Reprodutibilidade do teste anaeróbio de Wingate em ciclistas
A força e potência muscular são parâmetros fundamentais para identificar a
performance atlética. Por isto, conhecer os níveis de força e potência muscular
individuais é importante para identificar níveis de capacidade funcional
ocupacional, assim como para a prescrição de exercícios, tanto visando o
desempenho atlético quanto a reabilitação neuromuscular (Brown & Weir,
2001). Neste sentido, o teste anaeróbio de Wingate (TAW) tem recebido especial
destaque da literatura especializada e embora não seja considerado gold
standard para a avaliação anaeróbia, muitos testes têm sido validados
comparando seus resultados a ele (Arslan, 2005; Coso & Mora-Rodrigues,
2006; Sands et al., 2004). Mesmo com o passar dos anos e a evolução das
ciências do exercício, o TAW continua sendo muito utilizado para avaliar a
potência e a capacidade anaeróbia (Carvalho et al., 2011; Kohler, Rundell,
Evans & Levine, 2010), predizer performance (Inoué, Sá Filho, Mello &
Santos, 2012), verificar adaptações positivas ao treinamento desportivo
(Hespanhol, Maria, Silva Neto, Arruda & Prates, 2006; Oosthuyse, Viedge,
McVeigh & Avidon, 2013) e em pesquisas que se propuseram a investigar
exclusivamente os detalhes metodológicos do teste (Bielik, 2010; Coso &
Mora-Rodrigues, 2006; Guerra, Giné-Garriga & Fernhall, 2009; Hachana et
al., 2012).
Um teste para ser válido ou fidedigno precisa medir o que se propõe, ser
sensível a modificações no condicionamento físico e ser reprodutível. Sendo que
a reprodutibilidade é definida como a capacidade de se reproduzir um teste e se
obter valores idênticos ou aproximados (Thomas, Nelson & Silverman, 2007).
Ainda, a reprodutibilidade é uma variável fundamental para a validação de
testes físicos, uma vez que os efeitos do treinamento desportivo para atletas
treinados muitas vezes são mínimos. Portanto, um teste com boa
reprodutibilidade e sensibilidade conseguiria identificar estas pequenas
alterações na performance. Alguns estudos têm-se proposto a verificar a
reprodutibilidade do TAW em mensurar a potência e capacidade anaeróbia em
adolescentes com síndrome de Down (Guerra et al., 2009) e em uma amostra de
homens e mulheres, com níveis de atividade física variando de sedentários a
muito ativos (Weinstein, Bediz, Dotan & Falk, 1998). O TAW é um teste
realizado tradicionalmente em cicloergómetro para membros inferiores, que
simula a atividade característica do ciclismo. Contudo, não foram encontrados
trabalhos investigando a reprodutibilidade do TAW em ciclistas, que é a
atividade que possui o mesmo gesto motor do teste. Sendo assim, o objetivo do
presente estudo foi verificar a reprodutibilidade de variáveis específicas do
teste de anaeróbio de Wingate (potência pico: PP, potência média: PM, potência
mínima: Pmin e índice de fadiga: IF) e de alguns marcadores fisiológicos
(concentração de lactato: [Lac] e frequência cardíaca: FC) e percetuais
(percepção subjetiva de esforço: PSE) associados ao teste em ciclistas
treinados.
MÉTODO
Participantes
A amostra foi composta de 15 ciclistas de nível regional do sexo masculino e
suas características antropométricas estão relatadas na tabela_1. O presente
estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas da Universidade Católica
de Brasília (CEP/UCB 011/2003). Após as informações dos riscos e benefícios da
sua participação no estudo, os sujeitos assinaram um termo de consentimento
livre e esclarecido, e fizeram parte da pesquisa de forma voluntária.
Instrumentos e Procedimento
Os testes foram realizados no Laboratório de Avaliação Física e Treinamento
(Lafit) da UCB, em um período máximo de 15 dias, com intervalo mínimo de 48
horas entre cada sessão, para cada voluntário. Os avaliados foram orientados a
não treinarem ou praticarem outras atividades físicas durante o estudo. A
temperatura e humidade relativa do ar no interior do Laboratório foram mantidas
entre 18 e 22°C e entre 50 e 70%, respetivamente, conforme orientado por
Guimarães et al. (2003).
Os testes foram realizados sempre no mesmo horário do dia para cada voluntário,
de acordo com sua disponibilidade, evitando assim a influência de diferentes
ciclos circadianos sobre o desempenho físico (Souissi et al., 2012).
Previamente às sessões experimentais, os voluntários realizaram uma sessão de
adaptação aos equipamentos e procedimentos do TAW. A ordem dos ciclistas nos
vários testes foi sempre a mesma.
Protocolo experimental do Teste Anaeróbio de Wingate
O aquecimento foi feito em cicloergómetro, com uma carga de 1 kp e com duração
de quatro minutos. O voluntário era estimulado a realizar sprints de quatro a
oito segundos no final dos três primeiros minutos de aquecimento. No final do
aquecimento, após três a cinco minutos de recuperação era iniciado o TAW
propriamente dito (Inbar, Bar-Or & Skinner, 1996). Os protocolos
experimentais constituíram-se de três TAW com carga fixa correspondente a 0.087
vezes a massa corporal do indivíduo, que corresponde a uma produção de energia
de 5.13 joules por revolução do pedal por kg (Bar-Or, 1987; Dotan & Bar-Or,
1983), em um cicloergómetro com frenagem mecânica (Monark Ergomedic 834E,
Suécia). Os indivíduos foram orientados a pedalar em intensidade máxima durante
30 segundos, contra uma resistência previamente estabelecida para uma potência
mecânica supramáxima e indução do desenvolvimento de fadiga. Para isto também
foram orientados a não se utilizarem de estratégias que permitissem a
conservação de energia (Inbar et al., 1996). A contagem do número de repetições
por minuto foi feita através de filmagem do experimento, com posterior
verificação e cálculo dos valores de potência obtidos (Bar-Or, 1987; Denadai,
Gugliemo & Denadai, 1997). Os avaliados foram estimulados verbalmente para
produzirem a maior potência possível durante os testes.
Frequência cardíaca e perceção subjetiva de esforço
A FC foi monitorada durante os testes, utilizando-se um frequencímetro (Polar
Sport Tester S810i, Finlândia), sendo obtidos os valores imediatamente após a
realização do experimento. Para análise da PSE foi utilizada a escala original
de Borg (1982), sendo coletados os valores imediatamente após o TAW.
Coletas e Análises Sanguíneas
As coletas das amostras sanguíneas foram realizadas no lobo da orelha, sete
minutos após o término dos testes, como empregado por Pardono et al. (2009),
utilizando capilares de vidros calibrados para 25 µL de sangue, depositados em
tubos Eppendorff's, contendo 50 µL de fluoreto de sódio (NAF 1%).
Posteriormente as amostras foram analisadas para quantificação da lactatemia a
partir de um analisador eletroenzimático (YSI 2700 SELECT, Estados Unidos da
América) no Laboratório de Estudos em Educação Física e Saúde (Leefs) da UCB,
Brasil.
Análise Estatística
Foi verificada a normalidade dos dados a partir do teste de Shapiro-Wilks. Para
verificar diferenças entre os testes foi utilizada a análise de variância para
medidas repetidas, com post-hoc de Tukey. Para análise da reprodutibilidade foi
usado o coeficiente de correlação intraclasse (CCI). Ainda, foi utilizada a
técnica de Bland & Altman (2010) para verificar a concordância entre as
variáveis. Em todas as análises o nível de significância estabelecido foi de p<
.05.
RESULTADOS
Os resultados não demonstraram diferenças significativas nas variáveis PP, IF,
[Lac], FC e PSE entre os três TAW. Já a PM e Pmin apresentaram diferença
significativa (p< .05) entre o segundo e terceiro TAW (tabela_2).
Os valores de CCI estão expressos na tabela_3 e a maioria das variáveis
estudadas apresentaram valores altos e significativos (PP, PM, Pmin, FC e PSE).
Para o IF obteve-se boas correlações entre os testes, com exceção da correlação
entre o teste 1 e o teste 3 (CCI= .475, p> .05). Já para a [Lac], não se obteve
correlação significativa entre o teste 1 e o teste 2 (CCI= .469, p> .05) e
entre o teste 2 e 3 (CCI= .361, p>.05). A técnica de concordância de Bland-
Altman foi aplicada somente na PP, por ter sido a única variável específica do
teste que não apresentou diferença significativa entre os testes e apresentou
altos valores de CCI, e como resultado verificamos boa concordância entre as PP
obtidas nos três diferentes testes (Figuras_1A,_1B_e_1C).
DISCUSSÃO
O presente estudo teve como objetivo verificar a reprodutibilidade de variáveis
específicas do teste de Wingate (PP, PM, Pmin e IF) e de alguns marcadores
fisiológicos ([Lac] e FC) e percetuais (PSE) em ciclistas treinados. A PP, IF,
[Lac], FC e PSE não apresentaram diferença significativa entre os testes.
Entretanto, a PM e Pmin apresentaram diferença significativa do teste 2 para o
teste 3 (tabela_2). O TAW apresentou altos CCI para as variáveis específicas do
teste, como a PP, PM e Pmin, assim como a FC e PSE. Contudo, o IF não
apresentou CCI significativo entre os testes 1 e 3, ao passo que as [Lac] não
apresentaram entre os testes 1 e 2 e entre 2 e 3 (tabela_3). Os valores de PP
apresentaram ainda boa concordância através da técnica de Bland-Altman (ver
figuras_1A,_1B_e_1C).
O TAW está altamente relacionado ao metabolismo anaeróbio, tanto pelas reservas
fosfagénicas quanto pela via metabólica da glicólise, uma vez que a
característica do teste é de esforço máximo com duração de 30 segundos (Hachana
et al., 2012). O marcador fisiológico mais utilizado para mensurar a taxa da
produção de energia através da glicólise é a [Lac]. Weinstein et al. (1998)
utilizaram a [Lac] e a FC para testar a reprodutibilidade do TAW em indivíduos
com diversos níveis de condicionamento físico e observaram alto CCI das [Lac] e
FC entre o teste e o reteste do TAW. No presente estudo a FC e a PSE
confirmaram os resultados das variáveis específicas do teste. Porém as [Lac]
apresentaram CCI não significativos entre alguns momentos, pelo que estes
resultados da [Lac] são controversos à literatura; portanto sugerimos futuros
estudos para elucidar essa questão. Contudo, o TAW foi desenvolvido para ser um
teste de simples aplicação, visando a avaliação do desempenho anaeróbio. Ainda,
o TAW não foi criado com o objetivo de se analisar a contratilidade muscular,
bem como o desenvolvimento de fadiga muscular, seja por acúmulação de
metabólitos ou outros mecanismos envolvidos na fadiga (Bar-Or, 1987).
Guerra et al. (2009) analisaram a reprodutibilidade do TAW em adolescentes com
síndrome de Down. A carga utilizada no estudo foi uma para adolescentes acima
de 14 anos (0.5 × peso corporal) e outra para os adolescentes abaixo de 14 anos
(0.7 × peso corporal). Os autores encontraram bons escores de CCI para PP (.93,
p<.05) e PM (.86, p< .05). Contudo, a PM apresentou diferença estatística entre
o teste 1 e o teste 2. Não obstante, através da técnica de Bland-Altman foi
possível verificar grande variabilidade entre os indivíduos, trazendo
restrições às interpretações dos scores de CCI. Devido a estes achados os
autores concluíram que a reprodutibilidade do TAW em crianças com síndrome de
Down é questionável. Embora a metodologia utilizada tenha sido particularmente
alterada para a população do estudo, a diferença estatística verificada na PM
confirma os achados do presente estudo onde encontramos diferença
estatisticamente significante na PM e Pmin.
Também foi verificada a reprodutibilidade do TAW com esforço unilateral,
utilizando somente a perna dominante, em crianças de diferentes estágios
maturacionais. Em dois testes realizados em dias distintos, foi verificada uma
melhora significativa no desempenho físico entre o teste e o reteste (p< .001),
embora tenham-se obtido bons valores de CCI (.89'.98). Os autores atribuíram
este ganho de performance a efeitos provenientes do aprendizado do teste
(Hebestreit et al., 1999). Já Jacobs, Mahoney e Johnson (2003), em uma amostra
composta por voluntários com paraplegia completa, não encontraram diferenças
estatisticamente significantes entre os valores de potência obtidos em teste e
reteste do teste anaeróbio de Wingate para membros superiores. Adicionalmente,
estes autores observaram também alta associação entre os resultados de potência
obtidos nos dois testes, através do uso de regressões.
Como limitação do trabalho fica a não investigação da carga ideal para a
amostra do presente estudo. Ainda, a não utilização de um dispositivo
eletrônico para quantificação da potência gerada, embora tenhamos utilizado uma
metodologia validada e amplamente utilizada na literatura (Bar-Or, 1987;
Denadai et al., 1997). Não obstante, recomendamos a proposição de estudos que
se dediquem a investigar a carga ideal e a sensibilidade ao treinamento/
destreinamento esportivo, do protocolo do teste anaeróbio de Wingate em
ciclistas.
CONCLUSÕES
O teste anaeróbio de Wingate apresentou, de uma maneira geral, boa
reprodutibilidade em ciclistas. Contudo, nem todas as variáveis responderam
conforme esperado, trazendo algumas ressalvas quanto a sua utilização para
prescrição de exercícios e acompanhamento de evoluções advindas de um
determinado treinamento. Entretanto, a potência pico, principal variável obtida
no teste, apresentou resultados consistentes, nos permitindo afirmar com
segurança, que é uma variável reprodutível em ciclistas, podendo ser utilizada
para avaliar ganhos/perdas de performance dentro de um programa de treinamento/
destreinamento.