Factores de risco para a infecção em artroplastia total do joelho
INTRODUÇÃO
A infecção é a complicação mais temida pelos cirurgiões e apresenta-se como um
dos maiores desafios na cirurgia de artroplastia[1]. A infecção assume-se como
a segunda maior complicação pós artroplastia total primária do joelho (ATJ),
apenas ultrapassada pelo descolamento asséptico[2,3], ocorrendo em 1-4% das ATJ
[4,5] e pode atingir uma taxa de mortalidade de 2,7-18%[6,7].
Kurtz et al. num estudo recente prevêem que o número de artroplastias totais do
joelho realizado anualmente ascenderá de 450 mil em 2005 para 3,48 milhões em
2030, o que traduz um aumento relativo de 673% que representa 70 000 doentes
com infecção de artroplastia por ano[8]. Haverá igualmente um aumento
proporcional da população em risco de infecção[8,9].
Tendo em consideração que um episódio de infecção periprotésica acarreta um
custo estimado 3-4 vezes superior ao da artroplastia primária, estimam-se
encargos psicosocioeconómicos devastadores, tanto para o paciente como para o
sistema de saúde responsável[9].
O objectivo deste trabalho é identificar os factores de risco que podem prever
maior probabilidade de infecção e desta forma estratificar o risco relativo,
seleccionar os pacientes de alto risco, e adoptar estratégias de prevenção
máximas.
MATERIAL E MÉTODOS
Estudo retrospectivo, comparativo, entre pacientes infectados e não infectados
consecutivamente submetidos a artroplastia primária total do joelho por
gonartrose tricompartimental, operados entre Janeiro de 2008 e Setembro de
2009.
Pela consulta dos processos clínicos foram registados factores extrínsecos ao
doente: duração de cirurgia, antibiótico profiláctico (cefazolina vs
teicoplanina) e timing de administração (<30min vs >30 min), tipo de anestesia
utilizado (geral vs neuroeixo), perdas hemáticas e volume transfusional; e
factores intrínsecos: classificação ASA, e a presença de comorbilidades como
hipertensão arterial, diabetes mellitus, obesidade (Índice de massa corporal -
IMC > 30) e imunodepressão (doenças inflamatórias crónicas com corticoterapia
ou imunossupressores ou insuficiência renal ou hepática crónicas).
A técnica peroperatória consistiu na lavagem mecânica do membro inferior com
iodopovidona e administração de antibiótico profiláctico previamente à
insuflação de garrote pneumático na raiz da coxa. Procedeu-se a artroplastia
cimentada e colocação de dreno aspirativo.
Foram adoptadas as definições do Center for Disease Control para infecções[10].
Assim, infecção superficial foi definida como aquela que ocorre nos primeiros
30 dias após a operação, envolvendo a pele e tecido celular subcutâneo da
incisão, e com, pelo menos uma das seguintes: drenagem purulenta com ou sem
confirmação laboratorial, isolamento do microorganismo, sinais inflamatórios
locais ou diagnóstico de infecção superficial feito pelo cirurgião. A infecção
profunda é definida como ocorrendo no primeiro ano após a cirurgia envolvendo
os tecidos profundos e com, pelo menos, uma das seguintes: drenagem purulenta,
deiscência espontânea ou abertura deliberada pelo cirurgião na presença de
sinais inflamatórios (febre e dor local), abcesso ou outra evidência de
infecção dos tecidos profundos em exame directo, reoperação, exame
histopatológico ou radiológico, ou diagnóstico de infecção profunda feito pelo
cirurgião.
Análise estatística com SPSS Statistics 17.0 (teste exacto de Fisher, teste de
Mann-Whitney e student t-test). Significância estatística para p≤0,05.
RESULTADOS
Foram avaliados 239 doentes. Registou-se um predomínio de pacientes do sexo
feminino (4:1) e uma média de idades de 69 anos (43-88). Não se encontraram
diferenças na lateralidade. A duração média da cirurgia foi de 92 minutos (39-
195). O período mínimo de seguimento foi de 20 meses.
Identificámos 10 doentes com infecção profunda (4,18%) e 10 doentes com
infecção superficial (4,18%).
Relativamente às infeccões profundas, encontrámos uma relação estatisticamente
significativa com a presença de obesidade (p<0,01), imunodepressão (p<0,01) e
volume transfusional administrado (p=0,02). Registou-se uma tendência para
infecção profunda, embora sem relação estatisticamente significativa, com maior
duração de cirurgia, tempo de administração de antibiótico profiláctico
inferior a 30 minutos antes da incisão cirúrgica, anestesia geral, maiores
perdas hemáticas, classificação ASA superior, e diabetes mellitus. Não se
encontrou vantagem de qualquer um dos antibióticos utilizados em relação ao
outro na prevenção de infecção profunda.
DISCUSSÃO
Este estudo determinou a taxa de infecção pós artroplastia total do joelho em
pacientes consecutivamente operados num hospital central e permite identificar
a obesidade, a imunodepressão e o volume transfusional administrado como
factores de risco significativos para a sua ocorrência. Outros factores,
habitualmente referidos na literatura, não mostraram associação, ou a tendência
para infecção não atingiu significado estatístico.
Os factores de risco podem ser potencialmente elimináveis ou minimizáveis, e
ligados ao paciente ou extrínsecos ao mesmo.
Pulido et al identificaram maior probabilidade de infecção periprotésica em
pacientes com score ASA (American Society of Anesthesiologists) superior a 2
[11]. Urquhart et al associam com forte nível de evidência infecção e pacientes
com score ASA > 3[12].
Um doente diabético possui cerca de 3,1 vezes maior probabilidade de
desenvolver infecção profunda[13]. Estudos de Marchant et al demonstram franco
benefício num controlo estreito das glicemias peroperatórias[14]. O bom
controlo das glicemias peroperatórias observado nos nossos doentes pode
explicar a ausência de relação com significado estatístico encontrada. Os
valores de Hemoglobina A1c reflectem o controlo glicémico a longo termo e com o
apoio da endocrinologia devem ser normalizados previamente à realização da
artroplastia[15].
A obesidade é um factor de risco transversal na literatura. Malinzak et al
reportam uma probabilidade acrescida de 3,3 vezes nos obesos (IMC >40) e
encontraram um odds ratio de 21,3 nos obesos com IMC>50[13]. Winiarsky et al
compararam um grupo de pacientes com obesidade mórbida submetidos a
artroplastia total do joelho tendo como controlo grupo não obeso[16]. No grupo
com obesidade mórbida, 10% dos doentes desenvolveram infecção profunda e em 20%
dos doentes identificaram-se complicações de ferida operatória. Logo é premente
a estimulação da diminuição do IMC previamente à artroplastia, tanto através de
dieta supervisionada por nutricionista ou mesmo por cirurgia bariátrica (bypass
gástrico)[17].
Pacientes com doenças inflamatórias, anemia falciforme, portadores de HIV,
insuficiência hepática ou renal crónicas têm risco acrescido de infecção pós
artroplastia[15]. A optimização da reserva fisiológica pré-operatória do
paciente deve ser máxima e dirigida: a carga viral deverá atingir níveis
indetectáveis nos HIV positivos e a hemodiálise preconizada nos insuficientes
renais crónicos. Pacientes sujeitos a terapêutica crónica à base de
corticoesteróides e imunossupressores (ex. artrite reumatóide, status pós
transplante alógeno) devem ser consultados previamente à cirurgia pelo médico
assistente de forma a ponderar a redução ou suspensão peroperatória da
medicação instítuida[18].
A antibioterapia profiláctica é consensualmente eficaz na redução da taxa de
infecção em artroplastia[17]. Staphylococcus aureus e staphylococcus
epidermidissão os responsáveis pela maioria das infecções periprotésicas[19].
Estudos recentes demonstram a crescente prevalência de infecções periprotésicas
causadas por Staphylococcus aureus meticilinoresistentes (MRSA) - 27% em
1999 para 62% em 2006[19-21]. Contudo, no nosso estudo o uso da teicoplanina
profiláctica vs cefalosporina de primeira geração utilizada (cefazolina) não
demonstrou vantagem custo /benefício. A academia americana de cirurgiões
ortopédicos (AAOS) publicou algoritmos para a escolha do antibiótico
profiláctico[22-24]. É dada preferência à Cefazolina e Cefuroxima
(cefalosporinas de 1ª geração), reservando-se a clindamicina ou vancomicina a
pacientes com alergias aos betalactâmicos. A Vancomicina encontra-se igualmente
recomendada em pacientes de alto risco para infecção por MRSA
(institucionalizados, antecedentes de infecção documentada por MRSA) ou cuja
unidade de cuidados médicos possua na população de pacientes ortopédicos
prevalência superior a 25%.
Os pacientes colonizados por S. aureusna mucosa nasal tem 2-9 vezes maior
probabilidade de desenvolver infecções de ferida operatória[25]. Quando a
infecção ocorre, em 85% dos casos a estirpe isolada na ferida operatória
corresponde à estirpe encontrada na cavidade nasal[25]. Uma das estratégias
propostas é um protocolo de rastreio e descolonização que pode incluir
antibioterapia com vancomicina, mupirocina nasal bidiária e banhos diários de
clorohexidina a iniciar 5 dias antes da cirurgia[26]. Um protocolo de
descolonização préoperatória pode diminuir o risco de infecção dos pacientes
colonizados[27,28] existindo porém estudos contraditórios que advertem para a
ausência de benefício da sua aplicação[29]. Logo, não é presentemente
consensual que a aplicação de um protocolo de descolonização a todos os
pacientes com indicação cirúrgica seja realisticamente eficaz na redução da
taxa de infecção em artroplastia[30], aguardando-se estudos clínicos
prospectivos randomizados[31]. À luz do conhecimento actual, pode ser
recomendado que apenas a população em risco para infecção por MRSA seja objecto
de rastreio e descolonização no pré operatório. Podemos incluir neste grupo
pacientes com infecção prévia por MRSA ou contactos directos com colonizados,
profissionais de saúde e institucionalizados (lares 3ª idade, prisioneiros).
Quanto ao tempo de administração, registamos uma tendência para infecção
profunda nos doentes submetidos a antibioterapia profiláctica menos de 30
minutos antes da incisão cirúrgica, embora sem significado estatístico. Segundo
Bosco et al, a antibioterapia profiláctica deve efectuar-se uma hora antes da
incisão cirúrgica, previamente à insuflação do garrote15. A excepção é a
vancomicina, que deve ser administrada 2 horas antes, o que permite uma infusão
mais lenta, diminuindo o risco de red man syndrome. Num estudo de Rosenberg et
al, a inclusão deste passo no "time out" cirúrgico aumentou
acompliance de 65% para 97%[32].
A suspensão do antibiótico deve ser realizada as 24 horas pós-operatório. A
continuação da administração de antibióticos profilácticos após as 24 horas não
demonstra eficácia e pode conduzir a sobreinfecção por microorganismos
resistentes[33]. A "repicagem" peroperatória deve ser realizada em
procedimentos cirúrgicos cuja duração ultrapasse as 4 horas ou quando as perdas
sanguíneas excedam 1500ml.
Apesar de tempos cirúrgicos mais prolongados poderem corresponder a
procedimentos igualmente mais complexos a sua redução deve ser adereçada, dada
a evidência como factor de risco independente para infecção[34-35]. De referir
que os estudos que apoiam esta associação comparam 2 grupos de doentes cuja
duração de procedimento tenha sido superior a 210 minutos ou inferior a 120
minutos, o que traduzem valores de "cut off" elevados não
aplicáveis na nossa prática clínica, já que no nosso estudo registamos tempos
operatórios médios de 92 minutos e daí possivelmente resultará a ausência
encontrada de relação com significado estatístico.
A anestesia do neuroeixo tem sido favorecida em procedimentos de artroplastia
do membro inferior. A anestesia locoregional do neuroeixo pelo seu efeito
hipotensor, diminui as perdas hemáticas e pelas propriedades vasodilatadoras, o
risco de eventos tromboembólicos. Diminui igualmente a necessidade de analgesia
endovenosa[36].
A morfina inibe a acção bactericida dos neutrófilos, logo o seu menor consumo
no pós operatório imediato pode estar associada à diminuição do risco de
infecção em fase aguda[36].
Tem sido relatada evidência crescente de que a administração de hemoderivados
confere maior risco de infecção periprotésica. Pulido et al demonstraram que
doentes que recebam transfusão pós operatória de glóbulos rubros (GR) possuem
2,1 vezes maior probabilidade de contrair infecção periprotésica[11]. Esta
associação encontra fundamento na imunomodulação provocada pela administração
de sangue alogénico e pela lesão de armazenamento dos GR e sua acção inibitória
sobre a microcirculação e o aporte de oxigénio ao local operatório. A
autotransfusão adivinha-se uma alternativa válida[37]. Defendemos a realização
de hemostase peroperatória cuidada e transfusão criteriosa: anemia sintomática
(taquicardia, taquipneia, hipotensão) ou Hemoglobina <8g/dl ou <9g/dl de forma
a não causar agravamento de comorbilidades (Insuficiência cardíaca congestiva,
arritmias, entre outros)[37].
Face à taxa de infecção identificada, foram já adoptadas medidas de controlo
adicionais e sistemáticas, tendo por objectivo a sua redução.
Consistiram na identificação prévia dos doentes de risco; no estabelecimento
efectivo de um protocolo de antibioterapia profiláctica (administração 1h antes
da incisão cirúrgica), apenas possível devido a estreita coordenação entre a
equipa de enfermagem do internamento e a do bloco operatório; modificações na
preparação do campo operatório, incluindo o banho prévio com clorexidina,
tricotomia não abrasiva e desinfecção do membro inferior com clorexidina
alcoólica; adopção exclusiva de solução alcoólica para desinfecção das mãos da
equipa cirúrgica; uso de luvas cirúrgicas sem pó (2 pares) e, por último,
controlo efectivo do trânsito da sala operatória, tendo em consideração as
limitações inerentes a um hospital central, universitário e escolar, com
obrigações formativas pré e pós graduadas.
As referidas estratégias de prevenção aplicadas serão objecto de estudo
posterior para avaliação da sua eficácia.
CONCLUSÃO
A infecção em artroplastia acarreta elevado impacto socioeconómico, tanto pelos
custos directos, atribuídos às intervenções, implantes e dias de internamento
como pelos custos indirectos, nos danos psicológicos, profissionais e sobre as
actividades do quotidiano.
A incidência de infecção pós artroplastia total do joelho em pacientes
consecutivamente operados num hospital central foi elevada (4,18% infecções
profundas e 4,18% infecções superficiais).
A obesidade, a imunodepressão e o volume transfusional administrado foram
factores de risco significativos para a ocorrência de infecção. Outros
factores, habitualmente referidos na literatura, não mostraram associação ou a
tendência para infecção não atingiu significado estatístico.
É, portanto, mandatório identificar os factores de risco, corrigi-los ou
controlá-los de forma a prevenir infecção.