Schwannomatose em mulher de 83 anos de idade
INTRODUÇÃO
Schwannomas são tumores raros que derivam das células de Schwann, células
gliais que participam na bainha de mielina envolvendo o axónio e revestindo-se
de tecido conjuntivo denominado epinervo[1,2]. Embora benignos, podem atingir
grandes dimensões acabando por causar compressão nervosa[3]. São lesões de
crescimento lento e indolor, frequentemente evoluindo ao longo de vários anos
até ao diagnóstico mas podendo provocar fadiga muscular, parestesias ou dor
crónica[4].
Estes tumores tipicamente ocorrem de forma isolada em indivíduos saudáveis.
Schwannomas múltiplos do sistema nervoso periférico - nervos cranianos,
raizes medulares, plexo braquial ou lombossagrado, ou nervos periféricos
principais - estão descritos em associação com neurofibromatose tipo 2
(NF2) e outras síndromes raras como o complexo de Carney. Doentes jovens com
NF2 tipicamente desenvolvem schwannomas vestibulares (SV) bilaterais e têm uma
incidência aumentada de meningioma, ependimoma e astrocitoma, juntamente com
diversas alterações oftalmológicas como opacidades lenticulares subcapsulares
posteriores juvenis / cataratas corticais juvenis[4].
Nas duas últimas décadas surgiram relatos de doentes com schwannomas múltiplos
e sem NF2 (sem SV bilaterais) - uma entidade nosológica definida como
schwannomatose, considerada como uma terceira forma de neurofibromatose[5].
Existem duas formas de schwannomatose não relacionadas com NF2 -
schwannomatose esporádica (SE) e schwannomatose familiar (SF). SE apresenta uma
incidência de 1 novo caso para 1,7 milhões, semelhante à NF2, havendo apenas
descrições raras de clusters familiares[6]. Ao invés a SF parece ter
transmissão autossómica dominante. A schwannomatose múltipla exibe sintomas
habitualmente a partir da terceira década, sendo a dor - agravando ao
longo do tempo - o principal sintoma da maioria dos doentes5.
Os schwannomas do pé são raros [7,8] , mas quando presentes a sua localização
mais comum é nos tecidos profundos[9].
CASO CLÍNICO
Doente de 83 anos, sexo feminino, admitida no serviço de Medicina a 20 de Maio
de 2011 por pielonefrite aguda e traqueobronquite aguda. História prévia de
angina estável, síndrome demencial e glomus timpânico tratado com radioterapia
noutro hospital há 15 anos sem recidiva. Sem filhos; um irmão falecido com
tumor cerebral agressivo, aos 65 anos, apenas 3 meses após os primeiros
sintomas.
À admissão eram visíveis três massas: a primeira no pé direito, existente há
mais de 15 anos; a segunda no antebraço esquerdo, presente há 5 anos; e a
terceira na zona púbica, desde há 2 anos. Todas as lesões haviam crescido ao
longo dos tempos e o tumor do pé era doloroso e limitativo da marcha há mais de
2 anos.
O exame mostrava lesões moles e bem-definidas. A do antebraço era ovóide e
livre. A massa púbica era redonda e móvel. No pé o tumor era irregular e
aparentemente fixo à fascia subjacente (Figura_1). Sem alterações na pele
circundante, em qualquer um dos casos. Ecografia abdominal revelou imagem
púbica nodular, com hipoecogenicidade heterogénea, margens bemdefinidas e
estrutura vascular predominantemente periférica. Biopsias ecoguiadas às lesões
do antebraço e da púbis evidenciaram schwannoma, com proliferação de células em
paliçada e diferenciação neuronal (Vim+, PS100+, Actina-, Desmina-, CAM5.2-)
(Figura_2).
Foram efectuados diversos exames com vista ao esclarecimento das lesões. TC do
antebraço revelou massa oval (56x36x27mm) com margens bem-definidas e em
provável relação com o nervo mediano, limitada pela aponevrose muscular e sem
sinais de ossificação. TC abdominal mostrou nódulo sólido púbico subcutâneo
(51x44mm), em ligação com o nervo ilio-inguinal (Figura_3). TC do pé direito
exibiu tumor capsulado bemdefinido, situado internamente na face plantar entre
o calcâneo e as falanges. A cápsula era hiperdensa com conteúdo hipodenso, e a
lesão comprimia as estruturas adjacentes.
RM do pé direito confirmou massa sólida capsulada (120x63x54mm) na face
plantar, desde a região perimaleolar interna, junto do tendão tibial posterior
e dos tendões flexores dos dedos, isointensa em T1 e fortemente hiperintensa em
T2 (Figura_4). Com gadolínio verificou-se acentuada captação periférica e uma
zona central hipocaptante sugestiva de necrose (Figura_4). Sem alterações
ósseas ou musculares.
TC crâneo-encefálica (CE) não evidenciou tumor vestibular, permitindo excluir
NF2. Não foi considerada relevante a realização de RM CE.
Atendendo à limitação na marcha, provocada pela dor, decidiu-se com a família
pela ressecção cirúrgica da lesão no pé, intervenção decorrida de forma linear
durante sessenta minutos e sem hemorragia significativa. A peça era creme com
focos amarelados (Figura_5-A,B,C,D). Histologicamente apresentava cápsula e
células fusiformes com áreas densamente celulares alternando com zonas de
esparsa matriz disposta em paralelo, em paliçadas ou remoinhos. Núcleos grandes
e pleomórficos, com escassas mitoses. A imunohistoquímica era positiva para
vimentina e PS100, e negativa para actina, desmina e CD117.
Figura_5
Cinco dias após a cirurgia, a doente referiu febre e tosse com expectoração
mucopurulenta, tendo iniciado empiricamente amoxicilina + ácido clavulânico
endovenoso (ev). A cultura das secreções revelou Acinetobacter baumannii
sensível a amicacina, colistina e tigeciclina, pelo que se mudou terapêutica
para colistina ev. Apesar de alguma melhoria inicial, registou-se subsequente
agravamento paulatino, com febre alta e refractária.
Instituiu-se vancomicina ev. Novas culturas de secreções brônquicas
evidenciaram dois agentes: Escherichia coli produtora de beta-lactamases de
espectro estendido (sensível a gentamicina e meropenem) e Staphylococcus aureus
meticilino-resistente (sensível a gentamicina, cotrimoxazol e vancomicina).
Adicionou-se meropenem ev mas o quadro evoluiu desfavoravelmente, falecendo a
doente dois dias depois. Não foi requisitada autópsia.
DISCUSSÃO
Os schwannomas podem surgir em qualquer idade, mas mais frequentemente entre os
20 e os 60 anos.
Representam 5% das neoplasias benignas de tecidos moles[2]. Crescem lentamente
e não apresentam variação por sexo ou raça[2]. Habitualmente decorrem meses a
anos entre o início dos sintomas e a cirurgia curativa[2].
As topografias mais típicas são: superfícies flexoras das extremidades,
pescoço, mediastino, retroperitoneu, raizes medulares posteriores e ângulo
pontocerebeloso[2]. O aparecimento de queixas relaciona-se mais com o local do
que com as dimensões do tumor, resultando da compressão nervosa que este
provoca. O nervo implicado revela-se à periferia, achatado ao longo da cápsula
mas sem penetrar a substância tumoral[2]. À observação as lesões são móveis
transversalmente ao percurso do nervo mas fixas no plano longitudinal.
Macroscopicamente são massas globosas, tipicamente abaixo dos 5cm e rodeadas
por cápsula de epinervo.
Seccionadas, revelam mistura de tecido fibroso acinzentado e focos amarelos; os
tumores de maiores dimensões apresentam com frequência regiões quísticas[2].
Reconhecem-se dois padrões microscópicos: 1. áreas A de Antoni, que preenchem
quase a totalidade dos schwannomas pequenos, com muitas células fusiformes
organizadas em paliçada; 2. áreas B de Antoni, onde as células tumorais estão
imersas em fluido abundante que pode formar espaços quísticos. As lesões
antigas exibem também células isoladas com núcleos hipercromáticos bizarros,
sem significado patológico. Há escassas mitoses. Por vezes a existência de
muitos vasos pode simular neoplasia vascularizada. Podem aparecer também fibras
"amiantóides" ou esferas de colagénio com bordos espiculados, e os
maiores tumores podem ter macrófagos esponjosos2. Raramente surgem áreas
epitelióides ou plexiformes[2].
A imunohistoquímica é positiva para proteína S100, mielina, calretinina,
calcineurina, componentes da lâmina basal, vimentina, receptor para o factor de
crescimento do nervo e lipocortina-1[2].
A TC mostra uma massa bem-definida, iso- a hipointensa em relação ao músculo e
captando contraste. A RM é o método de imagem mais útil no diagnóstico,
mostrando: 1) em T1, uma intensidade igual ou ligeiramente maior do que a do
músculo; 2) em T2 ou T1 contrastado, padrão em alvo com halo periférico
hiperintenso e baixa intensidade central. Estes aspectos surgem também em
tumores malignos de tecidos moles, cuja imagem por RM pode ser semelhante à dos
schwannomas[10].
O diagnóstico definitivo de schwannomatose aguarda identificação do locus
exacto. Para melhor organização clínica e de pesquisa, a National
Neurofibromatosis Foundation propôs um Consenso para uniformizar critérios
diagnósticos[4], dividindo os casos em "confirmados",
"prováveis" e "segmentares".
Schwannomatose "confirmada" pode englobar: A) idade >30 anos, >2
schwannomas não--intradérmicos confirmados histologicamente, sem evidência de
tumor vestibular por RM de alta resolução, e sem mutações em NF2, ou B) um
schwannoma não-vestibular com confirmação histológica e um parente directo que
preencha o primeiro critério. Schwannomatose "provável" compreende:
A) idade <30 anos, >2 schwannomas não intradérmicos, pelo menos um com
confirmação histológica, sem evidência de tumor vestibular em RM de alta
definição e sem mutações em NF2; ou B) idade >45 anos, >2 schwannomas não
intradérmicos, pelo menos um com confirmação histológica, sem sintomas de
disfunção vestibulococlear, sem mutações em NF2 ou evidência radiográfica de
schwannoma não-vestibular e com um parente directo que preencha o primeiro
critério para schwannomatose confirmada. Schwannomatose "segmentar"
ou "em mosaico" limita-se a um membro ou a <5 segmentos vertebrais
contíguos.
Detectam-se mutações constitucionais do gene NF2 apenas em 65% dos novos casos
de NF2, e esta patologia é francamente improvável em alguém acima dos 45 anos
de idade e sem sintomas vestibulococleares[11].
Na investigação de um doente, a exclusão de NF2 em casos duvidosos obriga à
realização de RM de alta resolução do sistema nervoso central (crâneo-
encefálica e da coluna vertebral), exame oftalmológico detalhado e teste
genético para mutações constitucionais de NF2[11]. SV não estão presentes na
schwannomatose. Contudo, a incidência de SV unilaterais esporádicos aumenta
acima dos 50 anos, pelo que a presença de SV unilaterais num doente não implica
que estejam relacionados com outros schwannomas periféricos. O mesmo vale para
doentes com schwannomas múltiplos não-vestibulares que desenvolvam meningiomas
ou cataratas em idade mais avançada. Inversamente, a suspeita deve pender para
NF2 (e não schwannomatose) quando surgem cataratas, schwannomas cutâneos,
meningiomas, gliomas ou ependimomas em doentes jovens com schwannomas múltiplos
não-vestibulares[11].
Embora possa haver sobreposição clínica e fenotípica entre schwannomatose e NF2
[4], estas são entidades distintas. Estudos moleculares revelam presença, nos
doentes com NF2, de mutação germinativa autossómica no gene NF2 em 22q12[12],
enquanto a schwannomatose demonstra linkage não-germinativo ao cromossoma 22
[12]. Há relatos de alterações no locus do gene NF2 em tumores associados a
schwannomatose, mas nunca em tecidos não-tumorais. O locus da schwannomatose
não foi ainda identificado mas estudos de linkage delimitamno a um intervalo
com 5 milhões de pares de bases, proximal ao gene NF2 no cromossoma 22[4].
Foram encontradas mutações germinativas constitucionais no gene oncossupressor
INI1 como causa em 30-60% dos casos de SF e em menor percentagem na SE[13,14].
A principal indicação cirúrgica dos schwannomas continua a ser a dor refractá
ria. O tratamento indicado é a remoção extra- ou intracapsular. A dissecção
meticulosa dos schwannomas consegue remover completamente o tumor preservando o
nervo. Frequentemente é necessário recorrer à ampliação microscópica ou por
lupa, para não danificar fibras nervosas durante dissecção epi- e endoneural,
evitando assim perda neurológica. A recorrência do schwannoma após excisão
cirúrgica é rara[15].