Leiomiomatose intravenosa: do útero ao coração
Introdução
A leiomiomatose intravenosa (LIV) foi descrita pela primeira vez em 1896 por
Birch-Hirschfeld1,2. Em 1975, foi definida por Norris e Parmley3 como uma
neoplasia uterina benigna rara, caracterizada pelo crescimento intravenoso de
nódulos de músculo liso, histologicamente benignos, sob forma de projeções
vermiformes. A idade média para o aparecimento da LIV é a quinta década de vida
e, por ser uma extensão de leiomiomas uterinos, ocorre exclusivamente em mulhe
res. As doentes diagnosticadas com esta patologia são, frequentemente, seguidas
em serviços de Ginecologia por leiomiomas uterinos e podem mesmo já ter sido
histerec tomizadas meses ou anos antes4-7. Em 2002, Tanaka et al.8 relataram o
caso de uma doente com 72 anos à qual foi diagnosticada LIV, 30 anos após ter
sido submetida a histe rectomia.
O objetivo deste artigo é efetuar uma revisão sobre o conhecimento atual da
etiopatogenia, clínica e tratamento desta entidade rara mas suscetível de
provocar complicações graves e de implicação vital.
Etiopatogenia
A etiologia deste tumor continua a não estar completamente esclarecida e
existem duas teorias principais. Uma propõe que a origem do tumor está nas
células musculares lisas da parede venosa, onde se origina a proliferação
intravenosa do tumor1,2,4,6,7,10-14. Outra sugere que a LIV aparece por invasão
direta do sistema venoso pelo tumor que lhe está adjacente1,2,4,6,7,10-14.
Recentemente, foram publicados alguns estudos que suportam esta segunda teoria
ao invés da primeira14-17. Kir et al.18 efetuaram estudos imunohistoquímicos
destes tumores e demonstraram que as células endoteliais são negativas ou
fracamente positivas para recetores de estrogénio e progesterona ao contrário
das células musculares lisas que são fortemente positivas para estes mesmos
recetores14,15. Outro grupo relata não haver rutura do endotélio ao nível da
entrada do tumor nos vasos e descreve a lesão como uma projeção que determina
estiramento do endotélio do vaso fazendo deste o seu invólucro17. Por último, é
sugerido que a LIV tem apenas um ponto fixo na zona de origem, ficando móvel e
sem mais aderências aos vasos, o que também é a favor de uma origem
leiomiomatosa ao invés de primariamente venosa16.
Grande parte dos casos de LIV só são diagnosticados quando já atingiram a veia
cava inferior (VCI) ou mesmo as cavidades direitas do coração pois é nessa
altura que come çam a ser sintomáticos. Contudo, para ser estabelecido o
diagnóstico de LIV apenas é necessário que exista invasão da drenagem venosa
extra-uterina. De acordo com a localiza ção do leiomioma e a respectiva
drenagem venosa a leiomiomatose pode tomar dois caminhos19. Um invadindo as
veias uterinas e chegando à VCI através das veias ilíacas interna e comum. O
outro segue através das veias ováricas e progredindo directamente para a VCI ou
passando pela veia renal à esquerda.
Apresentação clínica
A apresentação clínica varia muito de acordo com a extensão do tumor, podendo
ir de totalmente assintomático até à ocorrência de morte súbita2,6,20. Numa
fase inicial em que a invasão vascular ainda não atingiu os vasos de maior
calibre a LIV pode ser assintomática. Contudo, a doente pode apresentar alguns
sintomas como sensação de peso ou dor hipogástrica ou meno e metrorragias
dependentes da presença e das características do leiomioma
uterino1,2,10,11,13,21.
Assim que a invasão vascular atinge os vasos de maior calibre, como as veias
ilíacas comuns e a VCI, podem começar a aparecer os sintomas de obstrução
venosa. É nesta altura que podem surgir edemas dos membros inferiores ou
episódios de trombose venosa profunda. A progressão proximal do tumor pode
levar também à oclusão das veias renais ou mesmo síndrome de Budd-Chiari tendo
esta apresentação já sido descrita em várias publicações2,9,10,13,20-22. O
atingimento cardíaco surge em 10 a 30% destes tumores determinando o
aparecimento de sintomas como palpitações, síncope, cansaço fácil e dispneia
sendo este último o sintoma mais frequentemente observado na apresentação
destes doentes1,2,9-11,20,23,24. Quando o tumor atinge o ventrículo direito,
passando através da válvula tricúspide, poderão aparecer sinais e sintomas de
insuficiência valvular, como por exemplo um sopro sistólico na área tricúspide.
Poderá também ocorrer um encarceramento do tumor ao nível da válvula levando a
morte súbita da paciente. Finalmente, a obstrução e a redução do fluxo podem,
em qualquer altura, conduzir a trombose venosa e posteriormente a embolia
pulmonar podendo esta ser a primeira manifestação da doença1,6,7,25. Outros
sintomas, como a tosse, foram descritos na associação a metástases pulmonares
da LIV que parece ocorrer por embolização de pequenos fragmentos de tumor
aquando da cirurgia de resecção21.
Exames complementares de diagnóstico diferencial
Uma vez que a dispneia é a forma de apresentação mais frequente, a investigação
começa geralmente pela realização de exames do foro cardiológico e respiratório
como o electrocardiograma, a radiografia de tórax e o eco cardio grama trans-
torácico (ETT)5. Em qualquer destas técnicas é possível encontrar anomalias que
denunciem o tumor. A radiografia pode mostrar uma lesão já antiga e
calcificada8, mas é o ETT que geralmente revela uma massa intra-cardíaca pelo
que é necessário fazer o diagnóstico diferencial com mixoma auricular ou
trombo. Com este objectivo, é útil a realização de ecocardiograma trans-
esofágico (ETE) que habitualmente mostra uma massa móvel, sem aderências que se
estende para a VCI (fig._1). O ETE pode excluir um tumor cardíaco primário mas
pode ser difícil o diagnóstico diferencial com trombo flutuante ou metástases
de tumores intra-abdominais tais como os carcinoma de células renais, carcinoma
das supra-renais, hepatocarcinoma e leio mio sarcoma5,13,26,27.
A investigação de lesões que envolvem a VCI implica a realização de estudo
imagiológico toraco-abdomino-pélvico como a tomografia computorizada (TC) com
fase arterial e venosa e completada por protocolo de angio-TC. A ressonância
magnética (RM) com angio-RM e venografia pode também ser uma opção27. Estes
exames vão permitir diferenciar o tumor do trombo e ainda determinar a extensão
e, eventualmente, a origem da massa19. No processo de investigação das lesões
deve também ser incluída uma análise cuidada e detalhada de todos os restantes
orgãos das regiões em causa.
A distinção entre um leiomiosarcoma e a LIV continua a ser muito difícil ou
mesmo impossível de fazer sem exame histológico do tumor e, por isso, o
estabelecimento do diag nóstico definitivo só é possível após a ressecção
tumoral6,13,19,21. O padrão histológico de LIV mais frequentemente encontrado
corresponde a uma massa composta por músculo liso e fibrose, sem atipia celular
significativa e sem atividade mitótica. No entanto, ocasionalmente verifica-se
evidência de alguma atipia e atividade mitótica, o que sugere a existência de
outros padrões histológicos com diferentes níveis de agressividade. Alguns
estudos imuno-histoquímicos relataram a presença de dois tipos de células, umas
com recetores de estrogénio (RE) e progesterona (RP) positivos e CD34 negativos
correspondendo as células tumorais, e outras CD34 positivos e RE e RP nega
tivos que recobrem o tumor fazendo-nos acreditar que este está recoberto por
células endoteliais não tumorais16. Quando marcado para avaliação do Ki-67 este
é fracamente positivo o que indica um baixo índice proliferativo16.
Moniaga e Randall24 sugeriram a realização de biópsias intravasculares guiadas
por TC com o objectivo de obter um diagnóstico definitivo antes da cirurgia.
Contudo, a efec tividade desta abordagem não é elevada uma vez que os
fragmentos obtidos por punção com agulha não são geralmente suficientes para
excluir a possibilidade de leiomiosarcoma e o diagnóstico diferencial seguro
com LIV24.
Terapêutica
O único tratamento curativo da LIV é a ressecção total do tumor. Com este
objectivo, várias técnicas têm sido utilizadas ao longo dos tempos.
A primeira ressecção tumoral de LIV com extensão intracardíaca foi relatada por
Timmis et al. em 198028 mas neste caso a ressecção não foi total. Em 1982 Ariza
et al. descreveram o primeiro sucesso de ressecção total do tumor1,5,9,29.
Atualmente, são utilizadas três estratégias cirúrgicas diferentes para o
tratamento de LIV com extensão intracardíaca.
A primeira, consiste em esternotomia, na qual sob bypass cardiopulmonar com
circulação extracorporal (CEC), hipotermia e cardioplegia, se realiza uma
auriculotomia direita, se remove o tumor intra-cavitário e a porção
intravenosa. Esta abordagem tem o risco de hemorragia retro-peritoneal por
avulsão da parede venosa no local de origem do tumor, complicação já descrita
por vários autores30,31. De forma a reduzir este risco Hui-Li et al.14
propuseram que se associasse à esternotomia uma pequena incisão abdominal
infero-lateral que permita excisar o pedículo do tumor, esteja ele na veia
ilíaca interna ou na veia ovárica.
A segunda abordagem consiste em laparotomia, na qual se realiza uma venotomia
da VCI permitindo extrair o tumor intravenoso e intracardíaco. Esta abordagem
pode ser uma alternativa à esternotomia evi tando colocar o doente em CEC mas
não deve ser esco lhida se a doente necessitar de reparação valvular. Por outro
lado, pode permitir apenas a remoção parcial do tumor, com fractura da porção
distal do tumor que, ao ficar livre na VCI ou na aurícula direita, pode
conduzir a embolia pulmonar5.
A terceira abordagem combina as duas anteriores ressecando o tumor
intracardíaco e intravenoso distal (distal às veias renais) por esternotomia e
o restante tumor intravenoso por laparotomia (fig._2). Esta abordagem pode ser
feita em um ou dois tempos, sendo esta última opção a escolhida quando a
condição clínica das doentes não permite uma cirurgia de maior porte. Quando se
escolhe a abordagem em dois tempos geralmente é efectuada primeiro a cirurgia
cardiotorácica. Nesta, a doente entra em bypass cardiopulmonar, hipotermia e
cardioplegia e, através da auriculotomia direita, remove-se a porção intra-
cardíaca e a parte distal do tumor, em regra superior ao nível das veias renais
(fig._3A). O segundo tempo será efectuado por laparotomia 6 a 7 semanas depois
e consiste na remoção do resto do tumor (fig._3B), na histerectomia (fig._3C) e
eventualmente na colocação direta de filtro na VCI.
A escolha da abordagem cirúrgica deve ter em conta as características do tumor
(localização, diâmetro, aderências), a experiência do cirurgião e a condição
clínica e opção da doente.
Hui-Li et al.14 recomendaram que a escolha da técnica fosse feita com base na
relação diâmetro máximo do tumor/ diâmetro da VCI e na localização das porções
tumorais recomendando esternotomia para os tumores com diâmetro máximo superior
ao diâmetro da veia cava apenas na porção intracardíaca, laparotomia para os
tumores com diâmetro máximo inferior ao diâmetro da veia cava em toda a
extensão do tumor e esterno-laparotomia para os tumores com diâmetro máximo
superior ao diâmetro da veia cava apenas na porção intravenosa ou em ambas as
porções.
Adicionalmente a qualquer uma das abordagens, pode ser colocado um filtro na
veia cava inferior. Este pode ser aberto por via retrógrada nos casos de IVL
sem extensão cardíaca ou após esta ter sido removida, como Barksdale22 propôs,
ou por via anterógrada após o tumor ter sido ressecado. A colocação do filtro
terá importância na prevenção do embolismo pulmonar durante e após a cirurgia.
Efetivamente, no período intra-operatório a embolia pulmonar poderá ser
consequência da fractura do tumor e após a cirurgia a sua natureza é geralmente
trombótica, no contexto de TVP pós-operatória, ou tumo ral, no caso de tumor
residual ou recidiva da doença.
Independentemente da abordagem, a chave para a cura da LIV é claramente a
ressecção cirúrgica completa do tumor e, pelo facto de a LIV estar associada a
leiomiomatose uterina, é fundamental associar a realização de histerectomia
(fig._3).
Esta pode ser realizada simultaneamente à tumorectomia intravenosa quando esta
é feita por laparotomia ou posteriormente noutra intervenção. A combinação de
salpingo-ooforectomia bilateral (SOB) continua a ser um ponto controverso no
tratamento destas doentes. Todavia, por se acreditar cada vez mais numa origem
leiomiomatosa do tumor, a SOB só é obrigatória nos casos em que não se consegue
realizar a excisão total do tumor. Nestas circun stâncias, para além da SOB,
pode optar-se também por associar um tratamento farmacológico de forma a
limitar o crescimento do tumor.
Este inclui inibidores das aromatases como o letrozol, antagonistas de
estrogénio como o tamo xi feno ou agonistas da GnRH (gonadotropin-releasing
hormone)32-35. Entre estes, os inibidores das aromatases pare cem ser aqueles
com melhor resposta, sem crescimento tumoral quando suspendida a terapêutica. O
tratamento farmacológico pode também ser utilizado nas recidivas32 ou nas
situações em que o tumor é irressecável na altura do diagnóstico de forma a
diminuir a sintomatologia da doente e melhorar a sua qualidade de vida.
Finalmente, uma vez que o índice proliferativo do tumor é muito baixo, o
respectivo crescimento é muito lento e assim uma eventual recidiva por demorar
muitos anos a surgir e a ser sintomática. Por esta razão, no sentido de evitar
as complicações graves da recidiva (morte súbita ou EP) é muito importante
acompanhar estas doentes por longos períodos após a ressecção do tumor. Este
acompanhamento é efectuado, para além da clínica, geralmente por
ultrassonografia e TC tóraco-abdominal.