Síndrome compartimental do antebraço
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, 41 anos, que recorre de manhã ao SU com um quadro
progressivo de dor no antebraço e parestesias na mão direita desde que acordou.
O seu acompanhante referiu que o doente esteve embriagado no dia anterior, não
tendo memória dos acontecimentos desse dia.
Não tinha história de traumatismo major ou ponto de aplicação visível. No
entanto, ao exame objectivo apresentava edema tenso do antebraço, dor à
palpação local agravada com o estiramento do punho e dedos, e pulso radial
mantido. O pulso radial estava presente mas diminuído e o tempo de
preenchimento capilar era elevado (superior a 2 segundos) e superior ao
contralateral.
Foi submetido a estudo radiográfico, que excluiu lesões ósseas.
Por apresentar exame objectivo sugestivo de síndrome compartimental do
antebraço, foi utilizado o medidor de pressão compartimental existente no
Serviço (Figura_1). Verificou-se que a pressão era de 40mmHg no compartimento
anterior e 34mmHg no compartimento posterior, para uma PA de 135/100 mmHg. O
doente foi mantido em observação com analgesia, sem crioterapia e com membro
pendente. Nas 4 horas seguintes, o quadro clínico manteve-se, sem alívio
significativo das queixas com analgesia endovenosa. A pressão do compartimento
anterior do antebraço foi de novo medida: 60mmHg. Devido a este agravamento,
optou-se por realizar fasciotomia do compartimento anterior do antebraço. Nas
análises pré-operatórias salientavam-se: creatinina 3,3 mg/dL e ureia 121 mg/
dL.
O doente foi submetido a fasciotomia do compartimento anterior do antebraço, a
qual foi prolongada até ao canal cárpico (Figura_2). A fasciotomia ficou
aberta, tendo ficado previsto o seu encerramento em segundo tempo, após 48 a 72
horas. O pós-operatório nesse dia decorreu com normalidade, havendo apenas
moderado repasse hemático do penso.
Na manhã seguinte, por degradação do estado geral e por repasse significativo
do penso, foram pedidas novas análises:
Hemograma: Hb 10,8 g/dL (↓), leucócitos 10.000/μL sem neutrofilia
Coagulação: INR 0,9, aPTT 27,1 seg
Bioquímica: Creatinina 6,2 mg/dL (↑↑↑), ureia 144 mg/dL
(↑↑↑), CK 16559 U/L (↑↑↑), LDH 1127 U/L
(↑↑↑), AST 933 U/L (↑↑↑), ALT 141 U/L (↑)
Estes valores eram compatíveis com rabdomiólise maciça e insuficiência renal
aguda por necrose tubular aguda secundária a mioglobinúria. Nessa altura foi
instituída terapêutica farmacológica dirigida para a mioglobinúria.
Doze horas depois, foi feito novo controlo analítico: creatinina 7,1 mg/dL,
ureia 158 mg/dL, CK 16162 U/L e LDH 1341 U/L. Devido ao agravamento da função
renal, o doente foi transferido para uma Unidade de Cuidados Intensivos e
posteriormente para Nefrologia para hemodiálise, tendo alta após 3 semanas com
recuperação da função renal. Voltou à Consulta de Ortopedia sem queixas de dor
ou parestesias e com função normal do membro. Nessa altura foi referenciado à
Consulta de Cirurgia Plástica para eventual cobertura com enxerto de pele.
Entretanto, abandonou a consulta de Ortopedia.
FISIOPATOLOGIA
Todos os grupos musculares são cobertos por fáscia, um tecido conjuntivo
inelástico que separa os grupos musculares em compartimentos. A pressão
compartimental em repouso é geralmente < 10mmHg1,2. No entanto, a fáscia torna
estes compartimentos pouco expansíveis, tendo assim capacidade limitada de
compensar aumentos de pressão intersticial.
O síndrome compartimental é um síndrome clínico secundário a um aumento da
pressão intersticial de um compartimento muscular que tenha duração e
intensidade suficientes para causar um compromisso isquémico e neurológico
desse segmento (e segmentos distais), se não for descomprimido1. É mais
frequente nos compartimentos anterior e posterior profundo da perna, e
compartimento anterior do antebraço. No entanto, pode ocorrer em qualquer
região em que haja músculo esquelético envolvido por fascia mais espessa.
O quadro clínico clássico é representado pelos 4 "P's": pain
(dor desproporcionada à lesão), paresthesias (parestesias), pallor (palidez) e
pulseless (ausência de pulso)3.
O síndrome compartimental tem uma incidência de 3,1 por cada 100.000
habitantes, e 69% dos casos são secundários a fracturas1. Pode ocorrer por:
* Aumento do volume contido no compartimento: fracturas (sobretudo se
fechadas), lesão grave de tecidos moles (ex: esmagamento ou esforço muscular
extremo), lesão vascular, extravasamento de fluido (ex: artroscopia)
* Redução do volume do compartimento: queimaduras (sobretudo circunferenciais
do membro), reparação de hérnia muscular.
Pode também ocorrer secundário a causas extrínsecas ao membro (ex: imobilização
gessada fechada) ou associado a patologia médica como síndrome nefrótico,
diabetes, hipotiroidismo ou distúrbios da coagulação.
Existem 3 teorias para o mecanismo fisiopatológico1:
* Teoria da pressão crítica de encerramento arteriolar - pressão
intersticial crescente supera a pressão de perfusão das arteríolas,
colapsando-as e interrompendo a perfusão local
* Teoria do gradiente arteriovenoso - a perfusão local de um
compartimento é proporcional ao gradiente arteriovenoso (a diferença entre a
pressão arteriolar e venosa locais). A pressão intersticial crescente causa
um aumento progressivo da pressão venosa, havendo interrupção da perfusão
local quando a pressão venosa se aproxima da pressão arterial (gradiente
arteriovenoso = zero).
* Teoria da oclusão microvascular - pressão intersticial crescente supera
a pressão intracapilar, interrompendo a perfusão capilar local.
Independentemente do mecanismo, todas as teorias apontam para a interrupção da
perfusão local e consequente isquémia como o factor desencadeante do síndrome
compartimental.
As fibras musculares são muito sensíveis a isquémia, sobretudo as oxidativas
tipo 1 que são as predominantes no compartimento anterior do antebraço. Após 6
horas de isquémia, pode ocorrer necrose muscular maciça (rabdomiólise), com
entrada da mioglobina em circulação. Esta precipita nos túbulos renais,
causando mioglobinúria e necrose tubular aguda com insuficiência renal aguda
secundária. Esta necrose muscular pode ser irreversível, podendo ter como
consequência uma contractura de Volkmann (contractura em flexão do punho, por
necrose dos músculos do compartimento anterior do antebraço) ou até amputação.
Pode haver também lesão neurológica isquémica irreversível por isquémia,
compressão ou toxicidade metabólica (acidose local prolongada)4. Mesmo após
descompressão cirúrgica, se esta for tardia, a libertação súbita na circulação
de grande quantidade de produtos de necrose muscular acumulados pode causar um
síndrome de reperfusão1 potencialmente fatal, com resposta inflamatória local e
sistémica severas, coagulação intravascular disseminada e falência multi-
orgânica.
DISCUSSÃO
O mecanismo fisiopatológico subjacente é a descida crítica da pressão de
perfusão local e distal do membro, por aumento da pressão tecidular local. Como
tal, perante a suspeita de um síndrome compartimental, o membro deve ficar
pendente e sem crioterapia (ao contrário do edema vasoactivo), para melhorar a
perfusão distal. Aqui, a força da gravidade pode agravar o edema mas melhora a
perfusão distal do membro.
A decisão de operar foi essencialmente clínica, mas suportada pela medição
seriada da pressão dos compartimentos.
Clinicamente, o síndrome compartimental manifesta-se por dor desproporcional à
lesão, agravada com o estiramento passivo dos músculos (19% de sensibilidade e
97% de especificidade) e edema tenso do compartimento (sensibilidade 54%,
especificidade 76%)5,6,7. O pulso e preenchimento capilar estão sempre
presentes na fase aguda. Podem haver também manifestações neurológicas (13% de
sensibilidade e 98% de especificidade) como parésia, hiperestesia ou
parestesias7. É de notar que as manifestações clássicas de ausência de pulso e
sinais neurológicos já são manifestações tardias de síndrome compartimental,
não sendo correcto esperar que estes ocorram para que se proceda à
descompressão, pois aí já pode existir lesão irreversível3,8.
A medição dos compartimentos é especialmente útil em doentes com alteração do
estado de consciência ou do estado neurológico (lesão vertebromedular ou de
nervo periférico, analgesia loco-regional), em compartimentos dificilmente
avaliáveis ao exame clínico (ex: compartimento posterior profundo da perna) ou
quando existe clínica mas sem história sugestiva tal como neste caso5.
Existem diversos critérios para a decisão de operar com base no valor de
pressão do compartimento, sendo que classicamente o mais utilizado era o valor
absoluto de 30-40 mmHg como limiar para se proceder à descompressão. No
entanto, actualmente o critério mais sensível e específico é o cálculo do ΔP do
compartimento2,3. O ΔP é a diferença entre a pressão do compartimento e a
pressão diastólica do doente. Se esta diferença for inferior a 30mmHg (ou 40
mmHg no contexto de fractura), a pressão de perfusão poderá estar comprometida,
havendo indicação para fasciotomia. Isto significa que em hipotensão (ex:
choque hipovolémico) o risco de síndrome compartimental é maior. No caso deste
doente, o ΔP à entrada já estava no limiar para descompressão.
Apesar de o quadro clínico ser sugestivo, o doente não tinha história nem
sinais de trauma significativo.
Como tal, em vez de ser imediatamente submetido a fasciotomia, ficou em
observação durante várias horas. Provavelmente, se a decisão de operar fosse
mais precoce, a rabdomiólise e a consequente insuficiência renal poderiam ser
sido atenuadas.
Por outro lado, no pré-operatório, o doente já apresentava creatinina 3,2, o
que não foi valorizado na altura. A terapêutica médica dirigida para a
mioglobinúria consiste na estimulação da diurese com fluidoterapia (NaCl 0,9% a
500mL/h) e alcalinização da urina com bicarbonato de sódio (1 ampola por cada
litro de soro), de modo a diminuir a precipitação da mioglobina nos túbulos
renais que causa a necrose tubular aguda8. Podem-se associar diuréticos como
furosemido ou manitol. Se esta terapêutica dirigida tivesse sido instituída
mais cedo, provavelmente as consequências em termos renais poderiam ter sido
menos graves.
As fasciotomias devem ser feitas com precauções, nomeadamente: antibioterapia
adequada, abertura de todo o compartimento, verificação de todos os
compartimentos do segmento, sem encerramento primário da pele ou fáscia, e
preenchendo todos os espaços. De um modo geral, todos os compartimentos do
segmento afectado devem ser verificados e descomprimidos. No entanto, há
evidências que, no caso de atingimento do compartimento anterior do antebraço,
a descompressão de apenas este compartimento é geralmente suficiente9. A
descompressão deve ser estendida até ao túnel cárpico3,4. Actualmente, existem
dispositivos de encerramento por vácuo que permitem um encerramento mais
precoce da ferida cirúrgica e com menor necessidade de enxerto de pele3.
CONCLUSÕES
O síndrome compartimental é uma patologia que pode comprometer o membro
afectado ou até a vida do doente, se não for tratado. O diagnóstico é
essencialmente clínico e exige um alto grau de suspeita. Geralmente ocorre em
contexto de trauma major típico como esmagamento de membro ou traumatismo
fechado de alta energia. No entanto, existem doentes em que a história ou a
clínica são pouco elucidativas, nomeadamente na ausência de traumatismo major
conhecido, em doentes com alteração do estado de consciência ou submetidos a
anestesia loco-regional. Nestes, a medição dos compartimentos pode ser uma
ajuda determinante para a decisão de proceder à fasciotomia.
Após a confirmação diagnóstica, o tratamento cirúrgico é emergente, devendo ser
efectuado até às 6 horas após a lesão.
É importante o controlo analítico seriado da função renal (ureia, creatinina) e
dos marcadores de lesão muscular (mioglobina, CK, LDH, AST) para a detecção
precoce da mioglobinúria e da degradação da função renal, de modo a ser
instituída terapêutica médica adequada para prevenir a evolução para
insuficiência renal aguda por necrose tubular aguda. Esse controlo deve ser
feito mesmo após a fasciotomia, pois já pode existir lesão muscular em evolução
ou um síndrome de reperfusão.