu contrário perfeito.[3] A democracia nos prometia nossa
participação na construção coletiva de um universo mais justo e livre; ora, já
perdemos quase todo o controle sobre o desenvolvimento do mundo.[4]
Se transpusermos a reflexão para o campo da ciência moderna, vemos que
Descartes, seu proeminente impulsionador inicial, encarava o conhecimento
científico como um instrumento capaz de habilitar o homem a ser senhor e
proprietário da natureza, ao serviço do projecto de controle e domínio total
do mundo pela nossa espécie. Mas preste-se a devida atenção! O domínio
científico do mundo assumia uma dupla intenção: a do entendimento ou
compreensão intelectual do mundo, da explicação racional do que nele acontece,
das suas causas e mistérios; e a da dominação, intervenção, transformação e
recriação práticas, decorrentes da vontade humana, segundo os seus desígnios,
finalidades, anseios e ideais de melhoria e transcendência.
Precisando melhor, na configuração da ciência moderna, o projecto do domínio
científico do universo vincula-se ao propósito de emancipação e autonomia; ele
permanece submisso à realização de certas finalidades, de certos objetivos
considerados vantajosos para a humanidade. Ou seja, o domínio teórico e
prático do universo, através do conhecimento científico e da vontade, não é
puramente técnico, não visa dominar por dominar, mas para compreender o mundo
e poder, ocasionalmente, servir-se dele com vistas a atingir certos objetivos
superiores que se reagrupam finalmente em torno de dois temas principais:
liberdade e felicidade.[5]
Ao invés deste ideário e posicionamento, no mundo da técnica, agora em vigor,
Heidegger assinala o desaparecimento da preocupação com os fins e objectivos
últimos da história humana, em benefício único e exclusivo da atenção aos
meios.
A análise comparativa e qualitativa das duas orientações revela, portanto,
diferenças abissais. Os humanistas e iluministas partilham duas convicções: Por
um lado, a ciência, ao desvendar e esclarecer a natureza e ao iluminar os
espíritos, possibilita a nossa libertação, assim como emancipar a humanidade
dos grilhões, preconceitos e dogmas da superstição e do obscurantismo; por
outro lado, o conhecimento e o domínio do mundo permitem soltar-nos das amarras
e servidões, dos instintos e impulsos (tanto no tocante à natureza extrínseca
como à intrínseca), assim como sublimá-los e utilizá-los em nosso favor, além
de fornecerem elementos para a previsão de catástrofes e tiranias naturais
(doenças, epidemias, insuficiências e degenerações genéticas e afins, ciclones,
furacões, terramotos, maremotos ou tsunamis, erupções vulcânicas, mutações
climáticas etc.).[6]
Nisto vê-se bem que o credo científico humanista e iluminista não é redutível a
uma simples razão instrumental ou técnica; pelo contrário, está virado para
alvos e fins exteriores e superiores a ele, tais como: felicidade e liberdade,
categorias constituintes da ideia de progresso (ou movimento da sociedade),
balizado por critérios de ética, estética, perfectibilidade, cultura e
civilização.
Em gritante e chocante contraste com este entendimento, no actual ambiente de
concorrência generalizada – chamado globalização – a ciência, seja no
silêncio e anonimato dos laboratórios, seja nos conhecidos e badalados centros
de investigação, vê-se despida dos grandes ideais e fins, em proveito dos
meios; e é convertida em mera técnica. Simultaneamente altera-se total e
radicalmente a noção de progresso que anteriormente a animava: não se orienta
mais por referências e finalidades transcendentes, visa apenas competir, medir-
se, igualar-se e, tanto quanto possível, superar a concorrência em números e
bitolas, segundo os normativos em moda; ela é o fim em si mesmo, segue um
imperativo de produção consumista absolutamente vital, em obediência a ditames
semelhantes aos da selecção natural de Darwin. Não espanta, por isso, que a
ciência se funda com a técnica e tecnologia e evolua (?) para tecnociência' e
que as três se enlacem estreitamente com o contexto económico e vejam o seu
desenvolvimento incensado e financiado por ele.
Manifestamente, o poder humano sobre o mundo continua a aumentar, mas de um
modo algo automático e cego, fugidio do controle das vontades e das
consciências individuais. É simplesmente o resultado inevitável da competição.
Nesse ponto, contrariamente às Luzes e à filosofia do século XVIII que, como
vimos, visavam à emancipação e à felicidade dos homens, a técnica é realmente
um processo sem propósito, desprovido de qualquer espécie de objetivo definido:
na pior das hipóteses, ninguém mais sabe para onde o mundo nos leva, pois ele é
mecanicamente produzido pela competição e não é de modo algum dirigido pela
consciência dos homens agrupados coletivamente em torno de um projeto, no seio
de uma sociedade que, ainda no século passado, podia se chamarres publica,
república: etimologicamente, negócio' ou causa comum'.[7]
Desta forma parecem ficar suficientemente delineados os contornos do mundo da
técnica, traçados por Heidegger, tal como se percebem as razões que o animavam
e levavam a denunciá-lo: não se trata mais de dominar a natureza ou a sociedade
em função da liberdade e felicidade, mas apenas em função da necessidade de
competir, uma necessidade de proveniência exógena, isto é, imposta de fora pela
obrigação absoluta de progredir ou perecer.
3.Neste quadro o intelectual, engajado em nome de causas e ideias, dá lugar ao
especialistaem pareceres, investido do poder de um suposto saber para dizer aos
demais o que devem pensar, sentir, fazer e esperar, em todas as esferas da
vida. Ele não critica a ordem existente; pelo contrário, comporta-se como
agente do silenciamento dos sujeitos e da crítica, sendo esta substituída pela
proliferação ideológica de receitas para viver bem' e conforme ao regime
neoliberal vigente. E assim, ao arrepio de um dos princípios fundamentais da
democracia – o da competência política de todos os cidadãos - todos os temas
são agora considerados uma coutada privativa de especialistas e, por isso,
submetidos a considerações e decisões de natureza técnica, incompreensíveis à
maioria das pessoas.[8]
Sim, a autonomia racional da maioria dos cidadãos é uma miragem. E do mesmo
jaez é a preocupação com a sua educação cívica, assente na capacidade para a
comunicação argumentada, para (con)viver politicamente com os outros na cidade
democrática. Para prevenir o temor perante a crescente e letal influência
exercida pela ignorância. Para pôr cobro à incapacidade para expressar
exigências ou para compreender as que são formuladas pelos outros, para
questionar ou refutar os argumentos alheios, para ultrapassar a carência de
compreensão dos direitos e deveres impostos pela vida em sociedade, para
contrariar a adesão patológica a tribos, lobies e corporações de interesses
escuros. São os cidadãos ignorantes, todos com direito a voto, quem sustenta os
demagogos que prometem o paraíso a pataco e arranjam bodes expiatórios para
todas as frustrações.
Isto contradiz a ideia da democracia, já que no seu bojo mora o projecto de que
todos têm que adquirir o sentido da equidade e responsabilidade, aprender a
obedecer a leis e a praticar os valores partilhados. Até porque a trave mestra
da ordem democrática consiste em que nela não haja especialistas em mandar e
especialistas em obedecer, mas sim em que todos os cidadãos estejam aptos a
desempenhar os dois papéis. Para tanto a educação com selo democrático deve
cuidar de contribuir para a realização do direito fundamental de qualquer
homem, qual seja o de ser munido dos meios intelectuais necessários ao
exercício da deliberação, ou seja, da liberdade. E isto assenta na formação de
caracteres humanos capazes de persuadir e de se abrir à persuasão, de perceber
e apreciar a força das razões e recusar a razão da força, de participar em
cometimentos e celebrar acordos e transacções, de ser racional e razoável a
reconhecer o mesmo estatuto aos outros, enfim, na formação do cidadão apto a
manifestar aquilo que intrinsecamente é: um ser de pensamento, de palavra e
comunicação.
Todavia, em vez de serem perspectivados como príncipes inter pares', dotados
tanto da condição de mando como da de obediência, tanto da de objecto das leis
como da de sujeito delas, os cidadãos são paulatinamente conformados ao jugo da
vassalagem. A ordem vigente segue cada vez mais os ditames das conveniências de
uma minoria.
Até o conhecimento perde autodeterminação, ao tornar-se um capital tão ou mais
apetecido que o financeiro. Como se sabe, na dita e emergente sociedade do
conhecimento', a ciência, a informação e a tecnologia servem as estratégias da
economia, da indústria e do respectivo poder. Assim o saber não se define mais
por disciplinas científicas, mas por problemas e pela sua aplicação nos
sectores empresariais; mais, submete-se a controles de qualidade, com esta a
ser ditada pela relevância e eficácia económicas.
A autonomia da razão era a base da independência com que a racionalidade
científica da modernidade estabelecia o objecto, os métodos, os resultados e a
sua aplicação, segundo critérios imanentes ao conhecimento. A nova situação,
decretada e aplaudida pelos papagaios do pós-modernismo', subordina o saber a
imperativos exteriores. Deste modo a ciência, uma das mais belas e exaltantes
criações do génio humano, cai na dependência dos interesses económicos e
empresariais; são eles que determinam a utilidade e inutilidade, a validade e
caducidade dos saberes; são eles que concedem orçamentos e financiamentos. Isto
não atinge só às ciências duras; aplica-se igualmente às ciências sociais e
humanas que são convidadas a formar quadros não mais para serem empregues na
área de recursos humanos, mas para criarem e venderem serviços.
Consequentemente estamos a assistir à colocação das universidades e dos centros
de investigação na dependência da matriz neoliberal; a sua tradicional
autonomia deriva para heteronomia.
É assim que se perde a autonomia racional que era condição tanto da qualidade
do saber como da autoridade moral dos intelectuais - e das suas instituições -
envolvidos com as causas da sociedade.
Concretizando, o mundo desencantado ou, se preferirmos, a tecnização do mundo
ou ainda a competição técnica globalizada, em que hoje vivemos, surgem a partir
da desconstrução e demolição de marcos e alvos transcendentes e superiores;
deixaram de parte a racionalidade instrumental da técnica, afundaram o reino
dos fins e consagraram a lógica independentista e absolutista dos meios. É esta
a larga, espessa, amarga e dura linha que demarca e afasta o mundo
contemporâneo do Iluminismo, do Humanismo e da Modernidade: as febris e
instáveis evoluções, decorrentes aqui e agora e a toda a hora, não se ligam a
nenhum projecto comum e não almejam um mundo melhor, antes se demitem de
equacionar e chamar a si intenções dessa envergadura e empresas desse teor.
É certo que nada nos impede de manter o optimismo. Mas essa atitude provém mais
da necessidade e esperança, do desejo e da boa-vontade do que de convicções
fundadas nos factos em que a realidade é sobeja. Basta olhar em redor e
reflectir um pouco para cair no pessimismo e para notar que o receio e a
angústia tendem a tornar-se a paixão democrática por excelência. O sentimento
da descrença, incredulidade e perplexidade apoderou-se dos cidadãos. Pela
primeira vez na história da vida, uma espécie viva detém os meios de destruir
todo o planeta; e essa espécie não sabe para onde vai! Seus poderes de
transformação e, eventualmente, de destruição do mundo são, a partir de agora,
gigantescos, mas como um gigante que tivesse o cérebro de um recém-nascido,
eles estão totalmente dissociados de uma reflexão sobre a sabedoria – enquanto
a própria filosofia se afasta apressada, tomada que está, também ela, pela
paixão técnica.[9]
4.Vivemos hoje numa ansiedade constante. Foram-se, como vimos atrás, os
parâmetros e âncoras, os alicerces e pilares legados pelo humanismo e
modernidade. E no seu lugar ficou um vazio onde se instala toda a sorte de
inquietudes, de descrenças, cerrações e descorçoamentos que invadem
paulatinamente a vida. O mundo natural é cada vez mais incerto e menos fiável;
e o social – das instituições credoras de apreço e respeitabilidade, que
aprendemos a ver como guardiãs do apoio, segurança e tranquilidade, em caso de
problemas – desmorona-se a olhos vistos. Agora a aposta é nos que são fortes,
poderosos e ricos ou têm habilidade, esperteza e sorte para atingir esse
estatuto. Somos crianças perdidas, confusas e errantes, inundadas e possuídas
pelo sentimento de impotência e carentes de orientação e protecção.[10]
A democracia prometeu muito: servir os cidadãos. Mas afinal a quem e para que
serve? Em que regime vivemos? Que sentido e futuro inspiram os nossos dias? A
que grau de cidadania, civilidade, civilização e cultura está ela a levar-nos?
É isto que procuramos e nos realiza e exalta?
Somos seres de fuga e deriva. Donde fugimos e para onde vamos? Que sociedade
estamos a desfazer e que humanidade estamos a construir? Que república,
democracia e vida pública são estas? O que é feito da transparência,
integridade e honestidade e da pulsão altruísta?
Como diz Kundera, o ambiente é de neblina, embora não de escuridão total que
impede qualquer olhar ou movimento. Somos livres, porém só temos a liberdade de
uma pessoa na neblina: vemos coisas e gente à nossa volta e reagimos aos seus
actos e efeitos, mas não enxergamos para além de um raio diminuto. Viver na
neblina obriga-nos a focalizar a atenção na proximidade, nos problemas e
perigos visíveis, imediatos e prováveis. Vemos e vivemos no perto, no
superficial e transitório, não divisamos ao longe na obscuridade e
profundidade.[11] De fora da nossa compreensão e visão ficam as ameaças e
artimanhas, os malabarismos e jogos mais perigosos, imprevistos e, quiçá,
imprevisíveis. Contudo, paradoxalmente, não ficamos chocados com a revelação de
factos que nos abalariam seriamente se não vivêssemos na neblina. Protestamos,
é certo, mas é uma reacção ténue e fugaz, condenada a sumir-se na nossa
evocação e lembrança, antes da missa de sétimo dia. Já não partimos a louça nem
agitamos a bandeira da revolta, por mais que os políticos nos aldrabem e
desonrem a função, instalem e adensem o nevoeiro da hipocrisia e da dúvida e
desconfiança. Estamos treinados para a rotina da conformação e aceitação, para
fechar os olhos e tapar os ouvidos. Não ignoramos ou subvalorizamos os casos
escabrosos de vergonha e escândalo que nos aviltam e apoucam, mas, julgando que
assim lhes escapamos e preservamos a saúde mental e moral, fingimos que não nos
surpreendem.[12]
A luz brilha nalgumas casas, mas em muitas – e são cada vez mais! – a esperança
apaga-se e cresce o desespero da escuridão. A estreiteza e a farsa da vida na
neblina transformam-nos emTitanics, alertam eminentes pensadores da
actualidade.[13] Sabemos que há um iceberg à nossa espera e que ele nos
afundará fatalmente. Contudo, despojados dos meios e da vontade de o localizar
e evitar, damo-nos à cegueira e avançamos para o choque, bebendo e dançando ao
som da orquestra da leviandade e irresponsabilidade, indiferentes a
advertências e sussurros de maus presságios. As tábuas de navegar são postas de
lado. Na neblina vale tudo; cheira a perdição e podridão. Por isso preocupante
e monstruoso não é o iceberg, mas a falta de um plano sensato e viável para
evacuar e salvar os passageiros do navio que segue para o abismo, sem botes e
coletes de salva-vidas. É este logro ilusório que apanha as vítimas
desprevenidas e incapazes de reagir. Aquilo que não se afunda é quase nada; o
que resta é um papel fino, encharcado e enregelado. Oculto pela neblina o sol
da humanidade, o sonho esfuma-se e toma a deformação de um pesadelo.
Como se percebe bem, o progresso' dos nossos dias tem uma matriz estranha:
aproveita-se da falta de luz; nutre-se e cresce do cinzentismo e da miopia, da
manipulação e do condicionamento, da trapaça e do embuste que nos envolvem. E
conduz inevitavelmente ao colapso. Porque a neblina cerceia-nos o espaço vital,
como se não houvesse amanhã.[14]
Afinal o apocalipse acontece aqui e agora, no coração do mundo civilizado,
aclamado pelo seu esplendor e pelo deleite da ilimitada diversão e indiferença.
Confirmando que a casca da civilização tem a espessura de uma hóstia. Que somos
frágeis, náufragos, errantes e fracassados; andamos à procura de um ombro para
reclinar o rosto do desassossego. E que lutamos pela sobrevivência como cães
esfaimados e selvagens, num contexto de regressão e descivilização, convidativo
à guerra de todos contra todos.
5.Regressemos à Universidade com apoquentação redobrada, porque ela corre sério
risco de ser desfigurada e desmanchada por um exército de fervorosos cruzados
contabilistas que influenciam e tomam decisões e ocupam posições de topo. Eles
reduzem tudo ao cinzento: detestam o arco-íris das diferenças, são
monocromáticos na vista, no coração e na alma. Julgam-se reis absolutos deste
tempo que celebra o seu triunfo; e inebriam-se com isso. Consideram-se
iluminados e ungidos por um ente superior e cuidam que têm uma missão divina e
evangélica a cumprir. Têm que salvar esta pobre terra e trazer ao redil da
eficácia as pervertidas gentes. Frios e vazios de calor humano, ressequidos de
emoções e falhos de sensibilidade para os outros e os seus anseios e
afectações, para eles só valem números e cortes, reduções, fundações e fusões.
Revêem-se no anjo exterminador da Bíblia e assim, minados no seu íntimo pelo
Complexo de Édipo, armados de infalibilidade e alimentados pela inquebrantável
fé nas suas certezas, brandem a implacável espada do fogo aniquilador. Arrasam
e decepam tudo quanto se levante no seu caminho. Antevêem, lá ao fundo, o pódio
e a coroa da glorificação à espera deles, após destruírem o que encontraram e
refundarem as organizações em toda a linha. E sentem redobrar o astral do seu
ímpeto reformista ao ouvirem o coro de loas e incentivos provindos dos que
condicionam, determinam e, porventura, reconhecem ou pagam, embora mal, o seu
serviço. Uns sabem ao que andam e a quem servem; é possível que outros não se
dêem conta de que não agem por iniciativa própria, mas a mando e para lucro de
alguém.
O fanatismo e a obcecação não os deixam ver que o credo neoliberal não produz
um mundo melhor. Com a religião da gestão não passamos a viver num mar de
rosas; pelo contrário, ergue-se dia-a-dia bem alto e visível o calvário da
desumanidade. Também não concebem que são vencedores e estão na mó de cima em
circunstâncias que não podem durar muito tempo. Não percebem nem tampouco
admitem que o sucesso, que tanto os fascina e faz exultar por dentro e por
fora, é simultaneamente o começo da sua perdição. Não farão história nem terão
registo nela, porquanto o mal, a destruição e a perversão não cabem naquele
conceito. Apenas serão lembrados pelas piores razões.
Iludem-se cuidando que chegaram só pelo mérito pessoal aos lugares que ocupam.
Esquecem quem os auxiliou na ascensão e, com o mesmo desdém, renegam o sentido
dos votos que receberam. O programa que subscreveram e defenderam era mero
disfarce de uma agenda oculta. Ora a isso chama-se deslealdade e traição e
estas não ficam gravadas na exaltante e grata lembrança dos homens, antes são
uma porta para a desconsideração e comiseração. Na galeria dos heróis e
triunfadores não há lugar para tal gente. Ela fica ignorada na vala comum.
É certo que são narcisos incensados e adulados pela conjuntura; deslumbrados e
convencidos, recusam-se a ver a imagem desfigurada e infeliz que têm no espelho
da vida. Mas não vão longe; murcharão antes do prazo que imaginam estar-lhes
destinado. Porque os homens livres não têm a consciência à venda, nem a boca
afeita à mordaça. E sabem, como o imperador romano Júlio César, que os
cobardes morrem muitas vezes antes de morrerem de facto.
As instituições que atravessam o tempo, fazem história e nesta ganham assento e
respeito não são obra da pequenez e estrabismo dos vendilhões do templo; são,
sim, expressão da grandeza de sonhadores e empreendedores que as idealizam e
configuram para criar, acrescentar e prolongar o legado cultural da Humanidade.
6.Perante os desvarios atrás expostos, não se defende nem intenta fazer
regressar o passado ou carpir saudades e lamentos por ele; porém é necessário
aprofundar e construir outro presente. Para tanto é preciso recriar ideias e
ideais que balizem o desenvolvimento do mundo e o permitam ordenar e controlar,
uma vez que ele parece fugir até das mãos dos mais poderosos - não porque estes
tenham decoro ou dores na consciência, mas porque um desconcerto tão exagerado
não favorece a manutenção duradoira das suas hipócritas declarações. Ou seja,
são múltiplos os pretextos que insinuam a utilidade e a vantagem de ordenar ou,
no mínimo, restringir o mais possível a dominação técnica, mercantilista e
contabilística do mundo.
Esta tarefa coloca a filosofia contemporânea perante um dilema: aceitar a
conformação a ser mais uma disciplina técnica na configuração curricular com
que os fanáticos advogados e promotores do Processo de Bolonha porfiam em
apoucar e perverter a universidade, transformando paradigmas em paradogmas e
substituindo a razão pela teologia e a lucidez pela aberração; ou entregar-se a
reconstituir e renovar o Humanismo, para preencher o hiato deixado pelo seu
definhamento e abatimento.
A resposta parece óbvia, precisamente para aqueles que laboram no campo
universitário e científico e se interrogam acerca dos caminhos e tortuosidades
que ele está adoptar. Não é preciso ser filósofo por formação e profissão para
assumir a obrigação de reflectir. A reflexão crítica é um imperativo moral de
todo o ser humano digno desse nome que não suspenda o interesse pelo mundo e
queira estar à altura das exigências e circunstâncias da sua vida. Logo um
académico não pode deixar de ostentar essa qualidade indispensável, de exibir
em alto e apurado grau a capacidade de espírito crítico em relação a si mesmo,
ao seu perfil, papel e labor; nem pode ficar neutro e indiferente ao modelo que
hoje se quer impor a todo o custo, qual seja o de colocar a universidade e a
ciência sob o primado exclusivo da tecnologia e das suas ambições e valores'
curtos, míopes, pequenos e comezinhos, o de transformar todas as disciplinas
científicas, incluindo as duras', em tecnociências' mais preocupadas com
resultados e ganhos económicos, industriais e comerciais do que com fins,
questões e justificações amplas e fundamentais.
Ademais um académico deve tender para se afastar da ignorância e incultura e
abeirar da erudição; e esta, como dizia Hegel, tem início com as ideias e
termina com a imundície e com a pequenez e estreiteza das noções, visões e
perspectivas.[15]
Ou será que a um mestre ou doutor bastam uma especialização em miudezas, [16]
uma erudição prolixa em coisas minúsculas, mas vazia de alcance e compreensão
do todo, uma confrangedora ausência de inquietação em relação ao fundo cru
tecnicista e tecnológico em que mergulhamos? Não tem necessidade de alargar os
horizontes da sua especialidade e de enxergar, para além deles, valores
abrangentes, fundadores e mais promissores?[17] Não carece de uma teoria
(theion + orao) que o habilite a ver mais longe, o superior e divino?[18]
Se ele não se deixa atrair pelo apego à procura e ao cultivo da sabedoria e
espiritualidade, quem poderá e deverá interessar-se em substituí-lo nesse
empreendimento?[19] Quem poderá confrontar-se com a nostalgia de um passado que
não existe e com a projecção, antecipação e espera de um futuro indefinido?
Quem se ocupará da responsabilidade de refundar e propor uma transcendência da
natureza e da história pessoal e social, que nos ajude a idealizar e viver o
presente e a preparar a vinda do futuro? Quem combaterá o relativismo,
actualizará e formulará princípios e valores e lançará os pilares de renovação
e fundamentação da ética, da liberdade e da perfectibilidade em nós e fora de
nós?
Terá alma a Universidade, se os académicos se isentarem da obrigação de pôr em
questão a presente situação, se deixarem de pensar, isto é, de questionar sem
máscara, sem delonga e sem cedências a empenhos estranhos à essência da sua
instituição e missão? Seremos nós mesmos, se deixarmos de preservar o nosso Ser
e de perseverar na denúncia da penúria que nos ronda a porta?
Mais ainda, seremos capazes de nos pensarmos a nós mesmos, de ajuizar e avaliar
os nossos pensamentos, atitudes e actos, os outros, a vida, a sociedade, o
funcionamento do mundo e o nosso relacionamento com a alteridade, sem o recurso
à superação e transcendência e aos ideais e horizontes que elas apontam?
Manifestamente não. De resto, os genealogistas da pós-modernidade e do
materialismo (demolidores e arrasadores do humanismo e das suas grandezas, não
é demais repetir) pregam o amor ao mundo tal como ele é, numa espécie de
actualização da máxima antiga carpe diem – goza o dia de hoje, mas intimam à
revolução, à mudança e melhoria, quando ele não satisfaz. Com isso estão a
afirmar que a transcendência é uma dimensão incontestável e imanente à
existência humana, inscrita no centro mesmo do real.[20]
Logo o espaço universitário deve ser um espaço privilegiado onde cada um se
deve sentir obrigado à auto-reflexão, a tornar imanente a si mesmo, às suas
convicções, acções e respectivas consequências uma teoria da transcendência.
Uma teoria com um alcance e pensamento normativos alargados, que reflicta sobre
o que deve ser, que combata a arrogância, a sobranceria e o autoritarismo da
tecnociência'; e que convide a questionar os meios e os fins, a sacralizar o
outro, a divinizar o humano, a dar-se ao esforço de perseguir a
perfectibilidade e a liberdade, a sair e distanciar-se de si, a adicionar às
características originais, particulares e situacionais traços, noções e valores
universais e a incorporar, assim, a condição de individualidade e singularidade
na da universalidade, dada por uma perspectiva mais ampla, por uma experiência
e vivência com selo e identificação de humanidade.
A este propósito, não esqueçamos as lições aprendidas entre os dois séculos
que separam (a tragédia de 1755 em) Lisboa – que desencadeou as ambições
modernas – de Auschwitz, que as fez desmoronar, assim resumidas por Susan
Neiman:
Lisboa revelou o quanto o mundo estava distante dos seres humanos; Auschwitz
revelou a distância dos seres humanos em relação a si mesmos. Se desembaraçar o
natural do humano é parte do projecto moderno, a distância entre Lisboa e
Auschwitz mostrou como é difícil mantê-los separados
Se Lisboa assinalou o momento do reconhecimento de que a teodicéia tradicional
era inútil, Auschwitz marcou o reconhecimento de que nenhum substituto se saiu
melhor.[21]
A logodiceia é ainda muito frágil; não passa de um pequeno lume, mas não temos
outro para nos alumiar a caminhada. Há muitos passos por dar e degraus para
subir na escada que nos abeira do humano. A Humanidade continua a vestir de
luto, ainda distante, muito ferida e carente de raios de afecto e luminosidade
e de abraços de solidariedade, empatia e fraternidade nesta conjuntura de
tristeza e obscuridade, de suplício e precariedade, de pobreza e falta de
contemporaneidade. Não nos entreguemos à derrota e desistência; ao invés,
porfiemos em construir o poema da ética e estética, da arte e beleza, da
virtude e excelência, da radiosa e contagiante cidadania da universalidade.
Sejamos persistentes como os mosquitos da dengue, do mal e da desgraça, para
levarmos de vencida a teimosia das forças do descaso e desagregação, da mentira
e alienação, da trafulhice e corrupção, da ganância e especulação, da tragédia
e desolação, da fome e escuridão!
Em suma, todo o académico deve fidelizar-se aos compromissos que conferem
excelência à realização da essência da sua função, assimilando para tanto a
admoestação do Pe. António Vieira: Cada um é as suas acções e não outra coisa
( ) A verdadeira fidalguia é a acção. Ou a de Vergílio Ferreira: Só se
consegue aprender o que não nos interessa. Porque o mais, o que é do nosso
fundo destino, somo-lo.
[1] Ferry Luc (2007). Aprender a viver. Rio de Janeiro: Objetiva.
[2] As considerações, feitas nestas páginas, acerca da técnica' e da
tecnologia' em nada contendem contra a sua genuína função humanista, enquanto
instrumentos de liberdade e libertação do homem, o que é exemplarmente
ilustrado no mito de Prometeu inspirador do progresso e de todas as formas de
cultura e arte, como p. ex. o desporto. É também devido a elas que o homem se
solta da caverna e das amarras da animalidade e emerge ao sol da humanidade. O
que está aqui em causa é a deturpação da sua função, a conversão dos meios em
fins, como adiante se verá.
[3] Será que Nietzche teve razão ao antever este tempo e acusar a democracia de
degradação a uma forma decadente e curta da humanidade que ela reduz à
mediocridade e cujo valor ela diminui e, ao perguntar: onde depositaremos
nossas esperanças? (Ferry Luc, ibidem).
[4] Ferry Luc, ibidem.
[5] Ferry Luc, ibidem.
[6] O terramoto, o maremoto e incêndio de Lisboa, em 1755, exerceram grande
influência na filosofia e nos pensadores modernos. Como refere Zygmunt Bauman,
a filosofia moderna seguiu o padrão estabelecido pelo Marquês de Pombal,
primeiro-ministro de Portugal na altura daquela catástrofe. As acções e
preocupações do governante concentraram-se na erradicação dos males que podiam
ser removidos pelos humanos. Os filósofos modernos – acrescenta Bauman –
esperavam/confiavam/acreditavam que as mãos humanas, uma vez equipadas com
extensões cientificamente planejadas e tecnologicamente fornecidas, chegariam
mais longe. Também confiavam que, com essa ampliação, o número de males além de
seu alcance cairia – até mesmo a zero, desde que se tivesse bastante tempo e
determinação. (Bauman Zygmunt (2006). Medo Líquido, Jorge Zahar Editor, Rio de
Janeiro).
[7] Ferry Luc, ibidem.
[8] Novaes Adauto (2006). Intelectuais em tempos de incerteza. In: O Silêncio
dos Intelectuais. São Paulo: Companhia das Letras.
[9] Ferry Luc, ibidem
[10] Bauman Zygmunt, ibidem.
[11] Em conferência proferida no dia 7 de Maio de 2008 na Fundação de
Serralves, Porto, Frederico Mayor, antigo Director da UNESCO, fez esta atinente
afirmação: temos que ver o invisível para conseguir o impossível.
[12] Bauman Zygmunt, ibidem.
[13] Bauman Zygmunt, ibidem.
[14] Dei conhecimento prévio deste texto a Ronaldo Monte, um amigo e ilustre
pensador da Universidade Federal da Paraíba, Brasil; ele reagiu assim: Esta
neblina nos envolve a todos, em todos os continentes. Mas ainda não estamos
cegos. E mesmo vendo muito pouco, podemos nos apalpar e acharmos as mãos. E
trôpegos, mas lúcidos, ainda podemos fazer um caminho que nos leve além da
neblina, à clareira da solidariedade. Aí nos reencontraremos novamente.
[15] Ferry Luc, ibidem.
[16] Em texto com o título sugestivo DOUTORES ou ainda menos, publicado em 5 de
Maio de 2008, na última página do Jornal de Notícias, Porto, Manuel António
Pina ironiza com a oferta prolixa e esmiuçada de cursos de pós-graduação,
mestrado e doutoramento nos mais ínfimos assuntos. Só falta, diz ele, um
Doutoramento em Tudologia. E em Sueca, e em Arrumação de Automóveis. Mas lá
chegaremos. Por mais que nos doa, a caricatura é perfeita; resvalamos para o
ridículo, por irreflexão, por omissão, por desrespeito e traição à essência da
universidade e por perversão da sua missão.
[17] Merece ser chamado à colação o famoso postulado de Abel Salazar, nome
insigne da medicina da Universidade do Porto, homem douto, culto e
multifacetado, perseguido pelo regime salazarista (do outro Salazar!): Quem só
sabe de medicina, nem de medicina sabe.
[18]Teoria' tem origem etimológica no grego: theion (divino) + orao (ver).
Vem a propósito citar a passagem de uma canção do cantor Severiano Pessoa,
natural de Pernambuco, Brasil, que reza o seguinte: Visionários são
dicionários dos sonhos de Deus. Os académicos não se podem despedir deste
papel.
[19] A felicidade é a meta da filosofia; não uma felicidade qualquer, mas uma
felicidade que se obteria em certa relação com a verdade – afirma André Comte-
Sponville, com base na asserção de Santo Agostinho, de que a sabedoria é a
felicidade na verdade, isto é, a alegria que nasce da verdade. [André Comte-
Sponville (2005). A felicidade, desesperadamente, Editora Martins Fontes, São
Paulo].
[20] Transcendência na imanência humana, esboçada por Kant e formulada pela
fenomenologia de Husserl. Nunca alcançamos a transparência e o domínio
perfeitos da realidade do mundo, mas ela é-nos imanente através da
transcendência escondida, de valores que, embora situados em nós (imanência),
se impõem à nossa subjectividade, e sensibilidade, às nossas noções e acções,
como se proviessem de outra parte. Certamente descubro, mas não invento a
verdade de uma proposição matemática, tanto quanto não invento a beleza do
oceano ou a legitimidade dos direitos do homem ( ) Encontro-me diante de
valores que ao mesmo tempo me ultrapassam e, contudo, não estão em nenhum outro
lugar, visíveis apenas no interior de minha própria consciência. (Ferry Luc,
ibidem).
[21] Bauman Zygmunt, ibidem.
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