Acidente vascular cerebral de etiologia rara com indicação cirúrgica urgente:
caso clínico
Acidente vascular cerebral de etiologia rara com indicação cirúrgica urgente '
caso clínico
*
Ana Vieira Baptista*, Manuel Fonseca*, João Sargento Freitas**, Luís Antunes*,
Joana Moreira*, Gabriel Anacleto*, João Alegrio*, Óscar Gonçalves*, Albuquerque
Matos*
* Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular do Centro Hospitalar e
Universitário de Coimbra
** Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
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|RESUMO|
Doente de 19 anos com quadro de febre com 8 dias de evolução e posterior
instalação súbita de afasia, hemiparésia esquerda e alterações do
comportamento. Aumento das proteínas de fase aguda no estudo analítico. TAC e
RMN crânio-encefálicas revelaram lesão isquémica temporo-parietal direita.
Ecocardiograma excluiu endocardite. Eco-döppler e angio-TAC carotídeo-
vertebrais mostraram formação vegetante, móvel com a pulsação cardíaca, na
artéria carótida comum direita. Submetido, de urgência, a cirurgia carotídea.
Intraoperatoriamente constatou-se a presença de trombo ligeiramente aderente à
artéria carótida comum e na dependência de lesão da íntima subjacente, tendo-se
procedido à sua exérese e a arteriorrafia primária. Aponta-se como etiologia
mais provável do quadro, uma vasculite secundária a infecção por HSV1 (infecção
activa) ou por Rickettsia conorii.
Palavras-chave: AVC, cirurgia carotídea urgente, vasculite, HSV1, Rickettsia
conorii
Stroke of a rare etiology with need of urgent surgery ' case report
|ABSTRACT|
19 years old patient with fever for 8 days associated with sudden aphasia, left
hemiparesis and abnormal behavior. Increased acute phase proteins in the
analytical study. Head CT scan and MRI revealed a right temporo-parietal
ischemic lesion. An echocardiogram excluded endocarditis. Ultrasound and CT
angiography scanning of the extracranial cerebral circulation showed a
vegetative formation, mobile with the heartbeat, in the right common carotid
artery. Submitted, urgently, to carotid surgery.
Intraoperatively, a slightly adherent thrombus to the common carotid artery was
found and in the dependence of an underlying injury to the intima. The thrombus
was ressected and a primary arteriorrhaphy performed. It is pointed out a
vasculitis secondary to HSV1 (active infection) or to Rickettsia conorii
infection as the most likely etiology of the clinic.
Key words: Stroke, urgent carotid surgery, vasculitis, HSV1, Rickettsia conorii
INTRODUÇÃO
O acidente vascular cerebral (AVC) constitui a segunda causa de morte a nível
mundial e é a principal causa de incapacidade entre indivíduos em idade adulta
na Europa e nos Estados Unidos.[1]
Aproximadamente 75% dos AVCs ocorrem em indivíduos com idade superior a 65
anos. A sua incidência é maior nos homens até aos 85 anos, sendo que a partir
dessa idade passa a ser mais frequente nas mulheres. Nos homens, a média de
idades aquando de um primeiro evento é de 68,6 anos e nas mulheres é de 72,9
anos.[2]
A grande maioria é de causa isquémica (quase 90% dos casos), devendo-se a
trombose ou a embolia. Os restantes 10% de AVCs são de causa hemorrágica.
Dentro dos isquémicos (tanto por trombose, como por embolia), 20 a 30%
relacionam-se com aterosclerose. Outras etiologias possíveis de AVCs isquémicos
são os processos inflamatórios da parede arterial (arterite induzida por
radiações, doenças do tecido conjuntivo, arterite de células gigantes, doença
de Takayasu, doença de Moyamoya), infecções (sífilis, doença de Chagas, VIH),
displasia fibromuscular, coagulopatias, hiperviscosidade sanguínea
(policitémia, trombocitose, hemoglobinopatias), dissecções (traumáticas ou
espontâneas), aneurismas, embolias com origem no coração (arritmias, febre
reumática, endocardite, pós-enfarte agudo do miocárdio, válvulas cardíacas
mecânicas, embolias paradoxais devido a foramen ovale patente, mixoma
auricular, miocardiopatias). Este último grupo (embolias com origem no coração)
contribui para cerca de 30% da totalidade dos AVCs isquémicos, atingindo os 50%
nos doentes com idade inferior a 40 anos. Em cerca de 40% dos casos de AVC não
se consegue determinar a sua etiologia.[3,4,5]
Perante a ocorrência de um AVC, é mandatória a realização de estudos
complementares com vista à determinação da sua etiologia.
No presente artigo é descrito o caso de um doente jovem a quem foi
diagnosticado um AVC isquémico, com necessidade de cirurgia carotídea urgente
e, cujo estudo complementar veio a revelar uma provável etiologia rara.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, 19 anos, que recorreu ao Serviço de Urgência de um
Hospital Distrital por febre com cerca de 8 dias de evolução associada a
posterior instalação súbita de afasia, hemiparésia esquerda e alterações do
comportamento.
Dos antecedentes pessoais há a destacar apenas asma na infância e história de
tabagismo. Sem história de consumo de drogas injectáveis. Funcionário na
recolha de resíduos urbanos. Antecedentes familiares irrelevantes.
À entrada no Serviço de Urgência do Hospital Distrital apresentava-se vigil,
mas pouco reactivo a estímulos; apirético; normotenso; auscultação cárdio-
pulmonar sem alterações; sem evidência de exantema. Do exame neurológico
salientou-se hemiparésia esquerda. O estudo analítico revelou discreta
leucocitose e a punção lombar não revelou alterações.
Medicado com aciclovir e ceftriaxone em doses meníngeas e transferido para o
Serviço de Urgência do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
referenciado para Neurologia e/ou Infecciologia.
À entrada nesse Serviço de Urgência a sintomatologia e o exame objectivo
mantinham-se sobreponíveis.
Repetiu o estudo analítico que mostrou leucocitose ligeira (12900 leucócitos/
μL) e aumento da proteína C reactiva (15,18 mg/dL). Realizou TAC crânio-
encefálica que revelou lesão não contrastante temporo-parietal direita. O
electrocardiograma foi normal e o ecocardiograma excluiu a presença de
endocardite ou de patência do foramen ovale. O electroencefalograma revelou
actividade lenta a nível temporal direito, sugerindo lesão estrutural nesta
localização. A RMN crânio-encefálica de difusão/perfusão confirmou a existência
de lesão vascular temporo-parietal direita. As serologias para VIH 1 e 2 foram
negativas.
O doente foi internado na Unidade de AVCs medicado com ácido acetilsalicílico
300 mg id, enoxaparina 60 mg id, dexametasona, ceftriaxone, ampicilina e
aciclovir.
Foi realizado eco-döppler carotídeo-vertebral que mostrou a presença de uma
placa hiperecogénica e homogénea na carótida comum direita que se estendia para
a carótida interna, com 2 cm de extensão e 2,5 mm de espessura e que, na sua
porção mais cefálica, apresentava uma formação vegetante móvel com o fluxo
cardíaco | FIGURA 1 |.
| FIGURA 1 | Placa hiperecogénica na carótida comum direita, que se estende
para a carótida interna e que, na sua porção mais cefálica, apresenta uma
formação vegetante móvel com o fluxo cardíaco.
Posteriormente realizou-se angio-TAC cervical que confirmou a presença de uma
formação ao nível do segmento distal da carótida comum direita com extensão,
sob a forma pediculada, até ao segmento proximal da carótida interna,
compatível com formação vegetante eventualmente na dependência de lesão da
íntima subjacente | FIGURA 2 |.
| FIGURA 2 | Formação vegetante a nível do segmento distal da carótida comum
direita com extensão, sob a forma pediculada, até ao segmento proximal da
carótida interna.
Face a estes resultados, o Serviço de Neurologia contactou a equipa de Cirurgia
Vascular de urgência que considerou existir elevado risco embolígeno e propôs
intervenção cirúrgica urgente. Intraoperatoriamente foi constatada a existência
de um trombo ligeiramente aderente à artéria carótida comum direita e na
dependência de lesão da íntima subjacente, tendo-se procedido à sua exérese e a
arteriorrafia primária. A intervenção foi feita sob anestesia geral e o tempo
de clampagem foi de 10 minutos.
O estudo anátomo-patológico confirmou tratar-se de um trombo endoarterial, mas
com grande quantidade de neutrófilos na sua espessura | FIGURA 3 |.
|FIGURA 3 | Grande quantidade de neutrófilos na espessura do trombo.
O pós-operatório decorreu sem intercorrências, tendo o doente estado sempre
apirético, sem leucocitose, com PCR a diminuir progressivamente e com
recuperação gradual dos défices neurológicos. O eco- döpplercarotídeo-vertebral
de controlo não mostrou alterações de relevo.
Procedeu-se a um detalhado estudo complementar para esclarecimento da etiologia
do quadro:
> Hemoculturas: negativas
> Sumária de urinas tipo II: sem alterações
> Hemostase
• avaliação global: sem alterações
• inibidores tipo lúpus: negativo
> Biologia molecular
• risco trombótico: heterozigotia
' factor V de Leiden
· protrombina GA 20210
· fibrinogénio β G/A ' 455
· PAI 4G/5G
· glicoproteínas GP3A
· MTHFR C677T
> Imunologia
• imunoglobulinas: aumento da Ig E
• estudo do complemento: sem alterações
• proteinograma electroforético: sem alterações
> Autoimunidade
• factor reumatóide: negativo
• anticorpos anti-nucleares e citoplasmáticos: negativo
• anticorpos anti-ANCA: negativo
• anticorpos anti-cardiolipinas: negativo
• anticorpos anti-β2-GPI: negativo
> Serologias
• toxoplasma: IgG +; Ig M ' (imune)
• rubéola: IgG +; Ig M ' (imune)
• CMV: IgG +; IgM '
• HSV 1: IgG +; IgM+ (infecção activa)
• HSV 2: IgG '; IgM '
• EBV: IgG +; Ig
• Treponema pallidum (RPR): negativo
• Brucella: negativo
• Salmonella: negativo
• Clamydia: IgG '; IgM '
• Rickettsia conorii: positivo
• Coxiella burnetii: negativo
• Borrelia burgdorferi: IgG '; IgM '
• Listeria monocytogenes: negativo
• Mycoplasma pneumonia: IgG +; IgM '
O doente teve alta ao 10º dia de internamento medicado com ácido
acetilsalicílico 100 mg id, sinvastatina e alprazolam.
Sem história de ocorrência de novos eventos neurológicos. Actualmente apresenta
apenas sinais piramidais sequelares no hemicorpo esquerdo, já sem défice motor
objectivável. Mantém anti-agregação plaquetar com ácido acetilsalicílico 100 mg
id. Eco-döpplers carotídeo-vertebrais de controlo aos 3 e 12 meses sem
alterações de relevo.
DISCUSSÃO
Embora o AVC constitua a segunda causa de morte a nível mundial, a sua
ocorrência é rara em indivíduos jovens. A realização de um aprofundado estudo
etiológico é mandatória, principalmente nas faixas etárias mais jovens.
No caso clínico exposto, apontou-se inicialmente para um quadro infeccioso do
Sistema Nervoso Central (alterações neurológicas associadas a febre com oito
dias de evolução, leucocitose ligeira e aumento da PCR). Após uma punção lombar
normal, realizou-se uma TAC crânio-encefálica que revelou uma lesão não
contrastante temporo-parietal direita, posteriormente confirmada por RMN de
difusão/perfusão. Estava-se então perante um AVC isquémico num doente de 19
anos e em que as etiologias mais prováveis nesta faixa etária, nomeadamente a
embolização de origem cardíaca, já haviam sido excluídas. Também a infecção por
VIH havia sido excluída ab initium.
Na Unidade de AVCs foi realizado um eco-döppler carotídeo-vertebral e uma
angio-TAC cervical que mostraram a já referida formação vegetante a nível da
artéria carótida comum direita. Dado verificar-se um risco embolígeno
importante, o doente foi operado de urgência. O trombo, que se confirmou estar
ligeiramente aderente a uma lesão da íntima subjacente, foi removido e enviado
para estudo anátomo-patológico que revelou grande quantidade de neutrófilos na
sua espessura apontando-se, novamente, para uma possível etiologia infecciosa.
De todo o restante estudo complementar realizado, destaca-se a heterozigotia
para diversos polimorfismos genéticos que conferem risco trombótico acrescido,
assim como a infecção activa por HSV1 e a positividade do título de anticorpos
para Rickettsia conorii.
Relativamente à heterozigotia encontrada para os polimorfismos genéticos, é
reconhecido que alguns deles favorecem a ocorrência de fenómenos de trombose a
nível venoso. A nível arterial reconhece-se a existência de um risco acrescido
de trombose na presença de anticorpos anti-fosfolipídicos. A relação com os
outros factores é, contudo, controversa.[6]
Na literatura mais recente encontram-se associações entre agentes infecciosos
e, em particular, com os quais o doente já contactou nomeadamente CMV, HSV1,
EBV e Rickettsia conori e vasculites. No caso da infecção por CMV, esta pode
associar-se a vasculites da retina em doentes imunocomprometidos.[7] Os HSV (1
e 2), para além da associação com vasculites da retina, também têm sido
associados a vasculites cutâneas e a arterites necrotizantes dos vasos de
pequeno e médio calibre.[8,9] O EBV também tem sido sugerido como a causa de
algumas doenças dos vasos de pequeno e grande calibre, destacando-se os
aneurismas das artérias coronárias.[10,11]
A Rickettsia conorii, agente causal da febre escaro-nodular, é um parasita
intracelular com tropismo para as células endoteliais. É responsável por lesões
nestas células e aumenta a expressão de moléculas que promovem a adesão de
leucócitos. [12] Afecta tendencialmente vasos de menor calibre podendo levar à
sua trombose. Na literatura encontram-se descritos casos de envolvimento
cutâneo que levam à ocorrência de exantema (manifestação muito frequente da
febre escaro-nodular) e, com bastante menor frequência, de envolvimento dos
pulmões (pneumonite intersticial), coração (miopericardite), sistema nervoso
central (meningoencefalite), fígado, pulmões, esófago, estômago, pâncreas, baço
e tiróide.[13][14,15] Na literatura não foram encontrados casos em que se
verificasse envolvimento do território carotídeo.
CONCLUSÕES
No caso clínico apresentado optou-se por uma abordagem cirúrgica urgente dado o
elevado risco embolígeno.
Face à ocorrência de um AVC, é mandatório a realização de estudos
complementares com vista à determinação da sua etiologia. Nas faixas etárias
mais jovens, em que a ocorrência desses eventos é rara, frequentemente esse
estudo etiológico é inconclusivo.
No caso previamente exposto existem vários dados que apontam para uma etiologia
infecciosa (febre, leucocitose, aumento da PCR, presença de grande quantidade
de neutrófilos na espessura do trombo removido), pelo que se considera como
possível etiologia uma infecção por um microorganismo eventualmente causador de
vasculites, como sendo o HSV1 ou a Rickettsia conorii.