História do Tratamento Cirúrgico do Cancro da Mama: Empirismo e Ciência
A História de uma ciência é a História do pensamento humano sobre os fenómenos
dessa ciência. Os fenómenos são imutáveis, o que muda é a sua interpretação, e
é esse caminhar através de dúvidas e certezas - que se transmutam em novas
dúvidas! - que dá corpo à História dessa ciência.
Há verdades científicas para cada momento histórico, - os paradigmas - e nas
ciências aplicadas, de que a medicina é um exemplo, a prática está, em cada
época, conceptualmente de acordo com esses paradigmas, e por essa razão se vai
alterando com o decorrer do tempo.
Digamos que isto é, na actualidade, um conceito um pouco simplista do fenómeno
científico, porque as coisas não se passam com a linearidade que a cadeia:
"fenómeno → observador → conceito → aplicação prática", sugere.
Há, hoje, no tempo da sociedade da informação e da comunicação, factores sócio-
económicos que fortemente influenciam os caminhos do saber.
A mulher actual, informada, ao contrário da sua avó, exige ao médico de
família, se o tiver, mamografias de rastreio, porque sabe, ou pensa que sabe,
que quanto mais precoce for o diagnóstico de carcinoma da mama (CM), maiores
são as probabilidades de cura e de cirurgia conservadora, defendendo, assim,
não só a sua vida, mas também, a sua imagem, a sua auto-estima e a sua
sexualidade.
Esta vaga de fundo da sociedade para a ciência é que é um fenómeno
relativamente recente na História da Humanidade, pois que durante séculos o que
se passava era o contrário, com a ciência a lançar os seus "diktats"
sobre a sociedade passiva, porque ignorante.
Naturalmente o sentido deste movimento da sociedade para a ciência estimula a
investigação e obriga os investigadores a encontrarem mais rapidamente a
solução dos problemas e a lançarem mão de técnicas cada vez mais rigorosas e
sofisticadas:
Investigação ⇄ Sociedade
Do ponto de vista biológico o CM é idêntico há milhares de anos.
Vejamos, então, como variaram os conceitos a seu respeito e como os diversos
tratamentos acompanharam esta evolução.
A História do tratamento do CM acompanha, como seria de esperar, a evolução dos
fundamentos da ciência cirúrgica, e esta segue, "pari passu", o
progresso do conhecimento humano. Há uma longa fase empírica, de séculos, e uma
fase científica que tem pouco mais de cem anos. A última e mais importante
etapa é a dos derradeiros quarenta anos que corresponde sensivelmente à nossa
vida cirúrgica pessoal.
Chegámos à cirurgia com a mastectomia de Halsted acompanhada quase sempre de
radioterapia, passámos depois à mastectomia modificada de Patey, até à fase
actual em que predomina a cirurgia conservadora, ganhou o seu lugar próprio a
cirurgia reconstrutiva e se dispõe de potentes armas como a Quimioterapia, a
Hormonoterapia, a Radioterapia e, mais recentemente, a Terapêutica Génica.
O CM é um dos primeiros tumores malignos a ser reconhecido, uma vez que é um
tumor externo, facilmente evidenciado.
O papiro de Edwin Smith, coetâneo das pirâmides do Egipto, descreve oito casos
de tumor da mama, e distingue os tumores duros e frios, para os quais reconhece
não haver tratamento, dos quentes e com conteúdo líquido, isto é, faz uma clara
divisão entre cancros e abcessos da mama.
Hipócrates (460 - 377 a.C.), dotado de uma grande capacidade de observação
clínica faz esta descrição impressionante "...e aparecem tumores duros na
mama, uns maiores, e outros mais pequenos, que não supuram mas que vão sempre
crescendo e ficando mais duros. Daqui nascem os cancros oclusos1. Quando,
finalmente, os cancros aparecem, a boca torna-se mais amarga, e tudo os que as
doentes comem lhes sabe a amargo, e se lhes quiserem dar mais comida, recusam-
na, e fecham a boca. Começam a delirar, os olhos ficam parados e deixam de ver
com clareza, e a dor nascida na mama chega ao pescoço e às omoplatas, a sede
aparece, os mamilos tornam-se secos e todo o corpo fica emaciado. Quando as
doentes chegam a este estado, não recuperam e morrem da sua doença. É melhor
não aplicar qualquer tratamento em casos de cancro ocluso, porque, se se
tratarem, as doentes morrem depressa, mas, se não se tratarem, ainda duram um
longo tempo".
O grande papel de Hipócrates, na História da Medicina é ter intuído e
reconhecido que as doenças, até aí atribuídas aos deuses ou a magia, tinham a
sua origem em causas naturais, terrenas.
Perfilhando a teoria humoral das doenças que as explica por alterações do
equilíbrio entre os quatro humores do corpo humano - o sangue, a pituíta, a
bílis amarela e a bílis negra - atribui o CM a uma acumulação local desta
última. Registe-se que o termo cancro vem de "kakrinos" (caranguejo)
e foi criado por Hipócrates para definir este tipo de doença maligna.
Celso (25 a 30 a.C. - 45 a 50 d.C.), que viveu em Roma e foi contemporâneo de
Cristo, distingue os tumores precoces que, para ele, são os únicos que podem
ser extirpados, dos tumores avançados, os quais devem ser tratados apenas com
paliativos.
Galeno, cuja vida decorreu entre os anos 131 e 200 da era cristã, atribui o CM,
tal como Hipócrates, a um desequilíbrio de humores, a uma acumulação de bílis
negra (é da bílis negra que vem o termo melancolia). Sabemos o peso que tiveram
as teorias de Galeno, ou as por ele adoptadas e transmitidas, na medicina
ocidental, que as considerava verdadeiros dogmas, e esta, a teoria humoral do
CM, vai perdurar até ao século XVIII.
Leónidas, no 2º século da era cristã, regista o envolvimento axilar dos tumores
e executa mastectomias em que combina secção dos tecidos e cauterização.
Da queda do Império Romano até ao Renascimento as dissecções anatómicas são
proibidas pela Igreja Católica e pelo Islão, e há um retrocesso no conhecimento
médico e na prática cirúrgica. Apesar disso, cirurgiões como Henri de
Mondeville (1260-1320) e Guy de Chaulliac (1300-1368) propõem a excisão local
de tumores da mama - uma cirurgia conservadora da época! - e outros como
Guilherme de Saliceto (1210-1277) e Lanfranco (1250-1306) - este, curiosamente,
de Milão, hoje um centro tão importante de patologia mamária - propõem a
remoção completa da mama.
Com o Renascimento voltam a desenvolver-se os estudos anatómicos, base da
cirurgia.
André Vesálio (1514-1564) revoluciona a Anatomia e, sendo também um cirurgião,
executa mastectomias utilizando a laqueação de vasos na hemostase em vez da,
até então comum, cauterização.
Mas o tratamento cirúrgico do CM não era aceite por todos.
A mortalidade operatória era muito alta, quer no próprio acto cirúrgico, em que
a dor e a hemorragia actuavam sinergicamente para desencadear o
"shock", quer no pós-operatório imediato, pois muitas das doentes que
tinham sobrevivido à agressão cirúrgica viriam a sucumbir à infecção. A isso
acrescia a mortalidade própria da doença, e estava assim criado um quadro
desolador, que desencorajava os mais animosos e abria a porta aos tratamentos
locais mais esotéricos: pomadas várias, extractos vegetais, animais vivos
abertos ao meio, urina, fezes etc.
O grande Ambroise Paré (1510-1590), descrente das virtudes do tratamento
cirúrgico do CM, propunha a compressão intensa e prolongada dos tumores.
Suspeitamos que os resultados não seriam brilhantes...
No entanto, outros cirurgiões, como o alemão von Hilden (1560-1624) ou o
holandês Johannes Scultetus (1595-1645), mantêm acesa a chama da cirurgia, e
executam mastectomias e, já, dissecções axilares (fig._1). Como não podia
deixar de ser, estando assente em bases empíricas, não científicas, o progresso
no tratamento do CM, se é que havia algum, era lento.
"Natura non facit saltus" é um velho princípio filosófico, mas a
Ciência, que, no fundo, é o caminho que o Homem percorre para interpretar a
Natureza, essa, de vez em quando, dá saltos, sendo suficiente para isso o
aparecimento providencial de um homem que saiba encontrar um novo paradigma.
O Iluminismo, dando prioridade à Razão, veio a ser fonte de inúmeras alterações
ou, mesmo, inversões do sentido da Ciência.
Como vimos, durante séculos, o CM foi considerado uma doença sistémica -
desequilíbrio dos humores - que, por fim, se iria manifestar localmente na
mama. Seria a escola cirúrgica francesa que iria inverter a ordem dos factores.
Em 1757 Henri François Le Dran (1685-1773), (fig._2) publica uma memória na
qual explana o seu pensamento, fruto das suas observações: o CM é uma doença
com início local, na glândula mamária, e, a partir daí, através dos canais
linfáticos atinge os gânglios axilares só então se disseminando pelo organismo.
Isto é, se se conseguir fazer uma ablação loco-regional completa pode alcançar-
se a cura da doença.
Estavam criados os fundamentos da mastectomia com esvaziamento axilar.
Pela mesma época o seu compatriota Jean Louis Petit (1674-1750) aprovava os
conceitos de Le Dran e, com o enorme peso da sua autoridade, tornava-os
conhecidos do mundo médico. Não muito longe dos princípios que chegaram até
nós, escrevia no seu "Traité des Maladies Chirurgicales et des
Opérations": "...as raízes do cancro são os gânglios linfáticos
aumentados; os gânglios devem ser removidos bem como a fascia peitoral e
algumas fibras do músculo; a glândula mamária deve ser extirpada mas não deve
ser cortada durante a operação".
Entretanto, em Portugal, o que se passava?
Em ciência, exceptuando no que diz respeito às actividades relacionadas com as
viagens marítimas, fomos pouco dados ao pioneirismo. Será preciso chegar ao
séc. XX - Egas Moniz (este na forma conceptual), Reynaldo e Cid dos Santos -
para se encontrar uma cirurgia portuguesa inovadora. Assim, limitávamo-
-nos a seguir o que se fazia no estrangeiro e a cirurgia mais diferenciada era
executada por cirurgiões de outras nacionalidades que os nossos monarcas se
encarregavam de contratar como, por essa época, Falconet, Monravá y Roca,
Santucci ou Pierre Dufau.
O quadro era pintado nos seguintes termos pelo teólogo e escritor iluminista
Luís António Verney (1713-1792) na sua obra "Verdadeiro método de estudar
para ser útil à República e à Egreja" publicada em 1746: "os
cirurgiões portugueses são meros sangradores, não se arriscando a cortar uma
perna ou coisa semelhante, pelo que é necessário chamar estrangeiros; quando
lhes falam de anatomia respondem com uma risada", e, mais adiante,
"não há cirurgião que saiba curar as deslocações e as fracturas, sendo
necessário recorrer a um homem designado por um vocábulo novo, a quem chamam
algebrista, o qual é um tremendíssimo ignorante".
Na mesma linha, Ribeiro Sanches (1699-1783), em 1763, no seu "Método para
aprender a estudar Medicina", propunha "o envio de estudantes para os
grandes centros estrangeiros para poderem estudar anatomia e cirurgia".
Só com Manoel Constâncio (1726-1817) a cirurgia portuguesa viria a conhecer um
notável progresso a que não foi alheio o envio de estagiários
("pensionados") para os grandes centros cirúrgicos de Londres e
Edimburgo, já no tempo de D. Maria I.
Mas, diga-se em abono da verdade que o P.e Verney exagerava. De uma grande
cultura e lucidez, que o fariam chegar à cúria de Roma, o seu hipercriticismo
levava-o frequentemente a juízos injustos sobre os seus concidadãos.
Se é verdade que a maior parte dos autores portugueses de livros de cirurgia do
séc. XVIII trata dos assuntos na generalidade sem se referir a casos pessoais
(como com tanta riqueza tinha feito Amato Lusitano nas suas
"Centúrias"), o que é facto é que o cirurgião da Casa Real e Mestre
de Anatomia do Porto Manuel Gomes de Lima Bezerra (1727-1806) no seu livro
"Memórias Chronologicas e Criticas para a História da Cirurgia
Moderna" relata em termos vivos uma mastectomia feita por si a uma freira
com 25 anos, tendo a "chaga" cicatrizado completamente ao fim de dois
meses. Temos como certo que Lima Bezerra não seria o único a fazer
mastectomias, mas que isto deveria ser raro e requeria, então, grande coragem,
infere-se do que escreve a seguir: "O cancro he sem duvida huma
enfermidade cruel, mas a cobardia dos Cirurgioens he mais inhumana, que todos
os Cancros"2.
Não deixa de ser curioso passar uma vista de olhos sobre a literatura médica
portuguesa do séc. XVIII referente ao CM.
Na Biblioteca da Faculdade de Medicina de Lisboa fomos encontrar alguns
tratados dessa época e verificámos que os textos são muito parecidos entre si,
não se podendo acusar os autores de plágio pois, então, estas transcrições eram
muito frequentes e não caíam sob a alçada da Lei.
Dos livros consultados ("Recopilaçam da Cirurgia" de António da Cruz
- 1711; "Cirurgia Reformada" de Feliciano de Almeyda" - 1715;
"Castello Forte" de João Lopes Correia - 1723; "Cirurgia
Clássica, Lusitana" de António Gomes Lourenço - 1754 e "Luz
Verdadeira e recopilado exame de toda a Cirurgia", de António Ferreira -
1757), vamos reproduzir, como padrão descritivo, textos do capítulo
"Cancro nos peitos", de duas dessas obras, em que se evidencia bem o
quase plagiato que então se praticava:
"Conhece-se o cancro nos peitos, porque principia do tamanho, mais ou
menos, de hum chícharo3, e vay crescendo pouco a pouco, atè que se faz como
huma castanha, e às vezes como hum ovo, como comummente se vè. Logo no
principio he duro, de cor denegrida, ou lívida, com picadas que molestão; e
quando està mais crescido, he mais duro, e tem a cor como de chumbo, e as
dores, e afflicções são veementes, e finalmente se ulcerão"
("Cirurgia Reformada" - 1715);
"No princípio do seu nascimento começa do tamanho de huma lentilha, ou de
hÅ© grão de comer: e augmentado-se mais, parece do tamanho de huma castanha. He
duro com negridão algumas vezes, e outras he de cor lívida, e tras consigo
picadas puncturais. Crescendo mais, he duro, e de cor de chumbo, e tem dores
moderadas no princípio; porem no aumento são as dores intoleráveis. Se chega a
ulcerarsse, as dores são atrocíssimas" etc. (Castello Forte" - 1723).
António Gomes Lourenço, na Cirurgia Clássica Lusitana (Fig._3), tece
considerações muito curiosas no que diz respeito às indicações cirúrgicas e à
exequibilidade da mastectomia, definindo claramente as situações em que a
doença era operável, tais como "boa idade, constância de forças, bons
humores; não terá (a enferma) mais cancros, particularmente nas glândulas
axilares;...estará o cancro móvel sem aderência alguma com os tendões dos
músculos peitorais e costelas e não será formado de pouco tempo e com fúria -
uma clara referência ao carcinoma inflamatório -; não havendo ditas boas
circunstâncias, se não empreenderá a obra de sorte alguma, e fazendo-se se
apressará a morte".
Em seguida descreve a técnica da mastectomia simples sem dissecção axilar.
Do mesmo modo na Escócia, um pouco mais tarde, Benjamim Bell (1749-1806), autor
de um célebre tratado de cirurgia em 6 volumes, a cuja tradução francesa do ano
IV da Revolução, ou seja, 1796 da era vulgar, tivemos acesso, propunha a
mastectomia, mas agora com esvaziamento axilar, chamando a atenção para o
cuidado que era preciso ter com os vasos e nervos axilares.
Apesar de tudo isto, na era pré-anestésica e pré-antisséptica, os maus
resultados eram a regra e o pessimismo reinava; em muitos centros o tratamento
era considerado pior que a doença.
Assim, em 1853, Sir James Paget (1814-1899) que identificou a que é hoje
conhecida por doença de Paget da mama, escrevia: "...ao termos de decidir
contra ou a favor da remoção de um CM podemos, segundo penso, perder toda a
esperança de que a operação seja um remédio definitivo para a doença".
Note-se, no entanto, que apesar de haver descrições anteriores de dissecções
axilares, como vimos, a prática geral era a excisão mais ou menos alargada do
tumor.
A descoberta do microscópio revolucionou a compreensão das doenças.
O fisiologista alemão Johannes Müller (1801-1858) em 1838 demonstrava a
estrutura celular dos tumores malignos e o francês Joseph Récamier (1774-1852)
descrevia pela primeira vez a invasão local e venosa dos tumores e encontrava a
palavra "metástase" para definir a sua disseminação à distância.
O grande patologista alemão Rudolf Virchow (1821-1920) defendia, em 1858, o
conceito de que as metástases axilares ganglionares funcionavam como uma
barreira à invasão tumoral do organismo. Os seus compatriotas Karl Thiersch
(1822-1895) de Leipzig e Wilhelm Waldeyer (1837-1921), fisiologista,
reconheciam a embolização das células através dos linfáticos e das veias como
sendo o mecanismo que estava na base da metastização.
Este conceito, mais tarde, em contraposição com o de permeação linfática, isto
é, o preenchimento ininterrupto dos linfáticos por células malignas entre o
tumor e os gânglios axilares, viria a ter a maior importância na passagem das
mastectomias radicais e supra-radicais para a cirurgia conservadora da mama.
Mas a permeação linfática, cuja frequência se devia certamente ao estado
avançado em que a doença se apresentava quando chegava às mãos dos cirurgiões,
ganhou os favores destes e, assim, se estabeleceram os princípios que haviam de
levar ao tratamento loco-regional da doença, em breve defendidos nos E.U.A. por
Joseph Pancoast (1805-1882) e, principalmente, em Inglaterra por Charles Moore
(1821-1870) (fig._4) do Middlesex Hospital - Londres, onde desde 1803 havia um
registo preciso das doentes com CM, que foi o primeiro a nível mundial.
Charles Moore foi um dos mais influentes cirurgiões ingleses dos meados do
século XIX. Em 1867 apresentava perante a Royal Medical and Surgical Society de
Londres a sua comunicação intitulada "On the influence of inadequate
operations on the Theory of the Cancer". Para Moore, ao contrário do que
até aí se pensava, isto é, que as recidivas locais eram devidas a uma
predisposição constitucional, elas seriam o resultado de uma excisão
insuficiente. Não era um novo tumor, mas o mesmo, a partir dos fragmentos
residuais, não visíveis a olho nu.
Enunciava dois princípios importantes:
1. O tumor não deve ser cortado durante a operação, melhor, nem
sequer deve ser visto;
2. As recorrências do cancro são determinadas por uma dispersão
centrífuga a partir do tumor primitivo.
Daqui decorriam as seguintes conclusões:
1. O CM exige a extirpação de todo o órgão, o que inclui a cadeia
ganglionar axilar;
2. Os tecidos vizinho invadidos, especialmente a pele, devem ser
removidos em bloco.
Ainda nos E.U.A., Samuel Gross (1837-1889) e, na Inglaterra, o famoso Joseph
Lister (1827-1912), seguiam os princípios acima definidos. Este último promovia
a desinserção dos músculos grande e pequeno peitoral para mais fácil dissecção
da axila.
Em 1875 Richard von Volkmann (1830-1889), professor em Halle (Alemanha),
propunha a excisão da fascia peitoral e explicava: "Eu fui levado a
adoptar este procedimento porque, no exame microscópico, encontrei muitas
vezes, sem o esperar, uma invasão carcinomatosa da fascia enquanto o músculo
permanecia são".
Por esta época, entre 1878 e 1880, William Stewart Halsted (1852-1922), (fig.
5) mais tarde professor de Cirurgia e cirurgião-chefe do Johns Hopkins Hospital
(Baltimore), viajava pelos grandes centros cirúrgicos da Alemanha e da Áustria
e frequentava as clínicas de Theodore Billroth (1829-1894), Volkmann e
Thiersch. No seu regresso dos E.U.A. trazia na mala científica uma grande
bagagem cirúrgica e uma metodologia de organização hospitalar, de carreira
médica e de arquivos clínicos que iria influenciar toda a cirurgia americana.
Mas esta viagem de estudo tinha também apurado o seu sentido crítico.
Halsted considerava a mastectomia de Volkmann "obviamente
incompleta", e os resultados dos cirurgiões europeus, desastrosos. Por
exemplo Billroth, o consagrado cirurgião vienense, tinha uma mortalidade de
18,5% nas mastectomias e uma recorrência local de 82% aos 3 anos. Só 4,7% das
suas doentes tinham sobrevivido mais de 3 anos.
Halsted decidiu ressecar em bloco uma extensa porção de pele - que obrigava ao
uso frequente de enxertos de Thiersch -, toda a glândula mamária, o músculo
grande peitoral - e não apenas a sua fascia - e o conteúdo axilar. A esta
operação de Halsted, (fig_6) executada pela primeira vez em 1882 no Roosevelt
Hospital, Nova Iorque, foi dado o nome de operação completa e, mais tarde, o de
mastectomia radical. É preciso notar que, por falta de informação das doentes
(e às vezes por pudor) se tratava quase sempre de tumores muito avançados, com
invasão muscular e metastização ganglionar axilar.
Era esta operação que se praticava quando, em 1964, iniciámos o Internato nos
Hospitais Civis de Lisboa. (Fig._7)
Fica para sempre gravado na memória dos cirurgiões da nossa geração o quadro
patético e atroz, à luz dos conceitos actuais, quando, finda a mastectomia, se
nos apresentava a parede torácica despida das suas coberturas musculares e
exibindo a alvura da grelha costal que se expandia e retraía ao ritmo dos
movimentos respiratórios. Barbárie? Não, era o estado da arte...
Os resultados não se fizeram esperar. Em 1894 Halsted, com 50 casos operados,
sem mortes intra-operatórias, tinha uma recorrência local de 6% enquanto na
Europa - então o grande centro cirúrgico mundial - esse número se elevava a
valores entre 51 e 82%.
Em 1898 Halsted publica novo trabalho. Ao fim de três anos, das 133 doentes
operadas, 76 (57%) tinham sobrevivido e, destas, 40, ou seja 52%, viviam livres
da doença.
Como vimos, na Europa, Billroth obtinha apenas 4,7% de sobrevivência aos 3
anos, embora Ernest von Bergmann (1836-1907), de Berlim, atingisse os 30,2%,
mesmo assim longe dos resultados do cirurgião de Baltimore.
Os factos davam razão à prática de Halsted.
Note-se que um dos principais factores responsáveis por estes resultados era a
extrema delicadeza com que tratava os tecidos e a preocupação obsessiva com a
hemostase. Recusava-se a fazer mais do que uma mastectomia por dia, despendendo
3 a 4 horas na sua execução.
A ressecção em bloco era um conceito importante. Nos primeiros anos do século,
o cirurgião inglês William Sampson Handley (1872-1962) considerava o CM como
uma doença de desenvolvimento local inicialmente, mas que, depois, se estendia
de forma centrífuga por permeação linfática em todos os sentidos. Sendo assim,
dever-se-ia evitar seccionar os linfáticos porque isso poderia levar à
disseminação da doença.
Note-se como estes princípios, agora alicerçados na experiência acumulada e
numa abordagem científica mais rigorosa, se assemelhavam aos que Le Dran
defendia em meados do séc. XVIII.
Pela mesma época, embora um pouco mais tarde (1891), Willy Meyer (1858-1932),
da New-York Post-Graduate Medical School, chegava aos mesmos conceitos básicos
no tratamento cirúrgico do CM com diferenças de pormenor: utilizava uma incisão
um pouco diferente, iniciava a operação pela dissecção da axila e ressecava o
pequeno peitoral enquanto Halsted se limitava a seccioná-lo. As diferenças são
tão insignificantes que esta operação também foi conhecida por operação de
Halsted-Meyer.
Rudolph Matas (1860-1957), de Nova Orleães, afirmava: "a mastectomia
radical não oferece melhores perspectivas de cura ou probabilidades de evitar
as metástases internas... do que as obtidas por operações menos
mutilantes".
Mas, entretanto, no início do século, outra arma despontava no combate ao CM: a
radioterapia.
Em 1906 é publicado em Boston o primeiro trabalho sobre a nova modalidade
terapêutica. Em 1908 o francês George Chicotot, médico e pintor francês, que
viria a morrer com o "mal das radiações", seguia o mesmo caminho.
Ao lado de algumas curas espectaculares apareciam as complicações resultantes
de doses indiscriminadas de Raios X que, por essa altura, eram aplicados numa
única sessão levando mesmo à morte das doentes.
Só em 1919 Claude Regaud (1870-1941), de Paris, concebe a radioterapia em doses
fraccionadas.
Em 1922 o cirurgião inglês Geoffrey Keynes (1887-1982), irmão do mundialmente
conhecido economista John Keynes, utiliza pela primeira vez agulhas de rádio no
tratamento primário do CM, e sugere, em 1937, a combinação deste tratamento com
cirurgia conservadora em casos precoces. Isto valeu-lhe o ostracismo a que foi
votado pelos seus colegas.
Veremos mais adiante o papel desempenhado pelo radioterapeuta escocês Robert
McWhister que deu importantes passos no caminho que levou à cirurgia
conservadora da mama.
Em 1932, nos E.U.A. (Filadélfia), G. E. Pfahler num estudo incluindo 1022
doentes propõe a irradiação pós-operatória, notando aumento da sobrevivência
nas doentes com metástases.
Quando nos iniciávamos na cirurgia (anos 60 do séc. XX) o tratamento padrão do
CM era a mastectomia radical seguida de radioterapia, fosse qual fosse o
estádio da doença.
Já abordámos os primeiros passos da terapêutica cirúrgica e da radioterapia no
CM, isto é, do tratamento loco-regional da doença. Mas há muito se suspeitava
da possibilidade de um tratamento sistémico, coadjuvante do tratamento
cirúrgico, uma vez que vários factos apontavam para a existência de factores
que condicionavam a evolução da doença.
Em 1835 Sir Astley Cooper (1768-1841) - discípulo de John Hunter (1728-1793) -
observava e descrevia diferenças de padrão evolutivo dos tumores mamários em
mulheres pré e post-menopáusicas, assim como uma maior frequência de tumores
nas mulheres nulíparas.
Em 1889 Albert Schinziger (1827-1933), de Friburgo, verificando que o
prognóstico da doença era pior nas mulheres jovens, propunha a ooforectomia
como forma de "envelhecer as mulheres", melhorando-lhes o
prognóstico.
Mas só em 1895 o cirurgião escocês George Beatson (1848-1933), de Glasgow,
realizava a primeira ooforectomia bilateral com intenção curativa numa mulher
de 33 anos com uma metástase de CM na parede torácica, tendo obtido uma
resposta total.
O método foi seguido por outros cirurgiões com maior ou menor êxito e mais
tarde, como alternativa, começou a utilizar-se a radioterapia como meio de
ablação da função ovárica, menos eficaz, todavia, que a ablação cirúrgica.
Entretanto a concepção halstediana de que o CM era uma doença essencialmente
loco-regional, pelo menos de início, juntamente com a teoria da disseminação do
tumor por permeação linfática, que o próprio Halsted perfilhava, levava a
operações cada vez mais radicais.
Richard Handley (1909-1984) filho de William estimulado pela observação feita
pelo seu pai de recorrências para-esternais após mastectomia radical,
verificava que em 38% das doentes havia metástases ganglionares na cadeia
mamária interna e propunha a excisão desta. Isto foi feito de forma
sistemática, inicialmente, por Mário Margottini (1898-1981) em Itália.
Estávamos nos finais da década de 40 do séc. XX.
Nos E.U.A., Everett Sugarbaker (1910-2001) e Jerome Urban (1914-1991), do
Memorial Sloan-Kettering Center, Nova Iorque, foram os grandes promotores desta
intervenção.
Na Dinamarca Erling Dahl-Iversen (1892-1978) alargava a exérese até aos
gânglios supra-claviculares, mas a agressividade dos cirurgiões - e ao mesmo
tempo a sua coragem! - não se ficava por aqui.
Owen Wangensteen (1898-1981), de Minnesota, EUA, abria o tórax e excisava os
gânglios do mediastino - era a mastectomia supra-radical - e, em França, A.
Prudente, em 1949, levava a mastectomia até ao seu limite máximo que incluía a
amputação do membro superior! (citado por Daniel Roses).
Por outro lado atendendo à frequência com que os anatomopatologistas
encontravam lesões multicêntricas e ao risco de cancro na mama contralateral, o
nova-iorquino George Pack (1898-1969) propunha, em 1951, a mastectomia
bilateral no tratamento do CM clinicamente unilateral. Esta intervenção
reserva-se hoje para as situações em que o risco de CM contralateral é alto
como, por exemplo, nas portadoras de mutações nos genes BRCA 1 e BRCA 2, como
aconteceu recentemente no mediático caso da actriz americana Angelina Jolie.
Embora Urban se mantivesse durante muito tempo fiel à sua proposta, outros
cirurgiões pararam para reflectir, e o próprio Urban viria a desistir da sua
radicalidade. A morbilidade operatória era alta e a mortalidade atingia valores
inadmissíveis (12,5%). A sobrevida, essa é que não aumentava. O próprio Dahl-
Iversen reconheceu que tinha ultrapassado os limites do bom senso e em 1961
escrevia a Max Cutler: "Quanto à sua questão no que diz respeito à
dissecção dos gânglios para-esternais, posso dizer-lhe que na minha clínica
deixámos, desde Janeiro de 1959, de fazer a minha operação radical alargada,
pois verificámos que os resultados não melhoravam quando comparados com a
operação de Halsted seguida de radiação".
Nas décadas de 40 e 50 são feitas observações fundamentais para o
estabelecimento de novos conceitos respeitantes ao comportamento biológico do
CM e, portanto, à sua terapêutica:
Verifica-se que a permeação dos vasos linfáticos entre a lesão e os gânglios
axilares afinal era rara, e o que era mais frequente era a embolização o que,
de resto, já tinha sido notado por J. H. Gray, do Departamento de Anatomia do
University College, de Londres, em 1938;
Comprova-se que os linfáticos através do músculo peitoral são escassos e que,
mesmo que haja metástases nos gânglios de Rotter, o músculo não está
necessariamente invadido;
Confirma-se a observação, já feita em 1921 por Albert C. Broders (1885-1964),
anatomopatologista da Clinica Mayo, de que existem tumores não invasivos da
mama: os carcinomas "in situ";
Reconhece-se que os resultados obtidos por Halsted com um "follow-
up" de 3 anos, pioravam significativamente quando eram analisados aos 5 e
aos 10 anos;
Generaliza-se o conceito de que é necessário estadiar o CM para racionalizar
o seu tratamento. A primeira proposta feita neste sentido deve-se a Steinthal,
de Estugarda, que em 1905, propunha uma classificação clínica em três estádios,
1, 2, e 3. Nas décadas seguintes aparecem vários projectos mas o primeiro
devidamente estruturado e que conheceu uma difusão global deve-se a Cushman
Haagensen (1900-1990) (Fig._8) autor do livro "Diseases of the
Breast", que foi a "bíblia" da nossa geração, e teve uma
primeira edição em 1958, e Arthur Purdy Stout (1885 -1967), aquele, cirurgião,
e este, cirurgião e anátomo-patologista, no Columbia Presbyterian Medical
Center em Nova Iorque. Começaram por rever os casos operados no hospital entre
1915 e 1942 e, ficando impressionados com o número de mastectomias feitas sem
qualquer utilidade, estabeleceram os critérios clínicos de inoperabilidade
("categorical inoperability"), tais como, edema extenso da pele,
nódulos satélites peri-tumorais, edema do braço, metástases à distância e
outros. Com os dados obtidos a partir do estudo pormenorizado de 1058 casos
analisados criaram então a classificação clínica de Columbia em quatro estádios
progressivamente mais graves, A, B, C e D, que vigorou até à generalização do
critério T, N, M (Tumor, Nodes; Metastasis).
Os critérios de inoperabilidade foram publicados em dois números do Annals of
Surgery de 1943 e a classificação de Columbia na mesma revista em 1951.
É curioso notar que Haagensen foi um defensor estrénuo da mastectomia radical
de Halsted, mas considerava que a sua indicação tinha limites, marcados pelos
critérios de inoperabilidade. Na 3ª edição do seu livro, de 1986, dedica um
capítulo inteiro à crítica da cirurgia conservadora e à defesa da mastectomia
de Halsted.
A classificação TNM foi originalmente proposta à Union International Contre le
Cancer, em 1944, por Pierre Denoix (1912-1990) do Instituto Gustave-Roussy em
Villejuif, Paris. Classificava os CM em quatro estádios I, II, II e IV. Teve
uma versão inicial em 1958 e, a partir de então, sofreu várias revisões até à
versão actual.
Não valia, portanto, a pena operar todos os tumores malignos da mama e, como
alguns começaram a pensar, mas não Haagensen, dos operáveis, talvez se
obtivessem resultados idênticos com intervenções menos agressivas.
É quando, em 1948, entra em cena o inglês David Patey (1899-1977), (fig._9) do
Middlesex-Hospital, que poupa o músculo grande peitoral, ressecando apenas o
pequeno peitoral para ter acesso à axila, obtendo com isto uma grande melhoria
estética e, principalmente, funcional. Esta mastectomia radical modificada - a
operação de Patey, como passou a ser denominada - foi aconselhada com
entusiasmo por Richard Handley, já nosso conhecido. A técnica chega até nós uns
anos depois e lembramo-nos bem da transição do Halsted para o Patey. Foi um
enorme progresso funcional.
Até à irrupção da cirurgia conservadora da mama é esta a intervenção que,
acompanha grande parte da nossa própria experiência hospitalar na década de 70
e início da de 80. Registe-se em abono da verdade histórica que esta operação
era essencialmente a mesma que Charles Moore tinha proposto em 1867.
A Patey seguem-se, nos E.U.A., John L. Madden (1913-1999), do St. Clare's
Hospital, Nova Iorque, que preserva os dois músculos peitorais, e Hugh
Auchincloss (1915-1998) da Universidade de Columbia, Nova Iorque, que preserva
os gânglios apicais da axila. Mas neste país sobressai na cirurgia conservadora
da mama a grande figura de George Crile Jr. (1907-1993), (Fig._10) de resto um
cirurgião que em vários campos da cirurgia procurou diminuir a radicalidade das
intervenções. Muito contestado na época fez a sua última mastectomia radical em
1954, passando então à prática da mastectomia simples, e, mais tarde, da
tumorectomia, dispensando em casos precoces a linfadenectomia axilar. Embora os
seus críticos não fossem destituídos de alguma razão, Crile lutou denodadamente
contra a mastectomia radical, e o peso da sua autoridade viria a influenciar a
evolução do tratamento do CM.
Entretanto um poderoso meio de diagnóstico despontava: a mamografia. Foi este
método que permitiu identificar tumores em fases cada vez mais precoces,
ignorados pela doente e pelo seu médico, porque não palpáveis, possibilitando
assim um tratamento mais eficaz, embora isto hoje seja discutível.
A História da sua descoberta e difusão no meio médico é muito interessante, mas
sai do âmbito deste trabalho. Registem-se aqui apenas alguns nomes-chave desta
técnica: Albert Salomon - Berlim (1913 - primeiras mamografias em peças de
mastectomia), Otto Kleinschmidt - Berlim (1927 - aplicação clínica da
mamografia), Stafford Warren - Rochester (1930) e Walter Vogel - Leipzig (1931)
- importantes pioneiros na implantação e divulgação do método), Jacob Gershon-
Cohen - Filadélfia (anos 30-50 - relação entre a imagem e a lesão e rastreio em
mulheres assintomáticas), Raul Leborgne - Montevideu (1943 -
microcalcificações), Robert Egan - Houston (1960 - generalização da
mamografia), Charles Gros - Estrasburgo (anos 50-60 - generalização da
mamografia na Europa), Gerald Dodd - Filadélfia (1963 - localização com arpão)
e Philip Strax - Nova Iorque (1963 - 1966 - primeiro ensaio randomizado e
controlado do rastreio do CM).
Vamos agora rapidamente abordar um novo capítulo que se abriu, não propriamente
com fins curativos mas no sentido de restituir à mulher o gosto pela vida
tantas vezes perdido com a amputação mamária: a cirurgia reconstrutiva da mama,
ou, em sentido mais estrito, a cirurgia oncoplástica. (Fig._11)
Após tentativas episódicas ou inadequadas (Vincent Czerny, de Heidelberg, em
1895 com autotransplante de um lipoma, o italiano I. Tanzini, em 1906, com o
primeiro retalho músculo-cutâneo dorsal ou Louis Ombrédanne (1871-1956), de
Paris, em 1905,moldando o grande peitoral, passando pelo cirurgião plástico
inglês Sir Harold Gillies (1882-1960) que, em 1942, propõe um retalho cutâneo
tubular em dois tempos), seguiu-se um longo interregno, porque Halsted, que
influenciou toda a cirurgia mamária durante a maior parte do século XX,
considerava que a cirurgia reconstrutiva da mama poderia comprometer a cura da
doença, e só em 1963 os cirurgiões plásticos americanos Thomas Cronin e Frank
Gerow introduziram o implante de silicone. Em 1982 é a vez de C. Radovan criar
o conceito de expansão tecidular.
Em 1977 W. S. Schneider (Minnesota - EUA) volta a utilizar o retalho musculo-
cutâneo com o grande dorsal que Tanzini concebera, e no mesmo ano o alemão H.
Höhler propõe a reconstrução em dois tempos: retalho tóraco-epigástrico seguido
de implante.
Em 1979 o sueco Hans Holmström foi o primeiro a lançar mão da microcirurgia
para criar um retalho livre a partir do tecido de uma abdominoplastia e, em
1982, Carl R. Hartrampf (Atlanta - EUA) e colaboradores concebem o retalho
abdominal transversal (TRAM) que rapidamente se generalizou.
O primeiro objectivo dos cirurgiões dedicados ao tratamento do CM é,
evidentemente, curar a doença, mas, uma vez estabelecidas as técnicas que os
aproximaram desta finalidade primordial, passaram, cada vez mais, a preocupar-
se com o resultado estético das suas intervenções, de tal modo que se criou uma
cooperação com os cirurgiões plásticos, de que vimos vários exemplos nos
parágrafos anteriores. O refinamento dessas técnicas levou à mastectomia com
conservação da pele e com conservação do complexo aréolo-mamilar. B. S. Freeman
foi pioneiro da primeira, em 1962, em casos de doença benigna e B. A. Tofh e P.
Lappert alargaram a indicação deste método à doença oncológica, publicando o
seu primeiro trabalho em 1991. Os primeiros casos de mastectomia com
conservação do complexo aréolo-mamilar datam de 2005 e são da autoria de J.Y.
Petit, U. Veronesi e A. Luini, de Milão.
Todo este progresso na cirurgia reconstrutiva da mama se deve, por um lado, ao
impulso espontâneo de qualquer médico em melhorar os seus doentes e, por outro,
à pressão exercida por uma sociedade cada vez mais informada sacudida pela
afirmação da auto-estima da mulher e pelo feminismo moderno, que inclui o
reconhecimento da sua sexualidade. É na mesma linha de interacção da sociedade
com a investigação clínica que são criadas a nível mundial associações de
mulheres activistas contra o CM, com a maior importância, tendo uma dessas
associações, por exemplo, financiado significativamente, os trabalhos de
investigação que culminaram com a descoberta do Trastuzumab. Nos tempos actuais
também a pressão exercida pela comunicação social sobre a investigação e a
prática médica tem a maior relevância e a história do tratamento cirúrgico do
CM, com um forte componente emocional, é bem prova disso. A ciência pura, hoje
em dia, é impraticável...
A frase com que Theodore Uroskie (Norfolk- EUA) termina o seu artigo sobre
reconstrução mamária - "A ideia de que a mulher tem de viver sem uma mama,
é uma ideia do passado" - mostra bem como estamos longe dos conceitos
vigentes nos tempos em que iniciámos a nossa carreira cirúrgica.
Vejamos agora como nasceu e se impôs a cirurgia conservadora da mama.
Uma série de constatações e descobertas abriu caminho para este tipo de
cirurgia.
Em 1937, como já vimos, o inglês Geoffrey Keynes, que desde 1922 utilizava a
radioterapia no tratamento do CM, podia afirmar que com uma combinação de
excisão local do tumor e radioterapia se obtinha a mesma sobrevida do que a
alcançada com mastectomia radical, no que era apoiado por Stanford Cade (1859-
1973), do Westminster Hospital e por François Baclesse (1896-1967), de Paris.
Depois da 2ª Guerra Mundial o alemão DeWinter em 1959, o inglês Porritt em 1964
e a radioterapeuta americana Vera Peters em 1967, chegavam aos mesmos
resultados.
Em 1955 H. C. Engell demonstrava que há uma disseminação das células cancerosas
por via venosa e não apenas linfática e, mais, que essas células podem
"curto-circuitar" os gânglios axilares. Ao mesmo tempo prova a
existência de anastomoses linfo-venosas. Tudo isto põe em causa a permeação
linfática bem como a disseminação regrada "step-by-step" tão cara a
Halsted.
Chega então o tempo dos grandes ensaios terapêuticos que verdadeiramente vão
implantar a nível mundial a cirurgia conservadora da mama, o primeiro dos quais
decorreu no Guy's Hospital de Londres em 1972 sob a orientação de Hedley Atkins
(1905-1983). Digamos desde já que se tivéssemos que escolher três heróis desta
modalidade, eles seriam: Bernard Fisher (1918- ) (Fig._12) de Pittsburgh,
Umberto Veronesi (1925- ) (Fig._13) e Gianni Bonadonna (1934 - ) (Fig._14)
ambos de Milão, este último, pioneiro e uma autoridade mundial em
quimioterapia, cujo desenvolvimento, por importante que seja, não podemos
abordar neste esboço histórico.
Em 1957 Bernard Fisher até então interessado, entre outros temas, pela
regeneração hepática que estudava em ratinhos de laboratório, é chamado,
inesperadamente, e em boa hora, por I. S. Ravdin do National Institute of
Health para estudar a criação do Surgical Adjuvant Chemotherapy Breast Project
que vem a dar origem ao National Surgical Adjuvant Breast Project (NSABP).
Começou por estudar a biologia das metástases tumorais e, em11971, inicia o
protocolo B-04 do NSABP que engloba 1765 mulheres de 34 hospitais. São
comparados os resultados da mastectomia radical com a mastectomia simples
seguida de Radioterapia e com mastectomia simples, esta só nas doentes sem
adenopatias axilares. A conclusão a que chegam é que os resultados quanto à
sobrevida livre da doença e à sobrevida global são muito semelhantes, abalando
assim os fundamentos da cirurgia radical.
Em Milão, entre 1973 e 1980, Umberto Veronesi comparava os resultados da
quadrantectomia seguida de Radioterapia (técnica de QUART) com a mastectomia de
Halsted em tumores até 2 cm. Mais uma vez os resultados eram sobreponíveis.
Entre 1976 e 1984, de novo, Fisher, avalia os resultados obtidos em 1843
doentes a partir de ensaios com vários ramos:
Mastectomia radical com ou sem Radioterapia.
Tumorectomia com ou sem Radioterapia.
em doentes em estádio I e II com tumores até 4 cm. É o protocolo B-06 do NSABP.
Ainda desta vez os resultados são os mesmos excepto para a tumorectomia isolada
que levava a uma maior percentagem de recorrência local.
Este protocolo - apesar da falta de rigor do grupo canadiano que nele
participou o que, no entanto, não alterou o resultado final, mas levou ao
sancionamento injusto de Bernard Fisher, mais tarde reabilitado e indemnizado -
e o protocolo de Milão, impuseram, embora lentamente, a cirurgia conservadora
tal como hoje a conhecemos e praticamos. Mas o contributo de Fisher no
tratamento do CM não se ficou por aqui.
Para Fisher, ao fim de cerca de 20 anos de investigação laboratorial, nada se
passava na progressão do CM como o esquema ortodoxo, halstediano, estipulava,
isto é, uma evolução sequencial da mama para os gânglios axilares e destes para
o restante organismo. Pelo contrário, o CM é uma doença sistémica e a sua
metastização é, de certo modo, imprevisível. Foi partindo deste conceito que
veio a demonstrar a eficiência da quimioterapia adjuvante e da terapêutica
hormonal (Tamoxifeno) no tratamento da doença, bem como, a diminuição da
incidência do CM em doentes de alto risco submetidas ao tratamento preventivo
com este anti-estrógenio.
Estava definitivamente implantada a cirurgia conservadora da mama. Mas isto,
como sempre acontece com qualquer inovação em Medicina, não se fez sem uma
forte (por vezes, agressiva) e prolongada oposição dos adversários do método, o
que entre nós (e certamente noutros países) deu lugar a vários episódios quase
burlescos não relatáveis num trabalho desta natureza...
Não resistimos, no entanto, à tentação de contar uma pequena história passada
com Auchincloss. Tendo como director de serviço no Columbia Presbyterian
Medical Center, em Nova Iorque, o grande e poderoso Cushman Haagensen, para
quem, como vimos, a mastectomia radical de Halsted era sagrada, atreveu-se um
dia a fazer a operação conservando os músculos peitorais, sem ter avisado o seu
director. Como resultado foi proibido de operar com os residentes do hospital,
tendo que passar a tratar as suas doentes no Valley Hospital, New Jersey! Era
assim o poder dos directores de então...
Isto prova ao mesmo tempo, que nem os maiores cientistas são imunes às paixões
humanas, e que estas são capazes de obliterar a sua lucidez e de os levar a
cometer as maiores injustiças.
Registe-se que, nos EUA, quando começaram os estudos prospectivos, controlados
e randomizados do tratamento do CM, a oposição foi tão feroz que chegaram a ser
comparados à "Roleta Russa" e aos métodos utilizados pelos médicos
nazis nos campos de concentração!...
Em Portugal a implantação da cirurgia conservadora da mama também não foi
fácil, pois, quando se deram os primeiros passos, os seus detractores eram quem
detinha o poder. A sua verdadeira história - fácil de fazer porque os
protagonistas estão, felizmente, quase todos vivos - está ainda por escrever.
Registamos aqui alguns apontamentos devidos às informações pessoais, que muito
agradecemos, de Carlos de Oliveira (FM Coimbra), Joaquim Abreu de Sousa (IPOGF
- Porto) e Santos Costa (IPOFG - Lisboa).
Tanto quanto nos foi possível aperceber as primeiras cirurgias conservadoras da
mama - ainda a quadrantectomia - foram executadas em 1979, no IPO de Lisboa,
por José Cunha e Santos Costa.
No início dos anos 80, quase simultaneamente, Carlos de Oliveira, ainda no
antigo Hospital da Universidade de Coimbra e Guimarães dos Santos, e Cardoso da
Silva no IPO do Porto, abandonaram as mastectomias radicais de princípio
(Halsted e Patey) e implantaram o, então, novo método, que serviu de base para
o primeiro estudo prospectivo e randomizado comparando cirurgia conservadora e
mastectomia, realizado entre nós (estudo API0 002 patrocinado pela Associação
Portuguesa de Investigação Oncológica). Os resultados foram mais tarde revistos
por Joaquim Abreu de Sousa (IPO Porto) e constituíram o material da sua tese de
Mestrado (2004).
Como nos outros países este tipo de cirurgia foi adoptado lenta mas seguramente
pela comunidade cirúrgica portuguesa com algumas convulsões pelo meio...
Retomemos agora o fio da história um pouco mais atrás para fazer uma curta
incursão noutras modalidades terapêuticas e noutras técnicas cirúrgicas.
Entretanto ao lado da cirurgia desenvolviam-se a RXT, a QMT, a hormonoterapia e
a terapêutica génica (anti-corpo monoclonal trastuzumal) de que não vamos
tratar por o nosso tema ser o tratamento cirúrgico do CM. Mas não podemos
deixar de falar nalgumas técnicas mistas e nas intervenções destinadas a
influenciar o, digamos assim, "ambiente hormonal" que condiciona o
desenvolvimento do CM.
O radioterapeuta de Edimburgo Robert MacWhirter (1904-1989) (fig._15) entre
1941 e 1945 tratou 757 doentes do CM com mastectomia simples seguida de RXT
obtendo resultados semelhantes aos da mastectomia de Halsted. Isto foi muito
contestado, mas entre adeptos e opositores do método gerou-se um movimento
importante que aprofundou a investigação sobre o CM.
Sabia-se, mesmo antes de se terem descoberto os receptores hormonais (Toft -
1967), que o CM se desenvolvia mais rapidamente sob a influência dos
estrogénios.
Retomando o exemplo de Beatson no final do século XIX, Charles Huggins, (1901-
1997), cirurgião e investigador da Universidade de Chicago, mais tarde prémio
Nobel, começa a fazer a ablação dos ovários obtendo melhorias temporárias nas
doentes com CM (1951). Como as supra-renais eram também produtoras de
estrogénios propõe a adrenalectomia em 1962. Outros cirurgiões como o americano
Olof H. Pearson (1913-1990) e o neurocirurgião sueco Herbert Olivecrona (1891-
1980) levam este conceito até à hipofisectomia, publicando os seus resultados
nos anos 50 do séc. XX.
A inconstância dos resultados e a síntese dos anti-estrogénios fazem passar
estas intervenções à História.
Terminaremos este bosquejo histórico do tratamento cirúrgico do CM com um
apontamento sobre o conceito de gânglio sentinela, isto é, o primeiro gânglio
que a drenagem linfática da área peri-tumoral encontra no seu caminho, o qual,
estando livre de células malignas, permite evitar a linfadenectomia.
Foi Ramon Cabañas, um cirurgião sul-americano, quem primeiro estabeleceu este
conceito, em casos de carcinoma do pénis, em 1976.
Mais tarde, em 1992, Morton alarga a experiência a casos de melanoma.
Armando Giuliano, R.C. Jones e M. Brennan em 1997 e David Krag em 1998 aplicam
esta doutrina aos casos de CM e tornam-no num instrumento obrigatório na
selecção da técnica cirúrgica a adoptar. Da implantação e difusão deste método
resultou um enorme benefício para as mulheres, que deixaram de ser submetidas à
linfadenectomia axilar de princípio. E é com o manejo subtil destas armas -
cirurgia, radioterapia, quimioterapia e hormonoterapia, a que mais recentemente
se junta a terapêutica génica - que os médicos, em grupos multidisciplinares
que incluem enfermeiros e psicólogos em estreita colaboração com associações de
doentes mastectomizadas, tentam, no início do 3º milénio, dominar esse inimigo
desleal e proteiforme, capaz de aguardar anos para voltar a atacar quando e
onde menos se espera, mas fascinante pela sua complexidade, que é o Carcinoma
da Mama.
A história do seu tratamento é uma história de vitórias e derrotas de quedas e
ascensões, de avanças e recuos, mas é, também, através dos tempos e acima de
tudo uma história de grande dignidade humana vivida em conjunto por médicos e
doentes.