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EuPTCVHe1646-69182014000400006

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variedadeEu
ano2014
fonteScielo

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Evisceração vaginal com isquémia intestinal sem antecedentes de cirurgia pélvica: caso clínico e breve revisão da literatura

INTRODUÇÃO A evisceração vaginal define-se como a extrusão de estruturas intraperitoneais através de um defeito da parede da vagina e foi inicialmente descrito em 1864 por Hyernaux1. É uma situação muito rara, encontrando-se pouco mais de 100 casos publicados na literatura em língua inglesa no último século e a grande maioria associada a cirurgia pélvica prévia2,3. Num artigo de 2009 em que se realizou uma pesquisa em língua inglesa na MEDLINE®, são referidos apenas 12 casos de evisceração vaginal sem antecedentes de cirurgia pélvica2.

A evisceração vaginal é uma emergência cirúrgica com uma taxa de mortalidade estimada em 5,6%, sendo sempre uma experiência aterradora para a doente e inesquecível para o cirurgião1,4.

Este artigo relata um novo caso clínico de evisceração vaginal sem antecedentes de cirurgia pélvica, fazendo-se uma breve revisão bibliográfica sobre o tema.

CASO CLÍNICO Uma doente de 72 anos de idade recorreu ao Serviço de Urgência do Hospital de Portalegre referindo dor abdominopélvica e saída de vísceras pela vagina desde cerca de 12 horas, após redução manual de histerocistocelo. Negou outros factores traumáticos associados ou quaisquer antecedentes cirúrgicos, referindo história obstétrica de 2 partos eutócicos. Tinha antecedentes pessoais de Diabetes mellitustipo 2,hipertensão arterial e dislipidémia.

Na anamnese, a doente referiu queixas sugestivas de histerocistocelo com recurso frequente a redução manual do prolapso após as micções e dejecções, sem nunca ter procurado orientação médica em relação a esta situação. Tratava-se de uma doente com biótipo normolíneo, apresentando-se consciente e orientada, apirética e hemodinamicamente estável. O exame físico revelou prolapso vaginal completo e parcial do útero, com extrusão e estrangulamento de ansas de intestino delgado através de um defeito na cúpula e parede posterior da vagina (fig._1).

Iniciou-se fluidoterapia e antibioterapia de largo espectro, confirmou-se a vacinação antitetânica e envolveram-se as ansas intestinais exteriorizadas em compressas humedecidas. A doente foi submetida a cirurgia urgente com abordagem combinada por via vaginal e laparotomia mediana infraumbilical. Procedeu-se à redução das ansas intestinais para a cavidade abdominal (parecendo estar em causa um enterocelo), identificando-se um defeito na cúpula e parede posterior da vagina com cerca de 4 cm (fig._2A) que se corrigiu com desbridamento dos bordos e sutura contínua em dois planos (fig._2C). Houve necessidade de ressecar cerca de 110 cm de intestino isquémico não viável, incluindo o íleo terminal e cego (fig._2B), com anastomose ileocólica latero-lateral mecânica.

Realizou-se seguidamente a histeropexia (com pontos entre a face posterior do corpo do útero e o promontório) e o encerramento do fundo de saco de Douglas com "cerclage" de fio absorvível.

A doente evoluiu favoravelmente no pós-operatório, tendo alta ao 10º dia. Após mais de 4 anos de seguimento em consulta, a doente mantém-se sem queixas significativas e sem recidiva do prolapso pélvico.

DISCUSSÃO A evisceração vaginal é mais frequente em mulheres pós-menopáusicas, cuja parede vaginal é tipicamente mais fina, hipovascularizada e atrófica, sendo mais susceptível à rotura espontânea ou provocada por aumento da pressão abdominal. A localização mais frequente da rotura da parede vaginal nestas doentes é no fórnix posterior. Kowalski et alreviram 60 casos de evisceração vaginal após cirurgia ginecológica por via vaginal e abdominal e descrevem a existência de uma tríade frequente de hipoestrogenismo, cirurgia vaginal prévia (73% dos casos) e distúrbios do pavimento pélvico3. Os mesmos autores descrevem a existência de enterocelo associado em 63% dos casos, situação que origina maior tensão sobre a parede atrófica da vagina e aumenta o risco de rotura.

Estes factores, sendo de natureza crónica, predispõem para o acontecimento agudo da evisceração. No caso clínico apresentado, a atrofia vaginal, o distúrbio evidente do pavimento pélvico e o traumatismo frequente pelas reduções manuais do histerocistocelo, estiveram certamente na origem da evisceração.

Nas mulheres pré-menopáusicas, a evisceração vaginal é geralmente de origem traumática, nomeadamente durante o coito, instrumentação obstétrica ou por corpos estranhos. Para além dos factores de risco referidos, outros têm sido associados à evisceração vaginal como as neoplasias da vagina, a obesidade, o alcoolismo crónico e o uso prolongado de esteróides1,2. Em relação à rotura da cúpula vaginal após histerectomia vaginal ou abdominal, vários factores de risco têm sido apontados como a infecção ou hematoma no pós-operatório, corticoterapia, radioterapia, trauma, coito antes da cicatrização completa ou técnica cirúrgica, reforçando-se a importância da sutura e suspensão adequadas da cúpula vaginal.

O intestino delgado, nomeadamente o íleo terminal, é o órgão mais frequentemente eviscerado, seguido do grande epíplon, sendo de extrema importância a abordagem cirúrgica precoce para preservação do intestino viável.

A abordagem das doentes deve incluir a estabilização hemodinâmica, preservação do intestino eviscerado com compressas humedecidas em soro fisiológico morno, administração de antibióticos de largo espectro com cobertura da flora gastrointestinal, administração da vacina anti-tetânica quando indicado e a reparação cirúrgica imediata1.

A abordagem cirúrgica dos casos de evisceração vaginal pode ser realizada por via vaginal, abdominal pura (laparotómica ou laparoscópica) ou combinação de ambas, dependendo da situação em causa. Quando evisceração de intestino delgado, recomenda-se a realização de laparotomia (ou laparoscopia, consoante a disponibilidade de recursos e experiência do cirurgião) para inspecção de todo o intestino, com ressecção de eventuais segmentos inviáveis e reparação do defeito vaginal e do pavimento pélvico. A abordagem complementar por via vaginal facilita a redução da evisceração com leve tracção e manipulação bimanuais e a reparação do defeito, como ilustra o caso clínico apresentado.

Nestes casos, não se deve tentar a redução manual ou postural por via vaginal exclusiva, havendo o sério risco de segmentos necrosados de intestino não serem detectados e tratados atempadamente com aumento significativo das taxas de morbilidade e mortalidade5.

Em relação às técnicas de reparação do pavimento pélvico nestas situações alguns aspectos controversos, havendo autores que defendem uma reparação tardia após cicatrização dos tecidos1. A aplicação de próteses está, a nosso ver, contraindicada quando necrose intestinal com necessidade de ressecção e anastomose. Para além do encerramento do orifício vaginal, várias técnicas têm sido aplicadas e descritas na literatura, como sejam a colpoclese, a colpectomia, a sacropexia, a obliteração do fundo de saco de Douglas, a aplicação de retalhos de grande epíplon ou ainda a utilização de material biológico para reforço do pavimento pélvico. Em alguns casos, poderá ser considerada a realização da histerectomia. No caso clínico por nós apresentado, a histeropexia sem utilização de prótese, associada ao encerramento do fundo de saco de Douglas, revelou-se uma técnica simples, rápida e eficaz na prevenção da recidiva do prolapso pélvico.

A evisceração vaginal de intestino delgado é uma situação muito rara mas potencialmente letal, exigindo uma correcção cirúrgica imediata e preferencialmente combinando as abordagens vaginal e abdominal. Esta situação deve ser considerada e prevenida, sobretudo em doentes pós-menopáusicas com história de cirurgia pélvica e/ou prolapso pélvico crónico.


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