Angiogénese e Arteriogénese na Doença Arterial Periférica
Angiogénese e Arteriogénese na Doença Arterial Periférica
Daniel Brandão*, **; Carla Costa**, ***, ****; Armando Mansilha*****
* Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular, Centro Hospitalar de Vila Nova de
Gaia/Espinho.
** Departamento de Bioquímica da Faculdade de Medicina da Universidade do
Porto.
*** Instituto de Biologia Celular e Molecular da Universidade do Porto (IBMC).
**** Association for the Advanced Study of Human Sexuality (iSEX), Lisboa,
Portugal.
***** Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular, Hospital de São João (Porto) e
Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.
Contactos
|RESUMO|
Em adaptação à obstrução da árvore arterial e consequente isquemia, os
organismos induzem os processos arteriogénico e angiogénico no sentido de
melhorar o aporte sanguíneo aos tecidos. Contudo, 25% dos doentes com doença
arterial periférica (DAP) vão sofrer agravamento da sua condição isquémica aos
cinco anos, sugerindo insuficiência dos processos adaptativos. Estes mecanismos
são extremamente complexos e resultam da interacção adequadamente coordenada de
múltiplas moléculas com células específicas. O estudo da variabilidade
interindividual nas moléculas envolvidas nos mecanismos vasculares de adaptação
à isquemia poderá provavelmente possibilitar a identificação de biomarcadores
com capacidade prognóstica não só em relação à evolução da doença, mas também à
resposta às terapêuticas instituídas.
Palavras-chave: doença arterial periférica, arteriogénese, angiogénese
Angiogenesis and Arteriogenesis in Peripheral Arterial Disease
|ABSTRACT|
In adaptation to arterial obstruction and consequent ischemia, organisms induce
the arteriogenic and angiogenic mechanisms in order to improve blood supply to
tissues. However, 25% of the patients with peripheral arterial disease will
have a deterioration of their condition, suggesting failure of the adaptative
processes. These mechanisms are extremely complex, resulting from the
interaction of multiple molecules suitably coordinated with specific cells. The
study of interindividual variability in the molecules involved in the vascular
adaptive mechanisms to ischemia could probably enable the identification of
prognostic biomarkers not only for the disease evolution, but also for the
response to therapeutic approaches.
Key words: Peripheral arterial disease, arteriogenesis, angiogenesis,
biomarkers
I. DOENÇA ARTERIAL PERIFÉRICA
À semelhança das doenças coronária e cerebrovascular, a doença arterial
periférica (DAP) é consequência da aterosclerose. Deste modo, a obstrução da
árvore arterial dos membros inferiores resulta numa diminuição do aporte
sanguíneo necessário aos tecidos durante o exercício ou mesmo em repouso. A
gravidade dos sintomas encontra-se dependente da extensão do processo
obstrutivo, mas também da circulação colateral existente.
Juntamente com as restantes patologias consequentes da aterosclerose, a DAP tem
demonstrado um padrão epidémico alarmante nas populações ocidentais. É de facto
uma condição grandemente prevalente (3 a 10% na população em geral e 15 a 20%
nos indivíduos com idade superior a 70 anos)[1]. Partilha com as restantes
doenças ateroscleróticas os mesmos factores de risco vascular, assumindo-se a
diabetes mellitus, o tabaco e a idade como os factores com maior relevância[1].
A evolução natural da DAP encontra-se actualmente claramente definida. Deste
modo, após cinco anos de seguimento, 25% dos doentes com claudicação
intermitente vão ter agravamento da sua condição isquémica com 5 a 10% a
evoluírem para isquemia crítica (1). Neste contexto, a maioria dos casos com
evolução desfavorável ocorre no primeiro ano após o diagnóstico[2]. Por outro
lado, a mortalidade aos cinco anos é nestes doentes de 10 a 15% (75% casos de
origem cardiovascular), sendo que 20% adicionais irão desenvolver um evento
cardiovascular não-fatal[2]. Neste âmbito, a DAP tem sido consistentemente
associada a um aumento significativo do risco de eventos e de morte
cardiovasculares, estando este aumento estimado em seis vezes aos dez anos
[3,4]. O prognóstico dos doentes em isquemia crítica é francamente mais
sombrio: um ano após o diagnóstico e apesar das medidas terapêuticas
instituídas, 30% terá sido submetido a uma amputação major, 25% terá falecido e
apenas 25% se encontrará sem isquemia crítica.
Tem havido uma evidência crescente de que o exercício realizado sob supervisão
poderá permitir a melhoria sintomática destes doentes, quando comparado com o
aconselhamento usual de caminhar com regularidade efectuado em regime de
consulta[5]. Este benefício parece decorrer de diversas adaptações à condição
isquémica estimuladas pelo exercício, nomeadamente ao nível da microcirculação
e da macrocirculação[6]. No entanto, existe uma importante heterogeneidade
entre os diversos estudos efectuados no que respeita ao tipo de exercício a
realizar, mas também à duração e frequência do mesmo[7,8]. Neste contexto,
Nicolai e colaboradores recentemente apontaram para uma possível maior eficácia
de um esquema de exercício superior a 30 minutos por sessão, duas vezes por
semana[9].
II. NEOVASCULARIZAÇÃO
O organismo possui diversos mecanismos de adaptação que permitem melhorar o
aporte sanguíneo aos tecidos em situações de isquemia. Os mecanismos accionados
nessas circunstâncias são classicamente divididos em três: angiogénese,
vasculogénese e arteriogénese | figuras 1 e 2 |[10]. Na realidade, estes
processos possuem uma significativa interacção, partilhando numerosos
acontecimentos celulares e moleculares.
| FIGURA 1 |Vasculogénese e angiogénese. CE, Células Endoteliais; Ang-1,
Angiopoietina-1; Ang-2, Angiopoietina-2 (adaptado de Brandão D et al)[10]
| FIGURA 2 |Arteriogénese. RTC, Receptor Tirosina-Cinase (adaptado de Brandão D
et al)[10]
A. Vasculogénese
A vasculogénese consiste na formação de novos vasos a partir de células
precursoras das células endoteliais (EPCs) derivadas da medula óssea ou
angioblastos. Embora inicialmente se pensasse que a vasculogénese ocorreria
apenas durante o período embrionário, sabe-se hoje que as EPCs colonizam os
locais angiogénicos, integrando-se funcionalmente nos vasos em formação[11].
B. Angiogénese
A angiogénese consiste na formação de novos vasos a partir de vasos pré-
existentes. Após um estímulo inicial, as células endoteliais separam-se das
células vizinhas bem como das células de suporte perivascular, começando a
proliferar e a migrar. Organizam-se posteriormente em cordões que
subsequentemente adquirem lúmen, dando assim origem a novos vasos.
1. VEGF
No processo angiogénico intervêm inúmeros factores, de entre os quais importa
salientar o VEGF e respectivos receptores. A célula endotelial constitui o alvo
primário da acção do VEGF. Está claramente demonstrado, in vitro e in vivo, que
o VEGF induz a proliferação e migração das células endoteliais e inibe a
apoptose das mesmas[12].
A acção do VEGF decorre da sua ligação a dois receptores tirosina-cinase: o
VEGFR-1, também designado por Flt-1 (fms-like tyrosine kinase receptor 1) e o
VEGFR-2, igualmente descrito como Flk-1 (fetal liver kinase 1) no ratinho, ou
KDR (Kinase insert Domain Receptor) no ser humano[13]. O VEGFR-2 constitui o
mediador mais importante dos efeitos mitogénicos e angiogénicos do VEGF[12]. Em
oposição ao VEGFR-2, o papel do VEGFR-1 na angiogénese não se encontra tão
claramente definido. De facto, foram já descritas acções contraditórias, o que
poderá resultar de uma sinalização intracelular diversa consoante a fase de
desenvolvimento ou o tipo celular em questão. Deste modo, embora o VEGFR-
1 assuma um papel positivo importante na vasculogénese e angiogénese esse
receptor tirosina-cinase surge como um potencial regulador negativo da acção do
VEGF a nível das células endoteliais no adulto[14].
2. Exercício e angiogénese
O provimento de nutrientes às fibras musculares está dependente da difusão a
partir dos capilares circundantes. Está demonstrado que a um maior número de
capilares existentes à periferia das fibras musculares se associa uma maior
capacidade de difusão[15]. Embora exista alguma discordância entre os estudos
publicados em torno dos processos de adaptação nos músculos dos indivíduos com
claudicação intermitente, poderá haver um aumento da densidade capilar a nível
muscular nessa circunstância[16-19]. Por outro lado, constatou-se que o
exercício leva a um incremento da densidade capilar e da capacidade de difusão
a nível muscular, em consequência da activação do processo angiogénico, mesmo
em circunstâncias em que se verifica obstrução do fluxo sanguíneo a montante
[17, 20, 21]. Este mecanismo adaptativo poderá em parte explicar o benefício
verificado nos indivíduos claudicantes submetidos a exercício sob supervisão.
C. Arteriogénese
Em situações de estenose ou oclusão de uma artéria, os vasos colaterais pré-
existentes aumentam de diâmetro de modo a tornarem-se efectivos no fornecimento
de sangue a jusante. Este fenómeno é conhecido como arteriogénese. Quando uma
estenose arterial se torna hemodinamicamente significativa, a corrente
sanguínea é dirigida para os leitos arteriolares vizinhos pré-existentes. Em
consequência ocorre um aumento significativo do shear stress a nível das
paredes desses vasos levando à activação das células endoteliais. Essa
activação é mediada à superfície celular por numerosas vias, salientando-se
diversos receptores tirosina-cinase (nomeadamente o VEGFR-1), moléculas de
adesão celular (PECAM-1, integrinas), canais iónicos, proteínas G, caveolae,
dupla camada lipídica da membrana celular ou ainda proteoglicanos[22]. As
células endoteliais activadas vão promover a transcrição de múltiplos genes. Em
resultado decorre a síntese de numerosas citocinas (embora o MCP-1 assuma maior
relevo, são igualmente importantes moléculas como o GM-CSF ' granulocyte-
macrophage colony-stimulating factor, G-CSF ' granulocyte-macrophage colony-
stimulating factor ' ou ainda o TNF-α), moléculas de adesão intercellular
(ICAM-1 ' intercellular adhesion molecule-1, ICAM-2 e VCAM-1 ' vascular
adhesion molecule-1) e ainda da eNOS [23-25]. Atraídos pelo aumento
circunscrito da concentração de MCP-1 e auxiliados pelas moléculas de adesão
celular, os monócitos circulantes vão localmente aderir ao endotélio e invadir
a parede vascular, transformando-se em macrófagos [23]. Os macrófagos, cuja
função é favorecida pelo GM-CSF circundante, vão sintetizar, entre outros,
proteases como as MMPs (matrix metalloproteinases) e o uPA (urinary plasminogen
activator) e numerosos factores de crescimento vascular, com relevo para o FGF-
2 (fibroblastic growth factor-2) [26]. Por um lado, a destruturação promovida
pelas proteases da matriz, das lâminas elásticas interna e externa e da
adventícia, permite originar espaço para a multiplicação e migração das células
que compõem a parede arterial; por outro lado, os fragmentos resultantes da
degradação dos componentes da matriz, como por exemplo da elastina, vão, em
conjunto com o FGF-2, induzir a activação das células musculares lisas (CML)
[23,26,27]. As CML activadas vão proliferar e sofrer uma desdiferenciação de um
fenótipo contráctil para um fenótipo de síntese[28]. Entretanto, as células
endoteliais inicialmente activadas pelas alterações hemodinâmicas e
posteriormente estimuladas pelos factores de crescimento libertados pelos
macrófagos em resultado da disrupção da barreira constituída pela lâmina
elástica interna, vão igualmente proliferar[29]. Posteriormente assiste-se à
maturação da parede arterial com a disposição ordenada das CML em camadas
circulares, com o estabelecimento de ligações intercelulares e ainda com a
síntese de colagénio e de elastina, possibilitando assim a estrutura necessária
para um vaso de calibre superior[28].
1. VEGF e receptores na arteriogénese
O papel preponderante do VEGF verificado na angiogénese não é tão evidente na
arteriogénese. De facto, a expressão do VEGF é no essencial mediada pelo factor
de transcrição HIF-1α (hypoxia-inducible factor-1α), que apenas é expresso em
situações de hipóxia, condição que não se verifica nos locais onde decorre o
processo arteriogénico. Contudo, a expressão do VEGF e do VEGFR-2 pelas células
endoteliais encontra-se aumentada ao longo do processo arteriogénico[30]. Por
outro lado, a arteriogénese induzida pelo exercício é inibida por um
antagonista do VEGF[31]. Foi ainda demonstrado em modelo animal que CML
transduzidas com VEGF associadas a células endoteliais transduzidas com
Angiopoietina-1 (factor de grande relevância na maturação e estabilização dos
vasos recém-formados por promover a interacção entre o endotélio e as células
de suporte perivascular) reproduzem o fenómeno arteriogénico[32].
O mecanismo sugerido através do qual o VEGF parece ser capaz de induzir a
arteriogénese poderá ser o seguinte: o aumento de expressão de eNOS despoletada
pelo incremento do shear stress promove a libertação de VEGF; na sequência, o
VEGF induz as CML a sintetizarem MCP-1, levando à atracção dos monócitos, dando
assim início ao processo arteriogénico[28]. Adicionalmente, foi demonstrado que
o VEGF é capaz de promover directamente a atracção e migração dos monócitos,
sendo esta acção de atracção do VEGF mediada pelo VEGFR-1[33-35]. Por outro
lado, verificou-se que o PlGF (placental growth factor), membro da família VEGF
e ligando do VEGFR-1, promove a arteriogénese em modelos de isquemia miocárdica
e dos membros inferiores[36].
O VEGFR-1 poderá ainda ter um papel adicional em todo o processo arteriogénico.
Assim, o VEGFR-1 pode, por splicing alternativo, ser expresso sob uma forma
solúvel que, ao ligar-se ao VEGF, impossibilita este de exercer a sua acção
junto das células-alvo, podendo limitar desta forma os processos angiogénico e
arteriogénico[37].
2. Exercício e arteriogénese
Mesmo na ausência de suplementação com factores pró-angiogénicos e pró-
arteriogénicos, a participação num programa de exercício regular associa-se a
um aumento do fluxo sanguíneo dependente da colateralização [38]. Nesse âmbito,
foi recentemente demonstrado em modelo animal que, após a laqueação da artéria
femoral, o fluxo sanguíneo pelas colaterais para os músculos da perna é
inicialmente de 2 a 3 vezes o fluxo necessário para manter a massa muscular
viável em repouso, progredindo com o tempo para 5 a 6 vezes nos ratos
sedentários e para 10 vezes nos ratos sob exercício[39]. Esta adaptação
progressiva, mais expressiva nos animais sob treino, resulta em grande medida
do aumento do diâmetro das colaterais pré-existentes, isto é, do estímulo
arteriogénico resultante do incremento do shear stress [6]. Dos agentes
intervenientes nesse processo de adaptação, a eNOS tem sido apontada como uma
molécula crítica. O aumento da expressão da eNOS é típico dos vasos
responsáveis pelo fornecimento de sangue aos grupos musculares que suportam um
determinado exercício, em resultado do seu importante papel no controlo
vascular local[6]. Contudo, na circunstância do remodeling vascular associado à
arteriogénese o seu papel é ainda de maior relevância na medida em que a
expressão de eNOS é crucial para o aumento do diâmetro arterial[40,41]. De
facto, a inibição da produção de NO suprime o aumento de fluxo ao nível das
colaterais induzido peloexercício[42].
3. Arteriogénese e doença coronária
Nesse âmbito, importa relevar que foram recentemente publicados dois estudos
que relacionam uma menor capacidade de colateralização a nível coronário com um
maior risco de eventos cardíacos agudos[43,44].
II. CONCLUSÕES
Embora, como mencionado anteriormente, a evolução dos doentes com DAP se
encontre claramente definida, os factores preditivos do agravamento clínico dos
doentes são ainda escassos e pouco precisos (1, 45). Neste contexto, o estudo
da variabilidade interindividual das diferentes moléculas envolvidas nos
mecanismos vasculares de adaptação à isquemia poderá possibilitar a
identificação de biomarcadores com capacidade prognóstica, quer em relação à
evolução da doença, quer à resposta às terapêuticas instituídas, nomeadamente
ao exercício sob supervisão.