Duplicações do tubo digestivo no adulto: apresentação de três casos clínicos e
revisão da literatura
INTRODUÇÃO
Em 1733, Calder descreveu o primeiro caso clínico de duplicação intestinal.(1)
No entanto, foi Reginal Fitz o primeiro a utilizar o termo duplicaçãopara
descrever o que ele pensou que seria um remanescente do canal
onfalomesentérico.(2,3)
Em 1941, Ladd e Gross definiram as duplicações do tubo digestivo como
"estruturas ocas esféricas ou alongadas, com parede de músculo liso,
revestidas por mucosa, intimamemte ligadas a alguma porção do tubo
digestivo".(3,4,5)
São malformações congénitas raras, com uma incidência estimada de
aproximadamente 1:5000 nados-vivos(6), sendo mais frequentes no sexo masculino,
com excepção para as duplicações gástricas.(4,10,11)
Podem encontrar-se em qualquer ponto do tubo digestivo, desde a base da língua
até ao ânus, sendo mais frequentes no íleum e relativamente raras no estômago e
no colon.(3,4) Geralmente são lesões únicas, podendo em 10 a 20% dos casos
haver lesões síncronas.(7)
As duplicações podem ser de tipo quístico ou tubular. As quísticas,
correspondendo a 75% dos casos, não comunicam com o lúmen do intestino
adjacente, sendo que as tubulares podem ter ou não uma ou mais comunicações
através do septo comum.(7) Em 20 a 30% dos casos as duplicações contêm mucosa
ectópica, sendo a gástrica a mais frequente, o que sugere uma origem num
estadio precoce em células pluripotenciais.(3,6,8)
As duplicações quísticas possuem características anatómicas comuns às da parede
da estrutura-mãe, contendo todas as camadas, excepto na zona de contacto, onde
não há serosa e a muscular é comum às duas estruturas.(3)
Em casos isolados, as duplicações podem perder a conexão com o tubo digestivo e
ocupar uma posição entre folhetos do mesentério, situação que é rara. A regra é
a existência de uma camada muscular comum entre a duplicação e a estrutura-mãe.
(3,4)
Mais de 80% dos casos são diagnosticados nos primeiros 2 anos de vida e um
terço destas no período neonatal.(7,9) A apresentação clínica no adulto é rara.
(4) As duplicações intestinais associam-se frequentemente com outras
malformações congénitas, tais como: anomalias vertebrais, pancreáticas, baços
acessórios, atresias, outras duplicações digestivas, má rotação intestinal,
divertículo de Meckel, hérnias diafragmáticas, malformações cardíacas,
genitourinárias e extrofias.(3,10,11)
Apesar de serem lesões benignas, quando não tratadas, podem desenvolver
complicações responsáveis por uma morbimortalidade significativa.
APRESENTAÇÃO DE CASOS CLÍNICOS
Caso Clínico 1
Doente do sexo feminino, de 32 anos, sem antecedentes relevantes, que notou a
presença de uma massa abdominal, associado a náuseas e discreta perda ponderal.
Ao exame objectivo apresentava massa palpável no flanco direito com cerca de
15x20cm, consistência duro-elástica, móvel lateralmente, de limites inferior e
medial mal definidos e indolor à palpação. Apresentava cicatriz infra-umbilical
de cesareana prévia. Sem outras alterações no exame objectivo.
Analiticamente sem alterações dignas de registo. A ecografia abdominal revelou
formação quística na transição da região umbilical para o flanco direito,
unilocular, de paredes espessadas e conteúdo líquido homogéneo.
A TC abdominal (fig._1) evidenciou massa na região paraumbilical e flanco
direitos, hipodensa, homogénea, de densidade hídrica, redonda, bem delimitada,
de parede espessa regular e com realce ligeiro após administração de contraste
endovenoso, sugerindo tratar-se de duplicação intestinal.
No trânsito gastroduodenal constatou-se compressão extrínseca regular na grande
curvatura gástrica, sem opacificação da lesão, evidenciando a ausência de
comunicação com o lúmen gástrico.
A doente foi submetida a laparotomia exploradora, onde se encontrou uma lesão
quística na dependência da grande curvatura gástrica. Procedeu-se à ressecção
da lesão com gastrectomia em cunha associada. O pós-operatório decorreu sem
intercorrências.
O exame histológico da peça operatória confirmou o diagnóstico de duplicação
gástrica, com revestimento por epitélio cilíndrico glandular e porção de parede
muscular comum à parede gástrica.
Caso Clínico 2
Doente do sexo feminino, de 44 anos, sem antecedentes relevantes, que recorreu
ao Serviço de Urgência por quadro de dor no flanco e fossa ilíaca direitos com
8 dias de evolução, associado a anorexia. Ao exame objectivo apresentava-se
apirética, com dor e defesa à palpação do flanco e fossa ilíaca direitos, sem
massa palpável. Sem outras alterações no exame objectivo.
Analiticamente não apresentava alterações dos parâmetros de inflamação.
A ecografia abdominal revelou a presença de uma formação quística septada no
flanco e fossa ilíaca direitos, com 11x9cm, com conteúdo líquido, sugerindo
tratar-se de ansa intestinal distendida ou formação anexial.
A TC abdomino-pélvica (fig._2) evidenciou uma formação ovalada no flanco e
fossa ilíaca direitos, com 120x105x78mm, hipodensa, septada na sua porção
superior, em relação com área anexial direita, sugerindo tratar-se de torção de
quisto do ovário direito.
A doente foi submetida a laparotomia exploradora urgente, tendo-se encontrado
intra-operatoriamente lesão quística do cego, com duplicação da ténia anterior,
compatível com duplicação do cego. Procedeu-se a hemicolectomia direita. O pós-
operatório decorreu sem intercorrências.
O exame histológico da peça operatória confirmou o diagnóstico de duplicação do
cego, tendo evidenciado também uma malformação da parede do apêndice cecal
(fundo de saco lateral).
Caso Clínico 3
Doente do sexo feminino, de 39 anos de idade, sem antecedentes relevantes,
admitida no Serviço de Urgência por quadro clínico de dor abdominal localizada
no flanco e fossa ilíaca esquerdos, com irradiação lombar e associada a
sensação de massa abdominal nos quadrantes esquerdos.
Analiticamente não apresentava alterações dignas de registo.
A ecografia abdominal revelou formação ovalada com cerca de 25cm de diâmetro,
predominantemente ecogénica, não sendo possível identificar o órgão de origem.
A TC abdomino-pélvica (fig._3) mostrou lesão quística cilíndrica com
75x69x181mm, que se estende deste a pélvis até ao polo inferior do rim
esquerdo, de características benignas, capsulada, bem delimitada e de
localização exclusivamente peritoneal, cujo conteúdo é homogéneo e não
apresenta captação de contraste.
A doente foi submetida a laparotomia exploradora onde se identificou a presença
de volumosa lesão quística, intimamente aderente ao cólon descendente.
Procedeu-se à excisão da lesão. O pós-operatório decorreu sem intercorrências
significativas.
O exame histológico confirmou tratar-se de quisto de duplicação intestinal
revestido por epitélio de tipo intestino delgado, com áreas de ulceração.
DISCUSSÃO
A etiologia das duplicações intestinais ainda não está completamente
esclarecida, havendo várias teorias que tentam explicar a sua origem.
A teoria mais aceite é a de Bremer que em 1944 propôs que a duplicação
intestinal resultaria de erros de recanalização do tubo digestivo e da fusão de
pregas longitudinais do estômago. No embrião de 6 semanas, devido à rápida
proliferação das células epiteliais, o lúmen intestinal desapareceria. A
secreção das células formaria vacúolos, que coalesceriam em tubos
longitudinais, paralelos ao eixo maior do intestino, dando lugar ao seu lúmen
normal. A falência desta coalescência estaria na origem das atresias ou da
formação de septos completos ou incompletos, separando o intestino da sua
duplicação. No caso do estômago, que não passa por um estadio sólido, a
duplicação explicar-se-ia pela fusão de pregas ao longo do seu eixo
longitudinal, com a formação de uma ponte de submucosa e músculo,
desenvolvendo-se dois tubos separados que partilham uma parede comum e com
revestimento epitelial próprio.(3,4,13,14,15)
Em 1954 McLetchie, após verificar a associação frequente das duplicações às
anomalias vertebrais, sugeriu que estas produzir-se-iam por adesões da
endoderme à neuroectoderme, originando um divertículo de tração durante a
migração normal do intestino primitivo.(3,13,14,15)
Mellish e Koop sugeriram ainda, em 1964, a origem das duplicações no trauma ou
hipóxia fetais.(2) Nenhuma das teorias propostas explica completamente a origem
das duplicações em todas as localizações.
As duplicações do tubo digestivo dividem-se habitualmente, quanto à sua
localização anatómica, em: intra-abdominais, que correspondem a 75%; torácicas,
que correspondem a 20% e finalmente toraco-abdominais, que correspondem a 5%.
(2,7,12)
As torácicas localizam-se geralmente no mediastino posterior, mais
frequentemente à direita, atingindo a maioria das lesões a metade inferior do
esófago. Associam-se a anomalias vertebrais, hérnia diafragmática e atrésia
esofágica.(7) Os doentes apresentam-se com dispneia ou então com massa torácica
assintomática detectada em exames imagiológicos. Na criança deve fazer-se o
diagnóstico diferencial com os tumores neurogénicos. O exame imagiológico de
eleição para o diagnóstico é a TC, devendo a mielografia ser considerada em
lesões suspeitas de comunicarem com a coluna vertebral.(2)
As gástricas e duodenais são na sua maioria quísticas e sem comunicação com o
lúmen, excepto quando complicam de ulceração péptica. Podem ou não dar sintomas
obstrutivos. Por vezes há comunicação com os canais pancreáticos, podendo
ocasionar pancreatites de repetição. O diagnóstico é estabelecido pela
ecografia e pelo trânsito gastroduodenal.(2,3,13,14) Em 35% dos casos, as
duplicações gástricas associam-se a outras malformações congénitas, sendo que
destas, 21% são anomalias vertebrais.(11)
As jejunais e ileais são as mais frequentes. Geralmente são do tipo quístico,
localizadas no bordo antimesentérico. A maioria dos casos apresenta-se com
oclusão intestinal, invaginação ou hemorragia digestiva, visto ser frequente a
presença de mucosa gástrica ectópica. O diagnóstico é feito por ecografia e
pelo trânsito de intestino delgado.(2,7)
As cólicas e rectais podem ser de tipo quístico ou tubular. Apresentam-se por
quadros oclusivos, muitas vezes com volvos. Associam-se muitas vezes a
malformações genitourinárias. O diagnóstico é feito por clister opaco.
As do canal anal localizam-se posteriormente ao canal anal, com um orifício
perineal independente, posterior ao ânus. Associam-se frequentemente a tumores
pré-sagrados, nomeadamente teratomas e a malformações anorectais. São
geralmente assintomáticas. O diagnóstico é feito pela inspecção do períneo,
podendo a fistulografia ser útil na confirmação.(12)
As toraco-abdominais são por norma as mais graves. Podem ser contínuas ou não.
Associam-se muitas vezes a anomalias vertebrais, pelo que se deve fazer
mielografia. O diagnóstico é estabelecido por ecografia e por TC.(2)
A apresentação clínica depende da sua localização, volume, existência ou não de
comunicação com o lúmen da estrutura-mãe e presença ou não de mucosa gástrica
ou tecido pancreático heterotópicos.(4)
Os doentes podem ser assintomáticos. Quando sintomáticos apresentam-se
geralmente com dor ou desconforto abdominal, náuseas, vómitos, emagrecimento,
hemorragia digestiva, quadro de oclusão intestinal, massa abdominal palpável ou
anemia.(3,14,17)
Raramente, podem apresentar-se com episódios de pancreatite aguda recorrente
por comunicação com os canais pancreáticos, com hiperamilasémia (pela presença
de tecido pancreático ectópico).(10,15,18)
Embora as complicações das duplicações sejam raras estão descritas infecções
crónicas; perfuração com pneumoperitoneu ou hemorragia intra-peritoneal; torsão
de quistos pedunculados; hemorragia intraquística ou para o lúmen intestinal;
ulceração e formação de trajectos fistulosos com drenagem percutânea;
fistulização para as vias biliares, cavidade pleural ou pâncreas (com formação
posterior de pseudoquisto); meningite por comunicação com o canal medular e,
muito raramente o desenvolvimento de tumores malignos.(4,10,12,14,17,19)
As duplicações podem passar despercebidas durante anos porque, para além de
serem situações raras, a apresentação clínica é bastante inespecífica.(4,18)
Para o diagnóstico das duplicações são de grande utilidade os exames
imagiológicos, sendo o diagnóstico definitivo dado pelo exame histológico da
peça operatória.(7,20)
A ecografia abdominal possibilita a detecção da lesão, mas não determina com
precisão a sua localização e relação com estruturas vizinhas. Apresenta-se
geralmente como uma formação quística anecogénica, bem delimitada, uniloculada,
de parede regular.
A TC abdominal permite uma melhor caracterização da lesão, no que diz respeito
à sua extensão e localização. Apresenta-se como uma lesão hipodensa homogénea,
de densidade hídrica, bem delimitada, de parede espessada e regular, adjacente
à estrutura que lhe deu origem. Após administração de contraste endovenoso há
um discreto realce somente da parede.
À RM a lesão apresenta-se hipointensa em T1 e hiperintensa em T2.
O trânsito gastroduodenal nas duplicações gástricas e o clister opaco nas
duplicações cólicas mostram uma imagem de compressão extrínseca regular.
O cintigrama pode ser útil na detecção de mucosa gástrica heterotópica.(9,14)
Nos casos que se apresentam por pancreatites de repetição, a CPRE pode
diagnosticar a comunicação de quistos de duplicação gástrica com o ducto
pancreático.(5,15)
Algumas publicações recentes sobre a utilização da eco-endoscopia no
diagnóstico de lesões quísticas intra-abdominais apontam para que este possa
ser um exame útil particularmente nos casos de duplicação gástrica.(22,23)
As duplicações do tubo digestivo obrigam ao diagnóstico diferencial com lesões
quísticas do pâncreas, com os quistos mesentéricos (de origem linfática), com
os quistos do colédoco, com divertículos gigantes e com outras lesões quísticas
intra-abdominais: renais, suprarrenais ou ováricas.(3,8,10)
O tratamento destas lesões é cirúrgico.(3,4,8) Apesar de estarem descritos, em
raríssimos casos, a presença de carcinoma em duplicações do adulto (situação
mais frequente nas duplicações do cólon), as duplicações na infância são lesões
benignas, pelo que a cirurgia não deve ser mais radical do que o necessário
para eliminar as queixas e prevenir a ocorrência de complicações.(2,6)
O tratamento de escolha será a ressecção apenas da lesão. No entanto, em muitos
casos, a duplicação e a estrutra-mãe adjacente partilham a camada muscular e a
vascularização o que impossibilita a excisão da lesão sem recorrer a ressecção
segmentar, ou mesmo excisão da estrutura-mãe.(3,8)
Em quistos de grande dimensão ou localizados junto à transição gastro-
esofágica, pode optar-se pela excisão parcial da lesão e stripping da mucosa
restante, por forma a prevenir a ulceração ou malignização.(10,21)
Em duplicações muito volumosas que ocupam todo o comprimento da estrutura-mãe,
pode optar-se pela drenagem interna, através da exérese da parede comum entre a
duplicação e a estrutura que lhe deu origem, como alternativa à ressecção total
da lesão, quando esta não é possível..(3,8,11) Esta solução é particularmente
válida nas duplicações cólicas em que a presença de mucosa gástrica ectópica é
uma raridade.(2,7)
O prognóstico destas lesões quando tratadas atempadamente é, regra geral,
favorável.
CONCLUSÕES
As duplicações intestinais são malformações congénitas raras.(11,20)
A apresentação clínica é variável, podendo ser evidente na infância ou manter-
se assintomática durante muitos anos.(3) O diagnóstico na idade adulta é
bastante raro. As queixas de dor abdominal recorrente são consideradas
geralmente como psicossomáticas e o absentismo laboral é muitas vezes um
problema acrescentado a estes doentes, sendo por isso uma entidade a ser
considerada no diagnóstico diferencial em doentes com clínica inespecífica.
(4,5,10)
O diagnóstico pode ser suspeitado pela imagiologia, sendo confirmado pela
laparotomia e exame histológico da peça operatória. A ecografia, a TC e os
exames contrastados são os métodos imagiológicos mais utilizados no
diagnóstico.(4)
O tratamento é cirúrgico, sendo o ideal a remoção total da lesão com
restauração imediata da continuidade do tubo digestivo.(3)